Perceber-fazer floresta: da aventura de entrar em comunicação com um mundo todo vivo | Susana Dias
Susana Dias [1]
Os brancos só contemplam sem descanso
as peles de papel em que desenharam suas próprias palavras.
Se não seguirem seu traçado, seu pensamento perde o rumo.
Enche-se de esquecimento e eles ficam muito ignorantes.
David Kopenawa e Bruce Albert
O problema que nos interessa pensar é menos o de comunicar algo já dado e mais o de entrar em comunicação com um mundo todo vivo[2]. E uma floresta é um mundo todo vivo! Esta perspectiva da floresta, de um mundo todo vivo, atravessa a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, cintilação que recolhi do imanentismo de seus escritos-pensamentos e que encontro alegres ressonâncias no modo como o filósofo mexicano José Ezcurdia aborda essa filosofia no livro Cuerpo, intuición y diferencia em el pensamento de Gilles Deleuze (2016). Um mundo todo vivo, também movimenta o pensamento do filósofo Ètienne Souriau, para o qual tudo no mundo vibra, e cuja perspectiva se pode conhecer mais intensamente no Brasil com o livro do filósofo David Lapoujade As existências mínimas (2017). Um mundo todo vivo é um clarão que move a literatura e os escritos de autores como Clarice Lispector, Marguerite Duras, Marguerite Yourcenar, Nuno Ramos e D. H. Lawrence, este último cujos interesses passam pelos povos pagãos, como Celtas, Etruscos, Caldeus e Assírios. Um mundo todo vivo faz parte da cosmologia do povo Yoruba da Nigéria, para os quais tudo que existe tem àse [axé], autoridade, como abordam o babalorixá Dadhar Faseyi (hoje nomeado rei Oba Ojele) e a pesquisadora e ialorixá Glória Freitas (hoje Yeye Meso) no artigo “Dialogando com a semente de obi ou a floresta: um convite para conhecer um pouco da nossa tradição religiosa e cultura Yoruba” (2018). Um mundo todo vivo é, também, um princípio presente nos modos como o povo indígena Krenak experimenta a relação com o mundo, e que podemos ler no livro Ideias para adiar o fim do mundo (2019), recém-lançado pelo diplomata cósmico Ailton Krenak. Um mundo todo vivo é como sentem, experimentam e vivem vários artistas, alguns com os quais tivemos a honra de trabalhar junto nos últimos anos, como Marli Wunder, Neusinha Aguiar, Walmor Corrêa e Fernanda Pestana, e outros que pudemos estudar como Edith Derdyk e Cildo Meirelles. Aprendemos com a filosofia e a antropologia das ciências, especialmente os trabalhos de Isabelle Stengers e Bruno Latour, que um mundo todo vivo também movimenta as práticas científicas que despertam diferentes interesses (palavra que advém de inter-esses, como lembra Stengers (2002)) e alcançam uma eficácia política.
Tal possibilidade, de entrar em comunicação com um mundo todo vivo, parece que só pode acontecer quando o humano deixa de ser o centro dos processos comunicantes, quando o humano se deixa abrir aos devires e povoar por forças não-humanas. É o chamado insistente do filósofo Gilles Deleuze para os devires (devir mulher, devir criança, devir negro, devir índio, devir literatura, devires vegetais, minerais, animais, moleculares, cósmicos…) para os quais se quer abrir uma escuta: “Tantos seres e coisas pensam em nós”; “Há sempre um sopro no meu, outro pensamento no meu, outra possessão no que possuo, mil coisas e seres implicados em minhas complicações” (Deleuze, 2006, p. 306); “Félix e eu, e muito mais gente como nós, não nos sentimos precisamente como pessoas” (Deleuze, 1992, p. 177). Esta última frase dizia ao referir-se à percepção de que ele e Félix e eram dois riachos que se juntam para fazer “um” terceiro que seria um “nós”.
Sentimos que abrir uma escuta aos devires é vital, pois vivemos tempos em que o antropocentrismo continua em plena atividade e alimenta produções em lógicas demasiado humanas, recognitivas, em que somente nos encontramos e identificamos com nós mesmos. Tempos em que somos interpelados por uma vertiginosa vergonha de sermos humanos e convocados a levar a sério uma crítica à centralidade e excepcionalidade dos humanos, a repensar o humano, suas dimensões, suas atividades, suas frágeis e débeis conexões com a Terra. Tal vergonha nos força não a uma identificação com esse tempo tal como se há nomeado de Antropoceno, mas antes um engajamento numa operação de diferenciação desse tempo. Isto porque sentimos que o chamado que nos afeta tem relação com o que diz Donna Haraway (2016, p.139): “nosso trabalho é fazer com que o Antropoceno seja tão curto e tênue quanto seja possível, e cultivar uns com os outros, em todos os sentidos imagináveis, épocas por vir que possam reconstituir os refúgios”.
Dar atenção aos devires é um modo de devolver o caos e o infinito aos humanos, de seguir suas linhas expressão não mais por indivíduos isolados, mas pelas composições complexas com uma miríade de outras vidas orgânicas e inorgânicas. Devires dizem sempre de alianças entre divergentes – não há lugar para o humano como ponto de convergência –, dizem de processos de imbricações recíprocas que arrastam os envolvidos para limiares impensados. São exercícios de modos de estar junto anômalos, movimentos que abrem comunicações transversais, instáveis e irregulares e ampliam a potência de vida. Os devires implicam na inserção do humano numa aventura cósmica, no abraçar toda uma possibilidade de ampliar, multiplicar e proliferar o cosmos e o humano para além dos funcionamentos tristes que habitualmente povoam imagens, palavras e sons nos processos comunicantes e educacionais.
Abrir os humanos ao cosmos exige a invenção de desvios das apostas incessantes da fixação e estabilização dos sentidos de humano, quer seja em fotografias, em desenhos, filmes ou instalações. Na perspectiva antropocêntrica, a tarefa dos humanos é demasiado simplificada na ideia de representação no papel-tela de um cosmos que estaria fora dele e à sua disposição. A tarefa que sentimos que nos toca tem a ver com a proliferação de novos “modos de existência” (Souriau, 2017) dos sistemas comunicantes além-do-humano, que aqui buscaremos exercitar ensaiando alianças com as florestas, pensando nelas como intercessores fundamentais diante das mudanças climáticas, das catástrofes socioambientais, do Antropoceno, de Gaia… Desejos de que a escrita se efetue como um meio vital de aprendizagem com as florestas acerca de como reunir forças e restituir as possibilidades de uma vitalidade e saúde do pensamento. (Leia o artigo completo em PDF).
Recebido em: 01/05/2020
Aceito em: 05/06/2020
[1] Pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), líder do grupo de pesquisa multiTÃO: prolifer-artes sub-vertendo ciências, comunicações e educações (CNPq), professora do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural (Labjor-IEL-Unicamp), editora da Revista ClimaCom. Endereço eletrônico: susana@unicamp.br
[2] Este artigo está vinculado aos projetos: “Por uma nova ecologia das emissões e disseminações: como a comunicação pode modular a mais intensa potência de existir do humano diante das mudanças climáticas?” (CNPq) e “INCT-Mudanças Climáticas Fase 2” (financiado pelo CNPq projeto 465501/2014-1, FAPESP projeto 2014/50848-9 e a CAPES projeto 16/2014).
Perceber-fazer floresta: da aventura de entrar em comunicação com um mundo todo vivo
RESUMO: Este trabalho diz de um pensamento em que o problema é menos comunicar algo já dado, pronto e acabado e mais entrar em comunicação com um mundo todo vivo. Trata-se do chamado vital a ensaiar uma escuta aos devires (Deleuze, 1997; 2006), pois que o antropocentrismo ainda é um funcionamento triste que nos move a produzir em lógicas demasiado humanas, recognitivas, modernas, em que somente nos encontramos e identificamos com nós mesmos. Para pensar em outros modos de existência (Souriau, 2017) dos sistemas comunicantes, propomos fazer da escrita um meio vital de aprendizagem do que podem as alianças com as florestas por senti-las como intercessores fundamentais diante das mudanças climáticas, das catástrofes socioambientais, do Antropoceno, de Gaia… E isso passa por dar a perceber que comunicar tem menos a ver com um dizer sobre a floresta, e mais com um perceber-fazer floresta por outros modos de existência sensíveis, modos de existência fotográficos, fílmicos, pictóricos, de escrita etc.. Numa floresta não há lugar para um pensamento em torno de uma matéria inerte e estéril, antes a floresta reivindica os mil gestos necessários para nos tornarmos dignos do papel-tela (papel-jornal, papel-revista, papel-tela-pintura, papel-tela-do-cinema, papel-multimídia…) como uma matéria viva, ativa e criativa. Serão as composições com práticas e materiais que movem nossos fazeres no grupo de pesquisa multiTÃO – e nos coletivos que compomos em eventos, exposições, oficinas e nas disciplinas do mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Labjor-Unicamp –, e que têm a revista ClimaCom como espaço-tempo privilegiado de experimentação, que permitirão desdobrar estas breves ideias. O Lab-Ateliê, como temos chamado essa seção, resulta de uma tentativa de tornar a divulgação científica e cultural um gesto coletivo de investigação, criação e atenção à vida de imagens, palavras e sons. E isso diz respeito a um corpo a corpo com a matéria papel e à sua transformação em um material rico, complexo e perturbador das lógicas dominantes, onde nos percebemos materiais entre materiais, ferramentas entre ferramentas. Uma busca por afirmar uma lucidez alegre capaz de vigorizar a potência comunicante de uma “anarquia ecológica” (Stengers, 2018), onde não têm lugar as separações e hierarquias entre mundos, humanos e papéis, as oposições entre matéria-espírito, humano-não-humano, sujeito-objeto e teoria-prática.
PALAVRAS-CHAVE: Sistemas comunicantes. Floresta. Antropoceno. Devir. Materialidade.
Perciving-making forest: entering in communication with a whole living world
ABSTRACT: This study is about a thought in which the problem is less communicating something ready and finish and more getting into communication with a whole living world. It is about of the vital call to exercise, to test, a listening to the becoming (Deleuze, 1997; 2006), because the anthropocentrism is still a sad operation that moves us on to produce in too human, recognitive, modern logics, where we only meet and identify with ourselves. To think in other “modes of existence” (Souriau, 2017) of the communication systems, we propose to make of the writing a vital learning medium of what forest alliances can do in face of climate change, of Anthropocene, of Gaia… And this learning goes through making it perceptible that communicating has to do with perceiving-making forests for other sensible modes of existence: photographic, filmic, pictorial, of writing etc.. In the forest there is no place for thinking around an inert and sterile matter. Instead, the forest reclaims the one thousand necessary gestures so that we can become worthy of the paper (paper-journal, paper-magazine, paper-canvas, paper-cinema-screen, multimidia-paper…) as living, active and creative matter. It will be the compositions with practices and materials that move the multiTÃO research group and that will allow the unfolding these ideias. Both in events, exhibitions and workshops, and in the master’s degree subjects in “Science and cultural communication” of the Labjor-Unicamp, which have the Laboratory-Atelier of the ClimaCom jornal/magazine as a privileged space-time of experimentation. The Lab-Atelier, as we have called this section of the magazine/journal, results from an attempt to make scientific and cultural dissemination a collective gesture of investigation, creation and attention to the life of images, words and sounds. And this concerns a body to body with paper matter and its transformation into a rich, complex material that is disturbing to the dominant logics, where we perceive ourselves as materials between materials, tools between tools. A search to affirm a cheerful lucidity capable of energizing the communicative power of an “ecological anarchy” (Stengers, 2018), where the separations and hierarchies between worlds, humans and papers, the oppositions between nature-culture, matter-spirit, human-non-human, subject-object and theory-practice do not take place.
KEYWORDS: Communication systems. Forests. Anthropocene. Becoming. Materiality.
DIAS, Susana. Perceber-fazer floresta: da aventura de entrar em comunicação com um mundo todo vivo. ClimaCom – Florestas [Online], Campinas, ano 7, n. 17, Jun. 2020. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/susana-dias-florestas/