Por | Allison Almeida
Editora | Susana Dias
“Não podemos simplesmente falar de negacionismo no geral, mas pensar o que isto significa neste mundo atual. Nossa pergunta é: de onde efetivamente vem essa negação?”. Pensar nessa pergunta é abusar da pulsão de vida. É com esta perspectiva que Elenise Andrade, professora do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), ponderou sobre os paralelos entre o negacionismo associado à pandemia do COVID-19 e às mudanças climáticas.
“A Covid hospitaliza de 10 a 20 vezes mais pessoas que a gripe comum, saturando o Sistema de Saúde muito rapidamente”, pontuou Atila Iamarino, doutor em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP) e um dos principais divulgadores científicos da internet brasileira, em entrevista concedida ao Roda Viva, exibido pela TV Cultura. A entrevista aconteceu na noite do dia 30 de março e bateu recorde de audiência do programa que é exibido na televisão pública paulista desde 1986 e o negacionismo, da COVID e das mudanças climáticas, foi um dos temas abordado: “A gente nunca teve uma narrativa sendo tão rapidamente confrontada com a realidade. Quem nega o aquecimento global, vai ver os efeitos amplificados daqui a 30 anos. Quem será afetado não é o mesmo grupo que nega as mudanças climáticas. Quem nega uma vacina vai causar um surto de sarampo dez anos depois quando o filho estiver na escola. Com a Covid-19, a consequência vem em um mês”, pontuou.
Seis dias antes, no dia 24, o Brasil escutava atônito o pronunciamento oficial do presidente da república Jair Bolsonaro que entrava em cadeia nacional minimizando os efeitos da pandemia. “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, se fosse contaminado, não precisaria me preocupar, pois nada sentiria. Seria acometido por uma gripezinha”, ironizou Bolsonaro. Naquela mesma data, O Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciava o adiamento das Olimpíadas que aconteceriam em junho no Japão. Pouco antes da declaração, o Ministério da Saúde divulgou que no Brasil já haviam ocorrido 2.201 casos confirmados da doença com 46 óbitos. Um estudo realizado pelo Imperial College de Londres, prestigiada instituição britânica que vem realizando uma série de projeções sobre os cenários possíveis da Covid-19, alertava que a negação à gravidade da pandemia poderia acarretar em mais de um milhão de mortes no Brasil, caso medidas de isolamento, distanciamento social e investimento em pesquisa, diagnóstico e tratamento não fossem adotadas.
De lá para cá, o então presidente Jair Bolsonaro tem tomado atitudes que reforçam o caráter negacionista e genocida do seu governo, ao colocar-se contrário às medidas de distanciamento social, demitir o ministro da saúde, promover aglomerações e carreatas em defesa da reabertura do comércio. Neste último domingo, dia 19 de abril, Bolsonaro fez novo pronunciamento público em Brasília, em frente ao quartel general do exército, para algumas dezenas de pessoas, e, em meio a tosses, disse: “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, em discurso transmitido ao vivo em rede social. A negação a evidências e estudos científicos, quando incorporada aos quadros políticos, pode amplificar os efeitos de situações extremas. Na entrevista concedida por Átila Iamarino, ele relembrou ainda que a estratégia do negacionismo a eventos científicos como a Covid 19 não é um fato novo. Avisos relacionados aos impactos das mudanças climáticas têm sido constantemente ignorados por alguns governos alinhados a uma perspectiva econômica liberal, que partem de uma falsa rivalidade entre ciência e economia para negar evidências científicas claras de um aquecimento global.
O antropólogo Bruno Latour, em “Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise”, seu mais recente ensaio, aponta que estamos diante de uma oportunidade de repensar relações afetivas com a terra, a partir do momento que o coronavírus nos ensinou que uma possibilidade de inflexão, de freio, no modo de produção atual, justamente o que alimenta o medo dos negacionistas em relação às transformações relacionadas aos eventos naturais, que não dominamos. O receio se estabelece porque tais momentos históricos podem desencadear pontos de virada, uma brecha histrica para superarmos, na visão de Latour, uma visão econômica ortodoxa que considera a Terra um depósito interminável de matérias-primas.
A pergunta “de onde vem o negacionismo”, indica que existem pessoas, práticas, modos de pensar, necrológicas, ou seja, certas humanidades que querem excluir e destruir, tanto as instituições já reconhecidas mundo afora, como universidades e instituições de pesquisa, como os povos tradicionais e indígenas, que vivem à margem de um sistema socioeconômico excludente, e que já foram denominadas de “sub-humanidades”, como Ailton Krenak lembra em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”.
Abusar da “pulsão de vida” é o chamado que a pesquisadora em educação sente que cabem às universidades, às ciências e à divulgação científica diante dos negacionismos: perguntar que conhecimentos emergem desses processos, interrogar as apostas na vontade de formatação e normatização dos gestos e pensamentos, seguir defendendo as ciências e a urgência de ficar em casa, bem como seguir perguntando sobre quais ciências precisamos e de que humanos estamos falando.
Imagem | Sintropiz-Ar o olhar de Marília Costa