E quando o corpo (não) comunica? Artista Lerato Shadi dá a pensar as relações entre corpo e Antropoceno | Por Gláucia Pérez

Os trabalhos da artista visual da Universidade de Joanesburgo, Lerato Shadi, dão a pensar no corpo como forma de expressão, de contato, de comunicação, como possibilidade de espantar o Antropoceno, e criar territórios de protesto e refúgio.

Por | Gláucia Pérez

Editora | Susana Dias

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A artista visual da Universidade de Joanesburgo, Lerato Shadi, nos mostra em um dos seus vídeos como o seu corpo feminino negro pode se transformar em meio de experimentação e contestação de conceitos preconcebidos. Shadi explora seu corpo se enrolando em cordas, preso a barbantes, língua enrolada em linhas; a mordaça a impede de falar, expressar e comunicar. Se o corpo é uma forma de se comunicar com o mundo, quando amordaçado e enrolado em cordas e barbantes este fica estático, sem fala, mas ainda se comunica com o mundo como um modo de protesto ativo e artístico. Foi o pesquisador Antonio Carlos Amorim, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que nos apresentou fotos e um vídeo da artista durante a segunda edição do “SIMBIOSES – Encontro de artes, ciências, filosofias e mudanças climáticas”, realizado no dia 22 de novembro de 2019, e organizado pelo grupo multiTÃO e Revista ClimaCom, e que teve como tema “Refúgios para espantar o Antropoceno”.

Os materiais da artista apresentavam imagens, registros e performances variadas: ao ar livre, em exposições, escrevendo aleatoriamente nomes de mulheres africanas, ou fazendo uma colcha de crochê sentada na cadeira em uma exposição. Se a incompreensão do que a artista quer passar nos assola, talvez possamos ficar com esse problema e buscar novas maneiras de nos abrirmos a escutar o outro, a percebê-lo e entendê-lo em seu movimento. Talvez, tal escuta, passe por nos deixarmos contagiar pelas simbioses intensivas que Lerato Shadi inventa com os materiais. As imagens que a artista cria têm um potencial de expressão, de adentrar em nossas mentes promovendo interrogação e questionamento: o que as imagens, os vídeos, as performances nos dizem e nos fazem sentir em nosso processo de conhecimento e aprendizado? Como podemos transformar, agir, contestar, incluir, seguir em direção à construção de algo que nem sabemos o que será, mas que certamente será diferente ao que já foi proposto?

As performances em que se enrola em barbantes e cordas nos fazem pensar em como um corpo, em quase exaustão total, de tanto se enrolar, pode ser refúgio. Fugir do óbvio e do habitual e encontrar um lugar de refúgio, mesmo que em algumas ocasiões pareça incongruente enrolar-se, mas o corpo consegue se expressar colocando para fora o que está contido e amordaçado internamente. A corda na língua apenas quer ficar e permanecer, mas não pode ficar, tem e teve que sair para fora. E com essa imagem figurativa sai o que está dentro e contido, não revelado até então, sai o que está em descobrir um refúgio, um refúgio com o próprio corpo. Não mais o corpo mercadoria e objeto de consumo, para aumentar a degradação e destruição do meio ambiente. O corpo se mostra contrário à perspectiva antropocêntrica. Corpo, alma, linhas, terra e imagens juntos querendo furar a bolha da centralidade do humano e, ao mesmo tempo, fazendo do corpo território de protesto e refúgio.

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Podemos nos questionar se temos como fazer o mesmo com o nosso corpo ou se ao assistir e visualizarmos essas imagens, performances e vídeos encontramos nosso próprio modo de espantar o antropocentrismo que está a devastar o ambiente, que somos e que vivemos. A arte como forma de expressão, de contato, de comunicação, de espantar o antropocentrismo, e de descobrir e inventar refúgios.

Debates em torno de uma artista visual sul africana, radicada em Berlim, permite encurtar a distância de encontros, saberes e perspectivas diferentes, mas com o objetivo de descobrir formas de se relacionar, de se conectar mesmo em tempo e lugares distintos. O professor da Unicamp Antônio Carlos Amorim há vem pesquisando a artista Lerato Shadi há algum tempo, no âmbito do Projeto Intervalar, e se interessou pelo trabalho dessa artista por considerar interessantes as questões relacionadas às identidades colocadas por Shadi, principalmente as identidades em situações pós-coloniais do ponto de vista artístico, “que são identidades apagadas, um gesto de desaparecimento, que é relevante uma vez que a artista está conversando sobre os processos ligados a escravidão e da existência do continente africano”.

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O refúgio encontrado e criado pela artista Shadi nos apresenta através da imagem, do vídeo, da performance, das linhas, das cordas, dos barbantes, dos nomes de mulheres africanas escritos nas paredes, da colcha de crochê; como a criação pode nos tocar, entrelaçar, amordaçar, alinhavar a ponto de nos permitir sermos tocados, mexidos e nos emocionarmos com o que aprisiona e amordaça a artista. A língua que está exposta com as linhas vermelhas é bem expressiva ao pensarmos o que essa artista sul africana radicada em Berlim tem a nos contar dos seus ancestrais, dos refugiados, das mulheres que se calam, da cor da pele sempre a gritar por liberdade. A avaliação que Antonio Carlos faz da obra da artista – ”… o corpo não está suportando as memórias do lugar de origem, do lugar aonde ela foi buscar…” – nos coloca a pensar qual refúgio queremos e como podemos criar refúgios para abrigar seres que também estão querendo levar a sério uma crítica ao antropocentrismo.

A segunda edição do SIMBIOSES contou com o apoio do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural (MDCC), do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e é uma ação do projeto INCT-Mudanças Climáticas Fase 2, financiado por: CNPq projeto 465501/2014-1, FAPESP projeto 2014/50848-9 e CAPES projeto 16/2014. É um evento organizado pelo grupo de pesquisa multiTÃO e revista ClimaCom.