Márcia Tait Lima e Leda Gitahy | Diálogos entre novos léxicos políticos e práticas comunitárias de cuidado em Abya Yala
Márcia Maria Tait Lima[1]
Leda Maria Caira Gitahy[2]
“Para os bichos e rios nascer já é caminhar”
(João Cabral de Melo Neto, 1953)
Percursos e delineamento da pesquisa
As reflexões apresentadas neste artigo fazem parte de pesquisas iniciadas em 2010 sobre os potenciais epistêmicos, éticos e políticos de proposições de ações coletivas de mulheres camponesas no Brasil e na Argentina. Esta pesquisa[3] foi concluída em 2014 e trouxe elementos das pesquisas de campo com mulheres agricultoras/camponesas e campos interdisciplinares de conhecimento, como os Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (principalmente em sua vertente de Estudos Ciência, Tecnologia e Gênero ou Estudos Feministas da Ciência e Tecnologia), Estudo das Ações Coletivas, Estudos Rurais e Socioambientais. O diálogo entre esses campos prático-teóricos delinearam a pesquisa e os resultados relativos às formas de resistência de mulheres aos cultivos transgênicos.
Neste trabalho, dois teóricos foram fundamentais: o português Boaventura Sousa Santos (2009) e o italiano Alberto Melucci. Sousa Santos (2001, 2002). Ambos trabalham com o tema movimentos sociais, com os antagonismos coletivos ao sistema capitalista e a construção da emancipação social, propondo um olhar sociológico para as emergências que se mostram nas práticas sociais coletivas emancipatórias, como uma forma de ampliar o presente e consequentemente as possibilidades de futuro. Os conhecimentos camponeses assim como os indígenas podem ser entendidos como parte da chamada “ecologia de saberes”, uma das cinco ecologias propostas por Sousa Santos (2009). Esta ecologia se pauta na pluralidade epistemológica e justiça cognitiva, e seria necessária para reverter os processos de colonização do saber-poder.
A aspiração por descolonizar o conhecimento é o cerne da sua proposta de “epistemologias do Sul” (Sousa Santos, 2009), que propõe dar visibilidade e credibilidade às práticas cognitivas de classes, povos e grupos sociais que têm sido explorados pelo colonialismo e capitalismo global. De um modo complementar, Melucci (2001, 2002) trabalha com a potência das identidades coletivas como processo em permanente reelaboração, destacando a ação de movimentos antagônicos – como alguns movimentos feministas e ambientalistas – na criação de novas sociabilidades e novos códigos culturais, atuando como “profetas do futuro” que anunciam transformações tanto nas mentalidades e práticas (dimensão cultural), quanto nas estruturas sociais e formas de organização da vida.
Compartilhando desses entendimentos, a identidade coletiva “mulheres camponesas” foi interpretada como uma categoria político-cultural que pertence ao âmbito teórico e das estratégias de militância política, mobilizada por ambos os autores principalmente num horizonte de transformação/emancipação social. Uma identidade em constante mudança, acompanhando os projetos políticos e as ações coletivas. Não deve ser entendida, portanto, como parte de processos de redução ou cristalização de identidades, mas sim, de proliferação, diversificação e redefinição das identidades coletivas e dos códigos culturais das resistências.
Para a discussão sobre a geração de conhecimentos singulares a partir de ações coletivas, lugares e corpos, trabalhamos principalmente com as referências dos Estudos Feministas da Ciência e Tecnologia. As autoras dessa vertente destacam-se pela capacidade de problematizar a geração de conhecimento e a relação entre pesquisa/pesquisador, escolhas, pressupostos, valores e resultados. Colocando de uma forma bastante sumária elementos desenvolvidos em trabalhos anteriores (TAIT, 2015; VASCONCELLOS & TAIT, 2016) os Estudos Feministas da Ciência e Tecnologia denominados internacionalmente como “Technoscience Studies” (ASBERG & LIKKE, 2010) compartilham características como: explorar a intersecção entre classe, raça, etnia, gênero e tecnologia; trabalhar com as implicações do conhecimento situado; e entender as relações de gênero não apenas como relações entre homens e mulheres, mas entre agências, corpos, racionalidades – entre natureza e cultura.
A ênfase nas implicações dos conhecimentos situados foi desenvolvida por teóricas como Sandra Harding, Donna Haraway, Eulália Pérez Sedeño e Marta Gonzalez García, que trabalharam com a caracterização e a relevância de uma produção de conhecimento científico “comprometido”, que se deixa influenciar pelos movimentos de mulheres (GARCÍA e SEDEÑO, 1999); de uma “ciência sucessora”, que privilegia o ponto de vista das margens (HARAWAY, 1995); e a reformulação do critério de objetividade científica a partir do reconhecimento dos vieses de pesquisa, privilégios epistêmicos e da possibilidade de uma “objetividade forte” feminista (HARDING, 1993 e 1998).
Ainda no âmbito da práxis feminista, mas agora partindo para outras contribuições e categorias, essas abordagens buscam recolocar as discussões sobre trabalho e reprodução da vida, trazendo como chave conceitual a lógica ou a ética dos cuidados. Nessa literatura o “trabalho de reprodução social”, de “satisfação das necessidades” e de “sustentabilidade da vida humana” é evidenciado e problematizado. Sua realização histórica de forma gratuita ou sub-remunerada e desprestigiada é questionada, assim como a sobrecarga das mulheres, principalmente, das mulheres de classes populares. Essas práxis feministas também chamam a atenção para como essa desigualdade é parte essencial do funcionamento da estrutura produtiva do capitalismo. A economia feminista e o feminismo ambiental (ecofeminismo) têm contribuído para redefinir a centralidade do trabalho de sustentabilidade da vida, ressaltando a interdependência existente entre o capitalismo e a violência e exploração em relação às mulheres e à natureza. Os cuidados e todo o conjunto de conhecimento e tecnologias necessárias para atendê-los envolvendo fazeres e afetos em torno da alimentação, acolhimento psíquico, asseio, atendimento aos enfermos, têm uma dimensão objetiva (necessidades biológicas) e outra subjetiva (que inclui afeto, cuidados, segurança psicológica, relações e laços humanos significativos).
Portanto, esses trabalhos de cuidado possuem um contexto social e emocional distintos do trabalho remunerado realizado geralmente fora do âmbito doméstico. No entanto, embora o nexo entre o trabalho doméstico e o âmbito da produção e serviços do mercado capitalista seja intencionalmente ocultado, o trabalho produtivo depende do reprodutivo. Segundo autoras como Cristina Carrasco (2003) e Antonella Pincho (2012), esse ocultamento é parte de uma estratégia deliberada para facilitar o repasse de parte significativa dos custos de produção capitalista para o âmbito doméstico, o que significa, em grande medida, para as mulheres e mães. A ética ou a lógica do cuidado sublinha a centralidade socioeconômica e afetiva dessas práticas e a urgência de colocá-las no centro das organizações sociais e econômicas humanas.
A ética ou a lógica do cuidado também está relacionada ao pensamento ecofeminista, propondo, neste caso, para além do antropocentrismo, uma expansão dos cuidados para os seres ou sociedades não humanas, numa visão ecológica e sistêmica que chamamos de ética do cuidado ampliado à natureza (TAIT 2015 e TAIT e JESUS, 2017). Podemos dizer que a dimensão do trabalho reprodutivo e do afeto se encontraram com a natureza/ambiente, gerando outras percepções sobre interdependência, ecodependência e novas bases éticas e epistêmicas para pensar a desigualdade social e de gênero e a degradação ambiental ou, dito de outra forma, na amplitude da chamada “ecojustiça”.
As autoras espanholas Amaia Pérez Orozco e Yayo Herrero (OROZCO, 2014; HERRERO, 2014) trabalham nessa direção, colocando a interdependência, a vulnerabilidade e a ecodependência – entre todos os seres – como noções centrais e materializadas em práticas de cuidado. Em seus trabalhos, elas também fazem uma crítica radical à lógica ou racionalidade e aos princípios morais que reduzem a importância desses vínculos, tão presentes nas teorias e práticas alicerçadas numa visão ortodoxa e hegemônica de economia e desenvolvimento. Esse rompimento das relações e afetos causam impactos negativos principalmente para populações mais empobrecidas, vulneráveis, mulheres e crianças de “regiões periféricas” e espaços “não-urbanos”. Essas são algumas aproximações determinantes para construção da crítica feminista e ecológica e que tem trabalhado na interface entre ambiente, gênero e economia.
Subsidiadas pelas reflexões desses autores e autoras, os discursos e as práticas de coletivos de mulheres camponesas e indígenas foram entendidos em nossas pesquisas como processos de criação de conhecimentos situados, no sentido de localização e corporificação, mas também de singularidade e capacidade de afetar e de gerar mudanças sociais. Neste artigo, nos propomos tecer algumas reflexões junto com as propostas éticas, epistêmicas e políticas de coletivos de mulheres indígenas latino-americanas, que tem se articulado e atuado em torno de demandas como: manutenção dos territórios e natureza, crítica ao desenvolvimento com bases predatórias e neoextrativistas, pela manutenção de sua diversidade cultural, étnica e linguística, pelo fortalecimento da relação entre os povos em âmbito nacional e latino-americano, e pela interrupção de todos os processos geradores de violência contra mulheres, territórios e natureza.
Ao longo de suas existências/resistências, os povos indígenas da América Latina têm concebido expressões e conceitos para um “novo léxico político” (PORTO-GONÇALVES, 2015), tais como: “sumak kawsay”/“sumaq kausay” (kíchwa/quéchua), “suma qamaña” (aymara) e “nhandereko” (guarani), “comunidade”, “dualidade” e “complementariedade”. Nos feminismos comunitários indígenas temos as concepções de “corpo-território”, “corpo-terra”, “entronque patriarcal”, que envolvem uma problematização da própria noção de complementariedade entre feminino e masculino quando transposta para relações entre homens e mulheres nas comunidades indígenas. Propomos, nesse espaço, esboçar um diálogo com essas noções e pensamento de autores e autoras que trabalham num horizonte de solidariedade e vivência de violências e opressões (sejam elas de natureza material ou simbólica) num horizonte de “decolonialidad” concebido em nosso continente latino-americano, Abya Yala.
Iniciamos com uma primeira aproximação com a noção de “corpo-política do conhecimento”, desenvolvida dentro das teorias decoloniais de atores como o porto-riquenho Ramón Grosfoguel (2009) e o colombiano Santiago Castro-Gomes (GROSFOGUEL & CASTRO-GOMES, 2007). Essa categoria surge para estabelecer um distanciamento da “ego política do conhecimento”, entendida como uma política do conhecimento alicerçada no “eu cartesiano”, desencarnado, deslocalizado e que se coloca como capaz de emitir enunciados imparciais e universais sobre o mundo. Para entender essa “ego política” os autores trabalham com a noção de “hybris do ponto zero” ou do “desejo do olho de Deus”, definida como o conhecimento que tem a pretensão de observar tudo de um ponto privilegiado. Essa mesma pretensão de “olho de Deus” e suas consequências para construção, manutenção e funcionamento do saber-poder e da tecnociência contemporânea também foi enunciada por autoras feministas como Donna Haraway (1995) e todo pensamento identificado com chamado Stand Point Feminism. Essa forma de enunciar o conhecimento a partir de um “ponto zero e universal” seria para esses autores e autoras o modo predominante no pensamento científico e filosófico ocidental, ne incluídas as ciências humanas e sociais, que também teriam um viés etnocêntrico e eurocêntrico.
Como possibilidades distintas dessa forma de interpretar o mundo e produzir conhecimentos, as feministas apresentaram a “parcialidade”, “objetividade forte” e os “conhecimentos situados”. Boaventura de Sousa Santos a “ecologia de saberes”; e os teóricos decoloniais as noções de “corpo-política do conhecimento”; e as feministas comunitárias as noções de “corpo-terra”, “corpo-território”.
Ainda que a nossa proposta neste artigo seja dialogar com as potências das ações coletivas protagonizadas especificamente pelas mulheres indígenas, faremos a ressalva da inter-relação entre indígenas e camponesas. Entendemos que, na vida, as relações são muito mais complexas e imbricáveis do que nos permitem expressar as categorias sociológicas. No caso de camponeses e indígenas (povos originários), essa interdependência tem se mostrado em ações em curso, como nas marchas e encontros em torno de temas comuns como o “bem viver”, os direitos e a proteção da natureza, dos territórios e dos povos/comunidades, gerando momentos de solidariedade. Por isso, abriremos espaço para discutir a relação entre uma noção de “sustentabilidade da vida ampliada” (TAIT, 2015), as práxis de mulheres indígenas e a crítica ao desenvolvimento e ao neoextrativismo, retomando algumas aproximações entre o princípio do buen vivir e os feminismos comunitários indígenas.
No Brasil, uma ação bastante simbólica que indica a aproximação entre indígenas e camponesas foi a recente vinculação entre a Primeira Marcha das Mulheres Indígenas e a Marcha das Margaridas, ambas realizadas em agosto de 2019. A Marcha das Margaridas acontece desde 2000, é considerada a maior ação organizada de mulheres da América Latina e conta com a participação de mulheres rurais, agricultoras camponesas e apoiadores/as de todo país. As raízes históricas da relação entre camponeses e indígenas também aparece nas designações de teóricos em âmbito latino-americano, como a interessante noção de “campesíndio”[4] de Armando Bartra (2010). O autor considera essa categoria híbrida mais apropriada para caracterizar alguns tipos de campesinato que emergiram no contexto latino-americano que foram moldados tanto por relações de exploração, escravidão e expulsão, no contexto de invasão colonial, quanto pela continuidade (ainda que com transformações) dessas relações de exploração em momentos posteriores e contemporâneos, presente em vários conflitos agrários e territoriais e contínuo processo de resistência ao capitalismo.
Para entender os novos protagonismos indígenas, como o feminismo indígena, incorporamos, neste artigo, novas referências, abordagens, conceitos e “léxicos”, que têm origem em lugares de produção de conhecimentos institucionalizados (academia e instituições de pesquisa), mas também, em publicações de pensadoras indígenas, e de coletivos indígenas (encontrados em páginas eletrônicas de alguns movimentos e encontros) e obtidos de declarações de mulheres indígenas publicados em materiais jornalísticos ou mídias independentes eletrônicas.
Re-existências nos territórios e novos léxicos políticos
Desde o início do século XXI, a América Latina vem acompanhando a rápida ascensão, seguida da rápida decadência, de governos identificados com a esquerda ou com o “progressismo”. Atualmente, segundo vários autores latino-americanos, já estaríamos passando por um “ciclo pós-progressista”[5], no qual se diluiriam ainda mais a identificação dos governos com pautas de esquerda tais como ações distributivas e protetoras do trabalhador/a ou alternativas a modelos “desenvolvimentistas” ambientalmente degradantes e socialmente excludentes. Para o uruguaio Eduardo Gudynas (2014 e 2015), os governos da América Latina apresentam-se com regimes políticos heterodoxos nos quais coexistem tanto novidades, que poderiam identificar-se com a esquerda, quanto com outras modalidades políticas mais conservadoras e que persistem desde as décadas mais neoliberais. Na última década, transitaram do campo da esquerda para o progressista e, finalmente, deixaram ser progressistas, na medida em que abandonam as ideias e políticas baseadas em pressupostos socialistas, libertários e se afastam de uma participação mais ativa dos setores populares para focar nos mecanismos eleitorais clássicos, distanciando-se assim, dos movimentos indígenas, ambientalistas e por direitos humanos.
Os governos de países como Brasil, Uruguai, Venezuela, Bolívia e Equador, que pareciam dispostos a realizar novos pactos com setores populares, ambientalistas e movimentos sociais – ainda que com distintos níveis de comprometimento e disposição a rupturas – vão enfraquecendo essas alianças. Pouco a pouco, porém, foram se mostrando menos dispostos a realizar as mudanças necessárias no sentido de outros modelos de desenvolvimento e transformações sistêmicas, se acomodando nas práticas de costume, retomando alianças conservadoras.
As disputas por modelos de desenvolvimento retomam sua força e, em menos de duas décadas, o continente assume hegemonicamente o modelo primário exportador baseado na mineração e agronegócio, o (neo) extrativismo exportador (VARGAS, 2016, p. 208). É nesse cenário de disputas entre correntes políticas conservadoras-neoliberais e progressistas que emergem correntes de pensamento aliadas a práticas coletivas populares de resistência territorial “para além do desenvolvimento”, tal como expresso nos textos das constituições federais e nos planos plurinacionais de buen vivir/vivir bien da Bolívia e do Equador. Em pouco mais de uma década, as práticas governamentais de implementação de ações para o buen vivir mostram seus limites e fortes contradições.
No entanto, mesmo perdendo espaço na política institucionalizada, as práticas de “buen vivir” continuaram existindo – e algumas vezes se fortalecendo[6] – nas organizações sociais e nos tecidos comunitários, seus locais de origem. As perspectivas teóricas do chamado “giro ecoterritorial” continuaram destacando-se a partir do território, tema caro ao princípio ético do buen vivir como forma de política e gestão comunitárias, inter e multiculturais e os direitos comunitários e da natureza, também evidenciando o persistente conflito capital/vida.
A cultura é cada vez mais mobilizada no plural e nas relações entre povos, línguas, cosmovisões e territórios. Não uma cultura em abstrato, mas uma cultura que aponta as “condições materiais necessárias para seus horizontes de sentido para vida” e “abrem um novo léxico teórico-político que é um desafio para as ciências sociais até aqui marcadas pelo eurocentrismo” (PORTO-GONÇALVES, 2015, p. 8). O território se fortalece como “categoria que reúne natureza e cultura”, não mais como definido pelo Estado, mas por relações entre pessoas e lugares, que permite múltiplas territorialidades, plurinacionalidades e autonomias territoriais, como vemos nos casos da Bolívia, Equador e México (PORTO-GONÇALVES, 2015).
Em termos de novos léxicos e desenvolvimentos teóricos e políticos nos interessa especialmente as produções em torno ao “bem viver”[7] e ao “pós-extrativismo”, que promovem uma revisão sobre o passado colonial e seus aspectos persistentes de desigualdade, discriminação e predação da natureza. Segundo os tradutores do livro de “O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos” (ACOSTA, 2016), seria possível estabelecer uma trajetória de utilização da expressão “buen vivir” no Equador e “bien vivir” na Bolívia, utilizadas no idioma português como “bem viver”. A origem da expressão remontaria aos princípios e valores de povos originários andino-amazônicos, como sumak (belo, primoroso, bom) kawsay (vida), na língua kíchwa/quéchua. O economista equatoriano Alberto Acosta, reconstitui essa origem e descreve, em termos gerais, o “bem viver” como uma proposta de vida em “harmonia” (reciprocidade) com a natureza e de complementariedade e solidariedade entre indivíduos e comunidade (ACOSTA, 2016, p.33).
Portanto, do ponto de vista teórico, “buen vivir” se difunde como termo utilizado por autores como Alberto Acosta e Eduardo Gudynas em seus textos originais, entre outros autores de língua espanhola, para denominar esta concepção de reprodução e produção social “para além do desenvolvimento” e com fortes raízes comunitárias e indígenas. Essa noção também foi introduzida como um princípio norteador das novas constituições do Estado Plurinacional do Equador em 2008 e Estado Plurinacional, Comunitário e Autônomo da Bolívia em 2009[8]. Ainda que, como uma noção geral ou princípio, seja incompatível com os estilos de desenvolvimento com bases neoextrativistas[9] amplamente dependentes de atividades econômicas (consideradas as principais em termos de exportação e indicadores convencionais), como a mineração e a extração de hidrocarbonetos e as práticas agroindustriais. Também é incompatível com uma gestão mercantilizada ou privatização de recursos naturais e da biodiversidade e sua exploração predatória. Atualmente existem distintos níveis de contradição e mesmo de desinteresse/abandono nas práticas dos governos e Estados Nacionais que tentaram ou chegaram a propor políticas integradas a esse princípio.
O desgaste do buen vivir por esse uso retórico e também a sua vinculação apenas aos princípios de povos originários específicos andino-amazônicos, de certa forma restringiu sua expansão no âmbito latino-americano e dentro do próprio “giro ecoterritorial”. Enquanto a crítica ao neoextrativismo e a busca por horizontes “pós-extrativistas” (GUDYNAS, 2016, p. 192) têm mostrado uma convergência mais direta com as lutas políticas nos territórios e as resistências a modelos de desenvolvimento econômico.
A expansão territorial – seja pela fronteira agrícola ou pelos chamados megaempreendimentos, como usinas hidrelétricas, plantas de mineração, grandes represas – vem agravando o processo de concentração da terra, expulsão e violência junto à “herança de uma Reforma Agrária inconclusa e de relações sociais perversas e desigualdades profundas que retroalimentam a discriminação étnico-racial” (PORTO-GONÇALVES, 2015). São processos de alto impacto social e ambiental que se mantêm alicerçados em antigas estruturas coloniais de venda de matérias-primas ou commodities e estruturas sociais de concentração de terra, expulsão de territórios e violência material e simbólica. Ao se referir a essas práticas, especificamente as relacionadas à agroindústria em nosso continente, a socióloga argentina Maristella Svampa relembra nosso lugar econômico global como “grandes exportadores de natureza” (SVAMPA, 2019, p. 41).
Autoras como Svampa lançam luz a essa geopolítica e economia global produtora de desigualdade social e injustiça ambiental na América Latina, impulsionada pelos megaempreendimentos e desnudam a violência para populações e territórios, gerada pelas atividades não apenas estritamente extrativistas, mas também agrícolas. No Brasil, parece importante pontuar a contribuição de acadêmicos/as e pesquisadores/as com trabalhos relevantes, como o da pesquisadora Larissa Mies Bombardi da Universidade de São Paulo publicado no livro Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com União Europeia em 2017. Este estudo reuniu um conjunto de dados e mapas de fontes oficiais (com dados referentes ao período de 2007 a 2014) sobre a expansão da fronteira agrícola do agronegócio e suas principais commodities (soja, cana de açucar, eucalipto e trigo) e a ampliação do uso de agrotóxicos (sendo o glifosato[10] o mais vendido no país), a intoxicação e morte em sua decorrência (mortes notificadas e informações de municípios que produzem este tipo de dado) que atingem, em maior número, homens, mas também mulheres, crianças e bebês – uma média de 148 mortes por ano e de 300 bebês com intoxicação entre 2007 e 2014 – além do aumento de tentativas de suicídios utilizando agrotóxicos. A maior quantidade de uso de agrotóxicos se dá nas regiões de expansão do cultivo de soja no Centro-oeste brasileiro, nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, além do estado de São Paulo, na região Sudeste, e Paraná e Rio Grande do Sul, na região Sul, estados que também estão entre os maiores consumidores. Lembrando que, na região Centro-Oeste, existe uma importante presença de territórios e etnias indígenas e é onde está localizado o Território Indígena do Xingu e o Parque Nacional Indígena do Xingu[11].
Durante o “Acampamento Terra Livre” de 2019 – maior encontro de povos indígenas brasileiros – uma das campanhas foi justamente para sensibilizar a comunidade internacional com faixas e divulgações com dizeres como: “Importar commodities agrícolas fortalece os inimigos dos povos indígenas do Brasil”. Na mesma semana do acampamento, as organizações participantes do “Seminário da Sociedade Civil União Europeia-Brasil em Direitos Humanos”, em Bruxelas (Bélgica), aprovaram uma recomendação por meio da qual defendem a adoção de “barreiras humanitárias[12]” à importação de commodities agrícolas do Brasil por parte da União Europeia. Segundo Cleber César Buzatto (2017), secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a adoção deste novo tipo de barreira pode acontecer de forma análoga aos critérios e procedimentos adotados em torno das “barreiras sanitárias” já adotadas pela União Europeia, neste caso impedindo importações em caso de violações de direitos humanos por parte do agronegócio e seus representantes no Brasil.
Em suas análises sobre o modelo de agricultura capitalista e a territorialização do capital, Bombardi (2017) afirma que houve uma transformação do Brasil num vasto território de produção de commodities como a soja, a cana e o eucalipto, que ocupariam atualmente o espaço equivalente a quase sete países como a Escócia ou seis como Portugal.
Mulheres indígenas e os múltiplos significados da defesa da natureza-territórios-corpos-terra
Para manter-se em funcionamento o capitalismo enquanto sistema global atua continuamente promovendo o desmantelamento de comunidades locais por forças mercadológicas globais, criando uma pressão constante sobre os territórios e bens comuns, destruindo ecossistemas inteiros e corroborando com a forte criminalização de movimentos sociais e ambientalistas. Com relação ao neoextrativismo e ao agronegócio, podemos afirmar que as mulheres têm sido pioneiras e em grande medida protagonistas na denúncia dos impactos negativos, na organização de resistências territoriais e redes de solidariedade para construção de alternativas inter-regionais e internacionais (TAIT, 2015; SVAMPA, 2019).
Para Maristella Svampa, as manifestações de mulheres fazem parte de vozes, ao mesmo tempo, pessoais e coletivas, que mostram “por trás da denúncia e testemunho a luta concreta e corporificada das mulheres nos territórios, mas também a dessacralização do mito do desenvolvimento e a construção de uma relação diferente com a natureza”. As ações dessas mulheres partiriam de uma voz “livre, honesta e própria”: que “questiona o patriarcado em todas suas dimensões”, coloca o cuidado “associado de modo indiscutível à condição humana”, considerando-o fundamental para repensar as relações de gênero e com a natureza (SVAMPA, 2019, p. 118).
No mesmo trabalho de Larissa Bombardi já mencionado, a autora retoma os princípios arquetípicos femininos e masculinos, afirmando que a terra no Brasil em vez de fertilizada tem sido “literalmente violentada com práticas que permitem a reprodução do capital, mas que, no limite, proíbem a existência humana” porque adoecem a terra, os agricultores, o ambiente e a população como um todo (BOMBARDI, 2017, p. 60).
Na América Latina, coletivos de mulheres camponesas e indígenas têm denunciado esse adoecimento da terra, territórios e dos corpos e vêm realizando trabalhos não apenas de denúncia, mas de compartilhamento de modos de vida e práticas políticas, de conhecimentos, a partir de seus territórios, vivências comunitárias, algumas vezes em solidariedade com mulheres urbanas e acadêmicas. A seguir citamos alguns desses coletivos de mulheres, mesmo sabendo que a resistência ecoterritorial seguramente é mais vasta do que os coletivos nomeados: Anamuri – Associação Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas (Chile); AMISMAXAJ – Asociación de Mujeres Indígenas de Santa María Xalapán (Jalapa/Guatemala); Mujeres de las comunidades zapatistas (México); Mujeres Creando (Bolívia); Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo (Brasil, Equador, México e Uruguai); Tzk’at – Red de Sanadoras Ancestrales del Feminismo Comunitario desde Iximulew (Guatemala). As redes: Red Latinoamericana de Mujeres Defensoras (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guatemala, Honduras, El Salvador, México, Peru, Uruguai) e Red de Feminismos Decoloniales. E as assembleias: Asemblea Feminista Comunitária de La Paz e Colectivo Ch’ixi (Bolívia); Asemblea de Mujeres Populares e Diversas (Equador).
Podemos associar essas ações coletivas a uma resistência ao “olvido do espaço” (esquecimento do espaço) pelos marcos interpretativos e pelas políticas que impõem uma primazia do tempo por conta do pensamento eurocentrado que classificou “as sociedades/povos/regiões do mundo num continuum de natureza à cultura, de atrasados a adiantados, onde os povos agrícolas/caçadores/coletores deveriam deixar de sê-lo para se tornarem urbano-industrializados, ou seja, numa versão que se quer única do devir societário/civilizatório” (PORTO-GONÇALVES, 2015, p. 41).
Como lembra a socióloga aymara Silvia Rivera Cusicanqui, as cosmologias e culturas indígenas estabelecem outras relações e significados para o espaço-tempo (CUSICANQUI, 2010). O tempo dos povos originários como os aymaras e quéchuas andinos também não é o mesmo tempo europeu “universalizado”: “o mundo indígena não concebe e história linearmente, e o passado-futuro estão contidos no presente” (CUSICANQUI, 2010, p. 55). E ainda como menciona a autora ítalo-mexicana Francesca Gargallo (2014) – a partir das experiências relatadas por Carlos Lenkensdorf – existem diferenças entre o próprio existir e o ser em algumas filosofias indígenas. Nesse caso, Lenkensdorf descreve suas experiências e reflexões sobre essas filosofias indígenas da América Latina após vários anos de convivência com mulheres e homens tojolabales de Chiapas (México). Para esse povo indígena, a identidade básica é o “tik”, vivencial e fluído, que pode ser entendido como um “nós” do qual fazem parte as pessoas da comunidade, os animais, vegetais, o mundo natural e seu devir (GARGALLO, 2014, p. 71).
E, finalmente, um outro aprendizado muito importante sobre os significados específicos do “buen vivir”/“sumaq kausay” tornou-se possível em uma viagem[13] que possibilitou a escuta e a vivência desses sentidos para as comunidades quéchua que habitam o Valle Sagrado (Peru) dentro do chamado “Sistema Ayllu” (comunidade/governança) do Parque de la Papa.
Paisagens e comunidades de Pisac e Parque de la Papa no Valle Sagrado (Peru). Fonte: Acervo pessoal
O “sistema de organização ou governança” do Parque de La Papa, é também a política de organização de um território compartilhado onde habitam cerca de duas mil famílias que se subdividem em diversas comunidades e são responsáveis pela convivência (“conservação”) de todo o ecossistema e pela continuidade do cultivo de 1.400 variedades de batatas. A organização do parque tem como princípio a geração e manutenção do “buen vivir”/“sumaq kausay” que envolve relações de reciprocidade e harmonia entre três “comunidades” (ayllus) principais que compõe a cosmovisão desses povos quéchua dos Andes peruanos. O três ayllus são: Runa Ayllu, que envolve a interação entre pessoas e comunidades, realização de projetos, interação com espécies ou elementos naturais “domesticados”; Sallka Ayllu, que inclui o silvestre, o natural, o “não domesticado”, o que é preservado, patrimônio biocultural e biodiversidade; e Auki Allu, a relação com o sagrado, com a sabedoria ancestral e tradições, com os “apus” (montanhas sagradas, entidades divinas) e com os direitos comunais e sua relação com a terra, água, acordos maiores com entidades externas. A manutenção de um equilíbrio dinâmico entre esses três ayllus é o que constitui o “buen vivir”/“sumaq kausay”.
Moradores explicam o funcionamento da gestão do Parque da Papa e a relação entre os três ayllus. Fonte: Acervo pessoal.
Os aprendizados sobre o espaço, o tempo e as comunidades expandidas (recíprocas e interdependentes) ou ayllus, ajudaram a entender melhor alguns aspectos que formam a singularidade das relações e conhecimentos de algumas etnias indígenas, e consequentemente, as concepções e propostas dos feminismos comunitários indígenas inseridos em culturas andino-amazônicas como as etnias quéchua e aymara.
Mulheres indígenas e feminismo comunitário
¿Cómo hacerle? Si tenemos una vida tan colectivizada como pueblos, ¿cómo empezamos a crear un poquito de palabras desde donde repensar nuestro universo cosmogónico? Al buscar formas y alguna metodología propias de mujeres indígenas y feministas, nos encontramos con el pensamiento de las compañeras aymaras. (…) Porque yo, Lorena, no estoy de acuerdo con los pilares fundamentalistas de mi cosmovisión, pero, sí, quiero una cosmovisión donde el ser de las mujeres evoque su libertad, que evoque la alegría, que reivindique esta sangre que llevo, estos pensamientos, estos colores, desde la creatividad de las mujeres. Quiero estar nombrada en esa cosmogonía, que me sienta parte de ella y vea el otro como mi par en la paridad política; necesito visibilizar la importancia de la energía de aquel, de aquella, de la piedra, del árbol, del agua (CABNAL, In: GARGALLO, 2014, p. 168).
Segundo Porto-Gonçalves (2015, p. 41), a primeira revolução do século XX em nosso continente foi protagonizada pelos “campesíndios” em 1910 no México, momento em que a redistribuição de terras (Reforma Agrária) emerge como processo vital para concretizar uma experiência democrática e de justiça social. As lutas atuais pela vida, dignidade e território resgatam esse passado de lutas e renovam as noções de um vínculo primordial entre cultura e natureza, entre vida humana e natureza.
Em tempos recentes as ações coletivas de camponeses/as e indígenas multiplicaram-se em processos de resistência, defesa e reconquista de territórios – são “ocupações”, “retomadas” “levantamentos”, entre outros processos em curso por todo continente. Em 1991 ocorre no Equador o Primeiro Levantamento Indígena Nacional, dirigido pela Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (CONAIE), revelando no cenário nacional e internacional os indígenas equatorianos como sujeitos políticos. Em 1994, no sul do México, em Chiapas, um exército de tzotziles, tzeltales, tojolabales e choles ocupam territórios colocando suas demandas próprias, desejo de autonomia, se opondo ao Tratado de Livre Comércio da América del Norte (NAFTA, sigla em inglês) e lançando a Primeira Declaração da Selva Lacandona, que é dirigida aos “irmãos mexicanos” e apresentava o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
Nessas ações, o que está no centro é “defender la Madre Tierra da expansão do capitalismo agrário, da mineração e da exploração da água”. As comunidades marginalizadas, perseguidas e negadas mostram sua capacidade de articulação e de gerar uma rede internacional de “territórios liberados” e “nações originárias” com uma “uma representação alternativa ao universalismo e Estado-nação” (GARGALLO, 2014, p. 30).
Como nos diz também a uruguaia Lilián Celiberti (2016), os povos indígenas, movimentos afrodescendentes, feministas, de mulheres pelos territórios, bens comuns e por soberania alimentar e justiça ambiental, mesmo em sua diversidade de ideologias e estratégias, têm contribuído para “novos sentidos comuns” e “novas dimensões de direitos individuais e coletivos que colocam no debate público a construção de alternativas ao capitalismo” (CELIBERTI, 2016, p. 318). Os percursos de origem dessas ações coletivas em Abya Yala[14] são parte de uma história de construções populares indígenas, camponesas e operárias que percorreram todo continente desde a ocupação colonial espanhola e da luta pela independência há mais de 500 anos (BARRAGÁN, LANG, CHÁVEZ e SANTILLANA, 2016).
Francesca Gargallo, em seu livro Feminismos desde Abya Yala. Ideas y proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en nuestra América (2014) nos traz propostas e pensamentos de algumas mulheres dessas centenas de povos originários de nosso continente, realizando para isso longas viagens e entrevistas. Este livro nos ajuda a ampliar a visão sobre as práticas de mulheres indígenas e como elas têm se aproximado/afastado dos campos dos feminismos já nomeados dentro ou fora de nosso continente. Francesa Gargallo é autora feminista de origem europeia, urbana e com trajetória acadêmica, explicita isso em seu livro e a complexidade de identificar-se com as lutas de mulheres indígenas que passam por processos de questionamento do patriarcado europeu e originário, o “entroncamento patriarcal” (“entronque patriarcal”). Para ela, um processo distinto – e que exige momentos de afastamento – dos feminismos acadêmicos e urbanos nos quais foi criada.
As mulheres indígenas concebem sua práxis a partir de outras relações e significados: não priorizam o monetizado, o indivíduo, ou partem de uma separação entre humanidade e natureza ou de uma negação dos corpos sexualizados, da maternidade e da complementariedade entre o feminino/masculino.
Algumas mulheres indígenas que concebem suas ideias dentro de marcos feministas próprios em povos originários de Abya Yala têm construído suas práxis em torno de um feminismo comunitário, uma expressão que tem agrupado visões e reflexões de vários coletivos de mulheres. A comunidade é entendida como “princípio inclusivo que cuida a vida” (PAREDES, 2010, p.78). Essa práxis se expressa na proteção dos territórios e na vivência comunitária das mulheres indígenas, a partir de suas próprias culturas e histórias: de relações singulares com seus espaços-tempos, sua ancestralidade, sentido de comunidade e natureza.
Na proposta de feminismo comunitário são centrais elementos como a “despatriarcalização/descolonização” do “corpo-território/território-corpo”, além de propor descolonizar a própria linguagem dos feminismos brancos (GARGALLO, 2014, p. 47). Como descreveu uma de suas representantes, a boliviana aymara Julieta Paredes, em entrevista publicada em maio de 2016[15], esse feminismo surge de setores populares ou empobrecidos (incluindo campesinos e indígenas) desconsiderados por feminismos tanto do Norte quanto do Sul. Ser constituído “a partir do outro lado, mas não unicamente para esse lado” seria o salto qualitativo do feminismo comunitário.
A partir daí, estamos revolucionando teórica, política e conceitualmente, e também em nossas práticas e no esboço da aspiração que temos: revolucionar o mundo a partir das mulheres, de nós com nós. (…) Nós montamos a plataforma de luta onde estão compreendidos os companheiros homens e as pessoas intersexuais. Isso é o que está mudando a base de construção política prática e de proposta do mundo, essa é a diferença do feminismo comunitário, que nasce na Bolívia, a partir da memória de nossas comunidades indígenas campesinas e a partir do processo de mudança (PAREDES, 2016, p.4).
O feminismo comunitário indígena apresenta formas de teorizar ricas em metáforas explicativas e descritivas como a própria união entre território-corpo ou corpo-terra desenvolvida em falas[16] e publicações da feminista comunitária xinka da Guatemala Lorena Cabnal (uma das fundadoras da Asociación de Mujeres Indígenas de Santa María Xalapán). Segundo Cabnal, o corpo é um espaço tão próprio quanto o território para constituição da identidade da mulher indígena, por sua vez relaciona-se com a espiritualidade indígena que implica a unidade entre tudo (água, terra, ar, bem-estar, liberdade, espiritualidade, comunidade).
Para Cabnal, o primeiro passo seria reconhecer que o corpo das mulheres foi historicamente expropriado. Por isso seria primordial, para as feministas comunitárias, recuperar este primeiro território de energia vital, depois refletir sobre onde vive este corpo e sua relação com os elementos da natureza e dos cosmos. E para que essa relação seja boa e harmônica, tanto corpos, como territórios, precisam estar saudáveis (CABNAL, 2010). Foi nesse processo que as mulheres indígenas começaram a falar sobre construir suas reflexões em torno da defesa do território, do corpo e da terra.
O patriarcado também é visto como uma ideologia que afetou e continua afetando profundamente o corpo-território das indígenas porque menospreza o feminino e justifica diversos níveis e formas de violência. A necessidade de avançar com a luta anti-patriarcal (“despatriarcalización”) é entendida como parte da recuperação da terra e do território porque “as violências históricas e opressões existem tanto para meu primeiro território, o corpo, como também para meu território histórico, a terra” (CABNAL, 2010, p. 23). Para dar conta desta forma específica de patriarcado e promover processos de despatriarcalização, a feminista comunitária Julieta Paredes (integrante da Assembléia Indígena Comunitária da Bolívia e um das fundadoras do Mujeres Creando) trabalha com o conceito de “entroque patriarcal” como forma de expressar a centralidade do patriarcado enquanto sistema de opressões, exploração, violência e discriminações no qual vivemos todxs (homens, mulheres, intersexuais, transexuais) e também a natureza (Paredes, 2017, p.4).
Paredes (2017, p.5-8) delimita uma origem mais geral da palavra “entroque” a partir do contexto político boliviano dos anos 80 para referir-se à união entre a esquerda e os nacionalismos. O “feminismocomunitário” (Paredes passa a adotar esta grafia unindo as duas palavras) é utilizado para entender a diferença e posteriormente o cruzamento entre os diferentes tempos e territórios que constituíram os patriarcados na Europa e os povos originários de Abya Yala. Para a autora, inicialmente, a diferença entre patriarcado europeu e originário não significa piores condições para mulheres originárias em relação às europeias[17]. No entanto, o processo de “penetração, violação e invasão” dos corpos-territórios no processo de colonização constitui justamente o início do “entronque patriarcal” que se consolidou ao longo do tempo em nossas sociedades como uma nova realidade (não se trata de uma simples justaposição), com significados mais profundos e estabelecimento de cumplicidades e interesses comuns de controle dos corpos-territórios, fortalecidos pelos mecanismos de colonialidade do pensar, sentir, agir e ser.
Esse entrecruzamento de patriarcados, para o feminismo comunitário, fortaleceu tanto as formas do heteropatriarcado europeu, quanto as formas específicas de violência que as mulheres indígenas enfrentavam antes do processo de colonização com o “patriarcado ancestral originário” (CABNAL, 2010, p.13) que será alvo da práxis da epistemologia feminista comunitária.
En ese sentido la categoría “patriarcado” ha sido tomada como una categoría que permite analizar a lo interno de las relaciones intercomunitarias entre mujeres y hombres, no solo la situación actual basada en relaciones desiguales de poder, sino cómo todas las opresiones están interconectadas con la raíz del sistema de todas las opresiones: el patriarcado. A partir de allí, inicia también nuestra construcción de epistemología feminista comunitaria, al afirmar que existe patriarcado originario ancestral, que es un sistema milenario estructural de opresión contra las mujeres originarias o indígenas (CABNAL, 2010, p.14).
A ação feminista comunitária parte deste mesmo corpo e dos sentimentos vivenciados nele para a recuperação da dignidade e beleza negada aos corpos femininos, um projeto de liberação coletivo e pessoal, mas nunca individualista, porque caminha junto com recomposição da comunidade. A “despatriarcalização” é um projeto feminista que entende que “as estruturas patriarcais estão sempre entrelaçadas com outras formas de dominação, mais ainda em zonas de brutal colonização”: “la despatriarcalización es una acción netamente feminista que inicia por el hacerse cargo de sí y del propio cuerpo para descolonizar su estética y para dotarlo de sentido, reconociéndole un derecho al placer y al ser” (GARGALLO, 2014, p.170).
Complementariedade e Comunidade
Na metáfora desenhada por Julieta Paredes o “povo/comunidade” é como um corpo com um ombro feminino e um masculino, não dependem um do outro, mas são inseparáveis. Para Paredes, não existe povo que não esteja formado por uma metade de mulheres das quais se retirou o poder de atuar e transformar sua história.
Porém, a mesma autora é bastante direta ao dizer que o “chacha-warmi” – conceito de complementariedade e horizontalidade nas relações entre homem-mulher para os aymaras – não funciona como “una varita magica que borra discriminaciones” (PAREDES, 2010, p.79). Um dos trabalhos principais do feminismo comunitário seria recuperar e trazer para prática concreta o sentido da justiça comunitária e a noção de dualidade sem hierarquia.
Os princípios e valores da comunidade se baseiam na “complementariedade e dualidade que regem o equilíbrio entre homens, mulheres e natureza para harmonização da vida”, características presentes na sexualidade humana e na construção de um pensamento cósmico sexual, onde alguns astros e montanhas são femininos e outros masculinos. O feminismo comunitário reflete sobre como essa dualidade e complementariedade poderia ser desvinculada de uma normatividade heteropatriarcal (CABNAL 2010, p. 14).
Essa transformação caminha junto com uma articulação política e territorial em torno de uma comunidade de comunidades (diferente da soma de comunidades patriarcais) e que permite um enfraquecimento do Estado e uma ação de descolonização/despatriarcalização que parte deste sentir e refletir a partir dos corpos, de uma memória feminista como história inscrita nos corpos, uma memória que pode curar os corpos-territórios adoecidos.
[…] mientras las mujeres trabajamos en el campo del Cuerpo, trabajamos simultáneamente por conquistar un Espacio (en el que podamos vivir sin violencia y con libertad para ejercer nuestra sexualidad y nuestros placeres), recuperar un Tiempo nuestro, producir un Movimiento (capaz de obtener espacios de decisión y participación política) y restituir una Memoria de conocimiento sobre nuestros cuerpos (PAREDES, 2010, p. 206).
A proposta do feminismo comunitário se alicerça na atuação a partir das comunidades, integrando comunidade e existência com “um profundo sentido de complementariedade e interdependência”, de um entendimento que parte do sentir e experimentar, da necessidade de cada um que constitui a comunidade (GARGALLO, 2014, p. 71). Portanto a categoria sentir é inseparável do pensar, o corpo da mente e os corpos da terra, tudo formando este sentido de ampliado de comunidade. Como ressaltam as feministas comunitárias, é um trabalho que envolve nomear desde os próprios idiomas e as cosmovisões, um trabalho de criação e recriação de categorias e conceitos para analisar sua própria história e a opressão patriarcal, mas também para nomear a liberação de mulheres indígenas, originárias, camponesas, rurais ou de povos. Hoje o feminismo comunitário é um movimento que reconhece alianças políticas, epistêmicas, cosmogônicas e territoriais em Abya Yala que atua num sentido próprio e profundo de descolonização/despatriarcalização.
No contexto latino-americano mais amplo de como essas propostas vêm sendo trabalhadas, temos o exemplo da Red de Mujeres Defensoras[18] criada em 2005 por mulheres trabalhadoras e afetadas pela mineração e outros empreendimentos neo-extrativistas. Essa rede que envolve atualmente mulheres de dez países – México, Honduras, El Salvador, Guatemala, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e Uruguai -, vem trabalhando nas práticas de resistência e reversão de violências nos territórios-corpos e territórios-terra em suas diferentes dimensões: estigmatização e violência psicológica; criminalização; violência física e sexual; feminicídios; violação dos direitos da natureza; despojo e contaminação; violação da soberania alimentar; e militarização dos territórios.
O sujeito coletivo mulheres indígenas no Brasil: algumas percepções e reflexões iniciais
Para finalizar as reflexões deste artigo, faremos um breve (e ainda inconcluso) mapeamento de acontecimentos recentes que indicam o fortalecimento de um protagonismo político e comunitário das mulheres indígenas brasileiras, buscando estabelecer reflexões sobre a emergência de feminismos indígenas brasileiros ou de ações e propostas que dialoguem com o panorama anterior do feminismo comunitário em Abya Yala.
Em nossa pesquisa com ações coletivas de mulheres indígenas e referenciais teóricos no campo dos feminismos latino-americanos, não encontramos, no Brasil, propostas ou conceitualizações semelhantes ao feminismo comunitário. Não encontramos também ações que indicassem a construção colaborativa de maneira direta entre feminismo comunitário e grupos de mulheres indígenas ou lideranças indígenas brasileiras. Isso não significa que isso não esteja acontecendo ou que não existam experiências intercambiadas e ideias compartilhadas entre indígenas identificadas com o feminismo no Brasil e outros países latino-americanos, mas que essas alianças ainda não estão tão evidentes, embora possam ser vislumbradas, por exemplo, na adoção recente de alguns termos comuns em seu léxico de luta, como: o corpo, o território e o bem viver, como por exemplo, o lema da Primeira Marcha de Mulheres Indígenas.
A elaboração desses apontamentos finais, com foco no contexto brasileiro, nos recolocou diante da complexidade inerente (e ainda inescapáveis para nós) que retomam o dilema sobre a necessidade e comunicabilidade de “novos léxicos teórico-políticos” para refletir junto com as emergências e contingências, para que não se estabeleça um sentido de disputa ou superioridade entre o que seriam “simples” ações de mulheres indígenas e os feminismos indígenas. Isso pode acontecer, por exemplo, ao interpretar os acontecimentos a partir de categorias com viés universalista, como as de “liderança”, “protagonismo” ou “autora”, como acabamos fazendo, ao selecionar as vozes que nos chegam da produção de pensamento ou propostas de mulheres indígenas. Pode acontecer também quando adotamos de alguma maneira o próprio “feminismo” como parâmetro para ação coletiva de mulheres.
Em seu livro Gargallo (2014) promove em vários momentos uma reflexão sobre os termos e limites de uma transposição linguística e de uma construção de narrativa que seja integrativa e íntegra, ainda que surja de alguém de fora da vivência cotidiana junto às comunidades indígenas. Em um desses momentos, problematiza o uso de palavras e termos exógenos quando se vai trabalhar junto aos projetos ou as epistemologias concebidas pelos povos originários. Como o uso da própria palavra “guia” ou “líder”, que podemos expandir para “liderança”, “protagonismo”. A autora reflete sobre como essas palavras fazem sentido apenas para algumas etnias e grupos de mulheres. O termo líder ou liderança, por exemplo, quando aplicado às comunidades indígenas, muitas vezes surge de um repertório exógeno a essas comunidades: por exemplo, de fóruns e fundos internacionais, como a própria ONU e suas práticas de realização de cursos de liderança ou formação de líderes indígenas. Esses termos, muitas vezes, não pertencem ao universo linguístico indígena, onde o significado de “alguém que queira dizer por todos” não existe separado de uma construção entre todos coletivamente (comunidade) e onde as hierarquias obedecem outras lógicas (GARGALLO, 2014, p. 98-99).
Considerando essas limitações, ainda que de forma provisória e sujeita a equívocos, colocamos a emergência de um sujeito coletivo e político “mulheres indígenas” entre os diversos povos e etnias brasileiras como um acontecimento relevante e recente no Brasil. Estabeleceremos como ponto de partida a visibilidade das mulheres indígenas em lutas nacionais mais amplas e declarações de lideranças indígenas mulheres, bem como, o crescimento da visibilidade de mulheres indígenas no âmbito da política nacional partidária.
O projeto “Voz das Mulheres Indígenas”[19]de 2016 refere-se a uma iniciativa precursora de um espaço na programação oficial do XII Acampamento Terra Livre (ATL) para discussão de assuntos pertinentes às mulheres indígenas para posteriormente validarem em assembleia uma Pauta Nacional de Mulheres Indígenas. Segundo informações do projeto divulgadas pela ONU, esse espaço permitiu a produção de um documento que reuniu contribuições de mulheres dos 104 dos 305 povos existentes no país. No ATL 2017 a Plenária das Mulheres Indígenas aconteceu pela segunda vez, dando ênfase às discussões sobre saúde no âmbito da Conferência Nacional de Saúde e da realização da 1º Conferência Livre de Saúde das Mulheres Indígenas.
Em 2018, Joênia Wapichana (Rede) foi a primeira mulher indígena eleita como deputada federal para representar o estado de Roraima no Congresso Nacional. No mesmo ano a líder indígena Sonia Guajajara, concorreu ao cargo de vice-presidente na chapa do candidato à presidência Guilherme Boulos (PSOL).
No 15º Acampamento Terra Livre em 2019, as mulheres indígenas se reuniram outra vez e deliberaram como pauta prioritária: “Território, nosso corpo, nosso espírito”. Esse tema foi escolhido como mote do calendário de lutas do movimento das mulheres indígenas que teve início em agosto e da primeira Marcha de Mulheres Indígenas realizada conjuntamente com a Marcha das Margaridas, mobilização de mulheres rurais que acontece desde 2000.
Mas essas mobilizações e a adoção pública de um sujeito coletivo “mulheres indígenas” significa que “existe feminismo indígena no Brasil?” – reproduzindo aqui a pergunta que serviu como título da matéria jornalística[20] publicada em março de 2019 com depoimento de lideranças indígenas brasileiras de diversas regiões e etnias (guajajara, wapichana, maxakali, tupinambá e pataxó). Esses depoimentos apresentam diferenças mas alguns pontos comuns: defesa dos territórios, preocupação com suas comunidades e com a violência (física, psicológica e moral) contra mulheres e necessidades de mecanismos específicos para indígenas (por exemplo, adequação da Lei Maria da Penha[21]).
Nesses depoimentos, foram expressas diferentes posturas quanto “ao assumir-se ou não enquanto feministas”, que vão desde uma negação, até o reconhecimento parcial e integral de uma incorporação do feminismo. Porém, a primeira postura, de negação ou reconhecimento com ressalvas e questionamento, parece prevalecer.
A advogada Potyra Tê Tupinambá, que atua na defesa dos povos indígenas, expressou que não se identifica enquanto feminista indígena, embora reconheça que as feministas apoiam o reconhecimento da existência de violências específicas sofridas pelas mulheres indígenas e que “muitas vezes as mulheres indígenas não tem voz”. Ainda sim, afirma que “o indígena tem um olhar diferenciado que, talvez, só convivendo ou sendo indígena para entender, ele não é sozinho, tem muitos atrás dele, então, esse pertencimento e essa força fazem com que eu não me identifique com o feminismo”. Em suas palavras “Eu não me identifico como feminista indígena. O movimento é de luta das mulheres indígenas. O feminismo não contempla as nossas pautas, dificilmente somos colocadas em debate. Nossa luta pelas mulheres indígenas é bem estabelecida. Acho que teria que ocorrer uma descolonização e ressignificação do feminismo muito grande para atrair os olhos em larga escala para nós”.
Sonia Guajajara, por sua vez, mostrou uma postura parecida e afirmou que a luta das mulheres indígenas não é separada da luta indígena. “Esse feminismo do jeito que é colocado não atende às visões das mulheres indígenas. A luta das mulheres indígenas está casada com a luta do movimento indígena. As pautas são interligadas, são lutas que se somam. É lado a lado, são as mesmas preocupações. Só que, agora, as mulheres estão sendo protagonistas dos direitos indígenas. Eu vejo atualmente uma maior visibilidade delas”. Porém, ela afirma também que pode se reconhecer no feminismo dependendo de como este seja entendido: “Essa palavra (feminismo) é um conceito que os brancos falam. Vamos contextualizar: o que é o feminismo? É a atuação da mulher? São espaços que a mulher assume? São responsabilidades? Se for nesse sentido, acho que sim (sou feminista), porque já venho atuando, sendo responsável por uma série de defesas e assumindo responsabilidades. Se isso for feminismo, que dizem que é a atuação da mulher, então sim”.
Já Joênia Wapichana afirmou que atualmente entende e se identifica com o feminismo de uma maneira geral. “A palavra feminismo era muito estranha para mim. Ela significava ‘mulheres que não gostavam de homens’. Mas, hoje, eu sei que feminismo significa mulheres que lutam pelos mesmos direitos que os homens, pelo direito de participar, de ter voz nas reuniões, direito de salário igual e de lutar por igualdade”. Ela falou ainda sobre a importância das mulheres indígenas ocuparem espaços de representação política: “A minha presença é importante porque temos uma voz que pode fazer diferença em termos de proposições, de fiscalização e de posicionamento nas discussões. É provar que podemos falar de igual para igual e nos colocar por nós mesmas sem mediadores, ampliando a participação social das mulheres. Assim, podemos trabalhar contra os estereótipos sobre as mulheres e os povos indígenas”.
Ao olharmos para esses depoimentos, vemos vários pontos em comum com a proposta de feminismo comunitário indígena, mesmo que a palavra feminismo não seja usada e, por vezes, até rejeitada. Na descrição das principais preocupações das mulheres indígenas, segundo essas “lideranças”, a centralidade da comunidade é entendida como relação entre homens, mulheres e natureza, como geradora de possibilidades de autonomia e emancipação, a partir dos corpos-territórios indígenas.
Finalmente, pensando sobre esses depoimentos, parece importante refletir acerca da falta de sentido e de valor para as mulheres indígenas de diferentes locais, etnias, culturas e línguas de serem reconhecidas enquanto “líderes”, “representantes”, “pensadoras” ou “feministas”. Seguramente, não para negar sua potência como sujeito individual e coletivo, mas para refletir sobre a reprodução de marcos teóricos e dispositivos de poder e, finalmente, para buscar formas de escuta, de diálogo e de ampliação da potência desses pensamentos e ações sem descaracterizá-los pela imposição de ideais ou modelos sobre as múltiplas experiências dos corpos-políticas.
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Recebido em: 15/11/2019
Aceito em: 05/12/2019
[1] Pós-doutoranda no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).e Professora do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural (Labjor-IEL-Unicamp). E-mail: marcia.tait@gmail.com
[2] Professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: ledagitahy@gmail.com
[3] Tese de Doutorado junto ao Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp (2014), desenvolvida com apoio da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). A mesma foi publicada como livro intitulado Elas dizem não: mulheres camponesas e resistência aos cultivos transgênicos (2015) e recebeu, em 2016, o prêmio Marcel Roche para obra de jovens pesquisadores pela Asociación Latinoamericana de Estudios Sociales de la Ciencia y la Tecnología (Esocite).
[4]“La comunidad agraria es ethos milenario, pero los hombres y mujeres de la tierra fueron recreados por sucesivos órdenes sociales dominantes y lo que hoy llamamos campesinos, los campesinos modernos, son producto del capitalismo y de su resistencia al capitalismo. Sólo que hay de campesinos a campesinos y los de nuestro continente tienen como trasfondo histórico el sometimiento colonial y sus secuelas. Los campesinos de por acá son, en sentido estricto, campesindios (BARTRA, 2010, p. 11).
[5] No livro Rescatar la esperanza: Más allá del neoliberalismo y progresismo (2016) diversos autores e autoras discutem as características do “progressismo latino-americano” e seus limites, entre eles: Eduardo Gudynas, Maristella Svampa, Alberto Acosta, Virgínia Vargas, Lilian Celiberti e Arturo Escobar.
[6] Posteriormente trataremos do tema da manutenção do buen vivir nas comunidades e um entendimento mais profundo do conceito a partir da concepção de sumak kawsay explicada por lideranças indígenas quéchuas no Parque de la Papa (Peru) e de outras concepções indígenas.
[7] Em outras línguas de povos andino-amazônicos também encontramos as expressões suma qamaña (aymara) e nhandereko (guarani). Para Acosta, este princípio geral, proposta ou mesmo projeto político não deveria ser visto como uma exclusividade dos povos latino-americanos do século XXI, no sentido de que não seriam os únicos portadores de propostas de vida comunitária e em harmonia com a natureza ou de uma ética que envolva todos os seres, propostas similares teriam aparecido em diferentes períodos e locais ao longo da história (Acosta, 2016, p. 95).
[8] No Estado Plurinacional, Comunitário e Autônomo da Bolívia e em sua Constituição de 2009 a expressão utilizada é bien vivir (ACOSTA e MARTÍNEZ, 2014 e ACOSTA 2016).
[9] É preciso esclarecer que a rejeição aos estilos de desenvolvimento baseados no extrativismo tem origem em uma definição de um tipo de extrativismo especialmente predatório associado aos grandes empreendimentos como mineração, extrações petróleo, ou mesmo, extração de água e recursos do solo de forma direta e indireta (agricultura industrial). Portanto, não tem relação com métodos de obtenção e manejo de recursos naturais de baixo impacto ambiental, como realizado por comunidades tradicionais no Brasil ou em Reservas Extrativistas (Resex) do país.
[10] O glifosato é um herbicida sistêmico e a principal substância contida nos produtos agrotóxicos mais utilizados e vendidos no mundo tais como o Roundup, originalmente produzido pela Monsanto – megaempresa da área de defensivos agrícolas e sementes que foi comprada em 2018 pela Bayer.
[11] O Parque Indígena do Xingu possui uma área de aproximadamente 27 mil quilômetros quadrados e completou 58 anos em abril de 2019. Primeira área indígena homologada pelo Estado brasileiro, em suas áreas e adjacências vivem cerca de 16 povos que fazem parte do que hoje é conhecido como Território Indígena do Xingu (TIX).
[12] O artigo está disponível na íntegra na publicação eletrônica do CIMI <https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Porantim-394_abr2017.pdf>
[13] Em setembro de 2019 realizamos dois dias de visita ao Parque de la Papa, seguidos de oito dias de convivência com lideranças indígenas quéchuas no Valle Sagrado durante a Academia Latino Americana de Resiliência Alimentar (ALLSA-Peru 2019).
[14] Esse é nome indígena que tem sido preferencialmente utilizado por diversos povos e movimentos para referir-se ao continente americano. Uma das origens e entendimentos possíveis para Abya Yala é Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento, segundo o Instituto de Estudos Latino-Americanos. Esta denominação tem sido muito utilizada em publicações sobre o tema dos feminismos indígenas no continente tais como Feminismos desde Abya Yala: Ideas y proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en nuestra América (2014) e Tejiendo de Otro Modo: Feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala (2014).
[15] A entrevista completa está disponível em http://www.ihu.unisinos.br/555380-o-feminismo-comunitario-e-uma-provocacao–queremos-revolucionar-tudo (Acesso em 29/09/2019).
[16] Algumas dessas falas estão disponíveis no Youtube. Indicamos a seguinte entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=n5qsA2XMU1o (Acesso em 29/09/2019).
[17] “Tomando en cuenta tres aspectos importantes para el sostenimiento de la vida, podríamos decir que en la Europa contemporánea de Abya Yala, las mujeres no tenían acceso directo a la tierra ni participaban del manejo de los ritos y, si lo hacían, eran perseguidas y llamadas herejes. Las mujeres tampoco podían manejar los conocimientos y saberes libremente, debían ser controladas por los hombres, sino eran quemadas acusadas de ser brujas. Mucho menos manejaban las mujeres el poder político y militar en sus territorios. Mundos muy distintos eran los nuestros en Abya Yala, donde las mujeres, nuestras ancestras, tenían derecho a la tierra: los hombres heredaban un tocapu, las mujeres medio tocapu; es decir, que las mujeres no se morían de hambre si un hombre las abandonaba, aunque no heredaban igual cantidad de tierra. Las mujeres manejaban la medicina de sus cuerpos y de las wawas, niñas y niños, nadie las perseguía ni las mataban por manejar este tipo de sabiduría. En estos territorios las mujeres eran autoridades políticas y militares, podían llegar a ser curacas y, por supuesto, manejaban los ritos de la luna, ritos que no les pertenecían a los hombres.” (PAREDES, 2017, p.7).
[18] https://www.redlatinoamericanademujeres.org/ (Acesso em 29/09/2019).
[19] Os objetivos e resultados deste projeto foram divulgados em notícias produzidas pela ONU: “O Voz das Mulheres Indígenas foi criado para elaborar uma agenda que defendesse as necessidades e interesses das mulheres indígenas levando em conta a diversidade entre as comunidades e também os seus interesses comuns. Somadas todas participantes, as integrantes das duas etapas do projeto representam 23 povos de 14 estados brasileiros.” Informações obtidas em: https://nacoesunidas.org/mulheres-indigenas-aprovam-1a-pauta-nacional-elaborada-com-contribuicoes-de-104-povos-e-apoio-da-onu/
http://www.onumulheres.org.br/noticias/mulheres-indigenas-organizam-plenaria-na-programacao-oficial-do-acampamento-terra-livre/, (Acesso em 29/09/2019).
[20] A matéria completa está disponível em: https://oglobo.globo.com/celina/existe-feminismo-indigena-seis-mulheres-dizem-pelo-que-lutam-23619526?fbclid=IwAR3WR-uN3qlCQjZ9ZofrdU3K7udxbCorJzt9uXf7HciiiJNvt8ZUHZ50Uz8, (Acesso em 29/09/2019).
[21] Decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2006, a lei trata de mecanismos específicos para coibição da violência doméstica e familiar contra mulher. É considerada pela ONU como uma das melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres.
Diálogos entre novos léxicos políticos e práticas comunitárias de cuidado em Abya Yala
RESUMO: A proposta deste artigo é discutir os potenciais epistêmicos, políticos e afetivos das práticas coletivas protagonizadas por mulheres indígenas na América Latina e possíveis caminhos para transformar modos hegemônicos de interpretação e, consequentemente, as “soluções” para a “crise socioambiental global” que vivenciamos. Este tema é continuidade de uma pesquisa (TAIT, 2015) sobre ações de movimentos de mulheres camponesas no Brasil e na Argentina, ampliada na pesquisa atual para a resistência das mulheres indígenas. Um dos pontos centrais é a perspectiva de produção teórica a partir do diálogo entre epistemologias e ações latino-americanas e produzidas por movimentos sociais que têm contribuído não apenas para a crítica feminista da defesa de direitos, autonomia e igualdade entre homens e mulheres (superação do sexismo e do androcentrismo), mas também, com a crítica desenvolvida especificamente no âmbito desses feminismos camponeses e indígenas ao individualismo, à mercantilização da vida e ao antropocentrismo. Assim, a discussão aproxima práxis feminista, ambiental e indígena para alertar sobre a crise contemporânea e a relação abusiva que se estabeleceu e intensificou entre humanos e natureza.
PALAVRAS-CHAVE: Feminismos. América Latina. Territórios. Conflitos. Natureza.
Dialogue between new political lexics and community practices-caring in Abya Yala
ABSTRACT: The purpose of the article is to discuss the epistemic, political and affective potentials of collective praxis led by indigenous women in Latin America and possible ways to transform hegemonic modes of interpretation and, consequently, the “solutions” to the “global socio-environmental crisis” that we experienced. This theme is a continuation of a research (TAIT, 2015) on actions of peasant women’s movements in Brazil and Argentina, expanded on current research on resistance of indigenous women. One of the central points is the perspective of theoretical production from the dialogue between Latin American epistemologies and collective actions has contributed not only to the feminist critique of the defense of rights, autonomy and equality between men and women, but also with the criticism developed specifically in the context of these peasant and indigenous feminisms of individualism, commodification of life and anthropocentrism. Thus, the discussion brings together environmental feminist and indigenous feminist praxis and warns of the contemporary crisis and the abusive relationship that has been established between human and nature.
KEYWORDS: Feminisms. Latin America. Territories. Conflicts. Nature.
LIMA, Marcia Maria Tait; GITAHY, Leda Maria Caira. Diálogos entre novos léxicos politicos e praticas comunitarias de cuidado em Abya Yala. ClimaCom – Povos Ouvir : A Coragem da Vergonha [Online], Campinas, ano 6, n. 16, Dez. 2019. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/marcia-maria-tait-lima-e-leda-maria-caira-gitahy-dialogos-entre-novos-lexicos-politicos-e-praticas-comunitarias-de-cuidado-em-abya-yala