Maria Cortez | Os sons à margem: como ouvir?

Título: Maria Cortez| Os sons à margem: como ouvir?


Neste trabalho, buscou-se criar uma música a partir de sonoridades gravadas nas aulas da disciplina “Arte, Ciência e Tecnologia” (Labjor-IEL-Unicamp), do segundo semestre de 2019, utilizando os áudios de vídeos que foram feitos ao longo dos encontros. As sonoridades ali presentes não foram captadas com o objetivo de se formar uma música: elas atravessam a paisagem, fogem à norma ou a encaixes a priori. Há, por exemplo, buzinas, passarinhos, vento batendo no microfone, falas desconexas, freio de caminhão, estalos de folhas – tudo aquilo que, em uma captação de som dita “limpa”, tenta-se evitar. A ideia, aqui, é dar centralidade aos sons à margem, que parecemos não ouvir, esse “mundo todo vivo” que nos envolve e com o qual geralmente nos relacionamos muito pouco – um devir-instante coalhado de pluralidades. Em consonância com David Lapoujade, pergunta-se: como ouvir aquilo que rotineiramente nos escapa? Em “Como ver?”, o filósofo questiona:

Como compreender que o fenômeno exprime um ponto de vista, que é animado por uma perspectiva própria? (…) Como fazer ver essas perspectivas? Haveria um método para fazer ver essas composições, uma vez esclarecido que fazer ver é ao mesmo tempo fazer existir ou tornar mais real aquilo que fazemos perceber? (LAPOUJADE, 2017, p. 46-47)

Na junção de sonoridades captadas ao acaso e produzidas por modos de existência das mais variadas formas (animais, vento, plantas, equipamentos, humanos), pretende-se trabalhar com “o tempo não pulsado flutuante próprio ao Aion”, ou seja, “o tempo do acontecimento puro ou do devir, enunciando velocidades e lentidões relativas, independentemente dos valores cronológicos ou cronométricos que o tempo toma nos outros modos” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 44). Nesse sentido, tentar-se-á evidenciar aquilo que pulsa independente da métrica, da regularização:

Aion, que é o tempo indefinido do acontecimento, a linha flutuante que só conhece velocidades, e ao mesmo tempo não pára de dividir o que acontece num já-aí e um ainda-não-aí, um tarde-de-mais e um cedo-demais simultâneos, um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar. E Cronos, ao contrário, o tempo da medida, que fixa as coisas e as pessoas, desenvolve uma forma e determina um sujeito (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 42)

Além disso, entende-se que esta proposta inspira-se na floresta como parceira de criação e pensamento uma vez que se buscou olhar para as diversas formas de existência sonora e como elas coabitam e criam constantemente novas relações entre si. A partir de um estar-junto, de um criar a partir do múltiplo, reforça-se também a ideia de que comunicar é criar encontros entre heterogêneos.

 

Referências

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 4. São Paulo: Editora 34, 1997.

LAPOUJADE, D. Como ver. In.: As existências mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2017. p. 43-59.

 


 

FICHA TÉCNICA

Concepção | Maria Cortez

Disciplina e orientação | JC 012 Arte, ciência e tecnologia, MDCC-Labjor-IEL-Unicamp, Profa. Dra. Susana Dias.

Pessoas que tornaram possível esta criação | Alessandra Penha, Alessandra Ribeiro, Alice Copetti, Alda Romaguera, Adriano Amarante, Bianca Lúcia Ribeiro, Carolina Avilez, Carolina Bernardes, Carolina Cantarino Rodrigues, Carolina Scartezini, Cris Monteiro, Eduardo Assad, Flávia Tamires, Gláucia Perez, José Ezcurdia, Luciana Martins, Mariana Vilela, Mariela Almeida, Marília Costa, Marli Wunder, Mauro Tanaka, Paula Carolina Batista, Rafael Ghiraldelli, Rodrigo Reis Rodrigues, Renato Salgado de Melo Oliveira, Sara Melo, Sylvia Furegatti, Tatiana Plens de Oliveira.

Comunidades e instituições que nos acolheram | Comunidade Jongo Dito Ribeiro e Fazenda Roseira, Fundação José Pedro de Oliveira e Mata Santa Genebra, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária e Praça da Paz da Unicamp.

 


 

Este trabalho foi desenvolvido no âmbito da disciplina “JC012 – Arte, ciência e tecnologia”,  ministrada pela professora Susana Dias, no Mestrado em Divulgação Científica e Cultural (MDCC), do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no segundo semestre de 2019. O problema que nos interessou pensar na disciplina neste semestre foi o de entrar em comunicação com um mundo todo vivo, com uma matéria viva, ativa e criativa (DELEUZE & GUATTARI, 1997; STENGERS, 2017; EZCURDIA, 2016; DADA & FREITAS, 2018). Para experimentar essa possibilidade buscamos pensar o que pode ser comunicar em parceria com a floresta, propondo encontros com diversos lugares, materiais e práticas em busca de aprender com diferentes ofícios a como ganhar intimidade com as florestas. Uma das questões que a floresta suscita de interessante para pensar é o fato de reunir uma diversidade de seres-coisas-forças-mundos e propiciar condições para encontros, com a possibilidade de gerar co-evoluções, co-criações. Nessas co-evoluções-criações estão sempre envolvidas ecologias de devires (negro, índio, animal, vegetal, criança, fungo, máquina, pedra, animal, linha, luz, elemental, cósmico…), a chance de que sejamos afetados e afetemos, de que nos engajemos em movimentos de alegre imbricação recíproca com as minorias, com os não-humanos, com tudo o que pode potencializar o pensamento e a relação com a Terra. Os encontros, e os exercícios de composição sensível entre heterogêneos feitos pelo grupo, e que estão publicados neste dossiê, buscam dar vigor ao chamado de pensar a comunicação como um perceber-fazer-floresta. Uma fé na “instauração” (SOURIAU, 2017; LAPOUJADE, 2017) de toda uma sensibilidade de outra natureza, que permita criar um campo problemático potente para lidar com as dualidades sujeito-objeto, realidade-ficção, humanos-não-humano, matéria-espírito. Uma atenção ao gestos que mobilizam uma “lucidez alegre” (STENGERS, 2017) e que não nos relegam à impotência, afirmando uma vitalidade e confiança no presente e futuro diante destes tempos desafiadores (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014; STENGERS, 2015; LATOUR, 2019).

Agradecemos aos parceiros de criação neste segundo semestre de 2019: Alice Copetti, Carolina Avilez, Gláucia Perez, Luciana Martins, Maria Cortez, Mariana Vilela, Marília Costa, Rafael Guiraldeli, Adriano Amarante, Alda Romaguera, Alessandra Penha, Alessandra Ribeiro, Alice Copetti, Bianca Lúcia Ribeiro, Carolina Bernardes, Carolina Cantarino Rodrigues, Carolina Scartezini, Cris Monteiro, Eduardo Assad, Flávia Tamires, Jose Ezcurdia, Marli Wunder, Paula Carolina Batista, Rodrigo Reis Rodrigues, Renato Salgado de Melo Oliveira, Sara Melo, Sylvia Furegatti e Tatiana Plens de Oliveira

 

Bibliografia

DADA, Faseyi Awogbemi; FREITAS, Glória. Dialogando com a semente de obi ou a floresta: um convite para conhecer um pouco da nossa tradição religiosa e cultura Yoruba. ClimaCom – Diálogos do Antropoceno [online], Campinas, ano. 5, n. 12. Ago. 2018 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=9478

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Trad. de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997, pp. 11-113. (Coleção TRANS).

EZCURDIA, José. Cuerpo, intuición y diferencia em el pensamento de Gilles Deleuze. Ciudad de México: Editorial Ítaca, 2016.

DANOWSKI, Débora; CASTRO, Eduardo Viveiros de. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie: Instituto Socioambiental, 2014.

LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: n-1, pp. 43-59, 2017.

LATOUR, Bruno. Bruno Latour: “O sentimento de perder o mundo, agora, é coletivo”. [Entrevista concedida a] Marcs Basset. El País, 31 de março de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/…/internac…/1553888812_652680.html Acesso em: mar. 2019.

SOURIAU, Étienne. Los diferentes modos de existencia/ Étienne Souriau: prefácio de Bruno Latour; Isabelle Stengers. Trad. Sebastian Puente. 1a. ed.. volumen combinado. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Cactus, 2017.

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naif, 2015, pp. 91-99.

STENGERS, Isabelle. Reativar o animismo. Trad. Jamile Pinheiro Dias. Belo Horizonte: Chão de Feira. (Caderno de Leituras No. 62). 2017. Disponível em: https://chaodafeira.com/…/2017/05/caderno-62-reativar-ok.pdf Acesso em ago. de 2019.

Projetos:

– Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-MC) – (Chamada MCTI/CNPq/Capes/FAPs nº 16/2014/Processo Fapesp: 2014/50848-9)

– “Por uma nova ecologia das emissões e disseminações: como a comunicação pode modular a mais intensa potência de existir do humano diante das mudanças climáticas?” (CNPq).

– Revista ClimaCom: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/

 

 

 

 

 

CORTEZ, Maria. Os sons à margem: como ouvir?. ClimaCom – Povos ouvir – a coragem da vergonha [online],  Campinas,  ano 6, n. 16. Dez. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/maria-cortez-o…gem-como-ouvir/

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SEÇÃO ARTE | POVOS OUVIR – A CORAGEM DA VERGONHA | Ano 6, n. 16, 2019

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