Gustavo Torrezan | Rádio Floresta
Título | Rádio Floresta
Para iniciar escrita devo situar o lugar de onde a emito. Sou um artista que transita por meios, áreas, como a própria artes visuais, a educação, o ativismo do software livre, a pesquisa e a gestão cultural, para citar algumas coisas. Coloco-me como um não especialista, com alguém que pela arte experimenta e se permite errâncias por diversas áreas do conhecimento, já que sem o rigor do especialista, o artista consegue produzir arte e também rasgar, riscar, esboçar, esticar, se apropriar, fazer deslizar e, especialmente, dobrar diversos campos do conhecimento, produzindo atravessamentos, mesclas, cooperações e tensões entre eles. É desse lugar que falo.
Desse lugar que busca percorrer trajetos diversos e construir seu “caminho caminhando”, experimentando e sempre me arriscando. Lugar que entende que o fazer traz um tipo de conhecimento singular que não está abarcado em teorias, conceitos e até mesmo no calor, na alegria que esse texto deseja produzir e compartilhar.
Bom, então vamos ao que interessa!
Meu contato com rádio livre se deu inicialmente no começo da década de 1990 na Rádio Paulicéia, que era uma rádio comunitária, como lá chamavam. Ela funcionou no Centro Comunitário da Paulicéia, bairro onde nasci e meus pais moram até hoje na cidade de Piracicaba, em São Paulo. Essa rádio foi fechada pela polícia.
Posteriormente tive contato com a Rádio Muda, já na metade da primeira década dos anos 2000, quando cursei artes visuais na Unicamp. A Muda foi e ainda é uma grande escola! Um laboratório experimental que ainda que tenha sua parede concretada buscando aniquilar seu funcionamento continua viva em nós e nas ondas que transmitiu e, na reverberação que geram encontros.
Eu não vou contar aqui toda minha trajetória. Vou me ater a um trabalho específico que num ato de nenhuma genialidade chamei de “Rádio Livre”.
Em 2017 encontrei o edital de inscrição da residência artística Barda Del Desierto que acontece sempre em janeiro, ocupando completamente a Escola Primária n. 135 na pequena cidade de Contralmirante Cordeiro, no norte da Patagônia Argentina. A edição de 2018 para a qual fui selecionado, provocava o recebimento de projetos que estivessem interessados no intercâmbio de conhecimento e experimentação de modos de aprendizagem buscando estimular reflexões sobre a escola como lugar de aprendizagem que pode ser atravessa por propostas criativas. Nas palavras dos curadores: “interessou saber como esse espaço da escola, suas estruturas arquitetônicas, hierárquicas, curriculares, éticas e afetivas, podem ser concebidas, imaginadas e transformadas pela imaginação para propor outras possibilidades para que a arte e a educação possam ser ferramentas de transformação”.
Assim pensei e comecei o trabalho Rádio Livre que inicialmente partia da construção de um pequeno transmissor utilizando uma placa controladora chamada de Raspberri Py e, a partir dela, a criação da rádio numa das salas de aula, desconfigurando aquele espaço. Com a ausência de interessados em construir o transmissor (e essa questão de saber fazer o transmissor e/ou outras tecnologias é algo importante a ser considerado) fomos direto a realização da rádio.
Para mim fazer a Rádio Livre #01 (tenho chamado cada montagem dessa rádio itinerante com um número) partiu inicialmente do interesse em criar e utilizar a rádio como dispositivo político e afetivo de contato, intercâmbio e aprendizagem coletiva. A partir da rádio pude conhecer pessoas daquela cidade de 2.500 habitantes, passar um tempo com elas, ouvi-las, viver efetivas trocas e fazer algo junto.
Conforme as pessoas da cidade iam chegando, em encontros vindos de motivações diversas entre as quais posso citar como exemplos: conhecer os estrangeiros que ocupavam a escola da cidade naquelas férias, depois de descobrir algo novo em seu dial/rádio que cotidianamente ouve; a inquietude de conhecer como funciona uma rádio; a oportunidade de divulgar suas músicas e canções; divertir-se ouvindo um som; reviver a nostalgia de como eram as rádios no tempo quando se ouvia com mais frequência; desejo de dialogar e usar o tempo que “teima em ser maior” quando se vive numa cidade pequena e ainda pelo “simples” desejo estar junto.
Para mim tudo isso interessava e é material do trabalho. Além desses interesses que já apontei, também indico um especial que é o de experimentar a rádio como potência para atravessar espaços, cortando-os e assim produzindo uma espécie de costura, um rasgo no território que conecta a escola às casas das pessoas, rompendo os muros, as grades ou mesmo os “protocolos sociais” que ordenam determinados afazeres que produzem rotinas que podem ser pouco alteradas. Nesse sentido, e dentro de minhas pesquisas artísticas, a experiência da Rádio Livre #01 na patagônia argentina funcionou com um experimento, um exercício de criação, cuja produção culmina na descoberta, em outro campo, daquilo que a artista Ligia Clarck chama de “linha orgânica”, que é a “linha” que separa o trabalho da moldura e que, depois de descoberta, passa a ser ativada, questionada, para então juntar planos que possivelmente pudessem ser vistos como separados, ou atém mesmo antagônicos e “impermeáveis”. Assim pensei o povoado de Contralmirante Cordeiro e as bardas do deserto (como chama aquela região do deserto patagônico), não como a “borda do deserto, mas como um espaço ativo para produção; por sequência a escola não como uma moldura mas como um campo de possibilidades a serem exploradas” (do meu texto no catálogo da residência barda del desierto 2018.). Desse modo “tanto barda quanto a escola se configuraram como planos que se misturavam num invento de ensino e aprendizagem [e arte] ambiental de uma singular liberdade experimental” que funde arte e vida (do meu texto no catálogo da residência barda del desierto 2018) (aqui a ideia de ambiental remeto aquela criada pelo artista Helio Oiticica).
Essa foi a primeira produção com esse trabalho rádio livre, que consiste numa rádio itinerante montada por um período determinado. Outras quatro vezes esse trabalho foi montado, em exposições na cidade de São Paulo em 2018 e 2019. A primeira foi na exposição na exposição “Especular” curada por Hena Lee e Mirtes Marins de Oliveira na Galeria Jaqueline Martins, cujo tema se dava em torno da ideia/pesquisa e/em performatividade. E a outra “Que Barra” curada por Thais Rivitti, Flora Leite e Carolina Lauriano no espaço independente “Ateliê 397” que é um espaço independente de arte contemporânea em São Paulo e, cujo tema da exposição se dava em torno dos 50 anos do Ato Inconstitucional n.5 (AI-5). A terceira foi durante a exposição “O que não é floresta é prisão política” na galeria ReOcupa da Ocupação 9 de julho, no centro de São Paulo e ainda na reinauguração da Escola da Floresta quando essa passou a ser no Ateliê 397. Sem me alongar nessas quatro apresentações, indico aqui o que gerou, o que ficou a partir da apresentação nessas duas exposições.
Veio-me à tona a força e importância do rádio como um produtor de uma política menor (Félix Guatarri, 1977), de um dispositivo de imaginação política já que “em nosso modo imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política. A imaginação é política. Eis o que precisa ser levado em consideração. Reciprocamente, a política se acompanha da faculdade de imaginar” (Didi Huberman, 2011, p. 60). Cito aqui esse trecho para indicar que o fazer Rádio Livre, partindo do campo das artes visuais, é tensionar o hiper determinismo da visão em detrimento aos outros sentidos, na sociedade contemporânea. Talvez estimular a rádio hoje seja estimular uma escuta ativa, que é um processo tão necessário e por vezes raro na sociedade de hoje.
Com o desejo de ir mais fundo nessa escuta ativa fui realizar um novo e talvez mais ousado projeto que é a criação de uma Rádio Livre permanente, pensei em criar uma rádio na Amazônia brasileira. Para isso precisava de verba para compra dos equipamentos e ela veio de um grupo/coletivo chamado aparelhamento. Eu fiz/faço parte desse grupo/coletivo.
No ano de 2016, logo após acontecer um golpe de estado que tirou a presidenta eleita de seu posto, o então “sucessor” gerou como uma de suas ações iniciais o fechamento do ministério da cultura (Minc). Disso um grupo de artistas, ativistas e militantes resolvem ocupar a sede da Fundação Nacional de Arte (Funarte) em São Paulo reivindicando a volta do Minc. Para financiar a ocupação, além da doação de shows e espetáculos que agitaram a cidade e as atividades na Funarte, artistas visuais nos quais me incluo doaram trabalhos e com eles foi feito um leilão que financiou a ocupação, a limpeza/reforma do prédio após a exitosa vitória da volta do Minc (ainda que no atual governo o colocou com uma secretaria anexada ao Ministério do Turismo) e a sobra do dinheiro foi decidido coletivamente que seriam financiadas ações de “contra golpe”. Assim foi feito. Foram financiadas diversas ações por vezes mais efêmeras e por vezes mais perenes como é o caso que vou contar da Rádio Livre. Com um pouco desse dinheiro doado pelo coletivo pude comprar parte da estrutura da rádio que foi montada e entregue para uma comunidade na Amazônia que possuo vínculo. Essa comunidade conhecia desde 2017 quando fui fazer uma residência artística naquela região, onde tenho amizades que me fazem voltar e dialogar com frequência com eles até hoje.
Com os equipamentos comprados parti para a Amazônia, para a comunidade de Careiro Castanho, que é uma das cidades relativamente próximas à Manaus e que está conectada, para além dos rios, pela conflituosa e dramática BR-319; uma estrada que liga em linha reta Manaus a Porto Velho, criada no contexto da ditadura militar que aconteceu no século XX no Brasil. Falar do contexto político de Careiro Castanho e da BR-319 exige uma especificidade e cuidado que o tempo daqui não torna possível. Deixo mencionado aqui o fato que esta região faz parte do arco do desmatamento no sul da Amazônia e é repleta de conflitos.
Aqui vale uma pausa para algumas perguntas:
Como colaborar com aquela região sem o sentido de ser assistencialista e sem ser colonizador, ouvindo o que e como eles querem falar? Como avançar na produção de trabalho artístico sem usar o outro, mas fazendo junto com o outro, amplificando a potência do encontro e produzindo algo, uma experiência que vai além da troca e que busca se aproximar de questões que é a de produzir reparações ou produzir processos efetivos que buscam reequilibrar a balança da desigualdade que é tão evidente quando artistas ou “pessoas de fora” aparecem, trocam e depois somem deixando tudo e todos quase que na mesma situação?
Assim começamos a montar aquela que passou a ser chamada de Rádio Floresta, pois queria que a partir daquela frequência proliferassem e convivessem em harmonia diversas e diferentes vozes.
Esse projeto ainda está muito vivo em mim, e o que falo pode ainda transformações quanto ao que penso sobre o que aconteceu, já que voltei de lá no início de fevereiro e, desde então, tenho voltado algumas vezes para visitar e colaborar com a Rádio Floresta.
A Rádio Floresta se configura como um corpo comum na comunidade do Careiro Castanho, onde pessoas engajadas em lutas, potencializam suas vozes, os trabalhos que já desenvolvem, e experimentam uma escuta ativa já que lá a rádio é o meio de comunicação mais utilizado e é talvez o único que está ligado enquanto se faz algum trabalho doméstico, na roça, na pracinha, na casa de farinha, no carro ou moto ou em outras dinâmicas cotidianas. A rádio é também um dos poucos meios de comunicação que chegam mata adentro, em comunidades e casas que estão nas margens dos rios, em igarapés, ou mesmo na mata onde o acesso é muito difícil, restrito e inclusive não há energia elétrica.
Para começar a rádio, primeiramente erguemos a antena. Como artista, para mim erguer no solo efetivamente uma antena é o mesmo que construir um anti-monumento. Uma “escultura” que ainda estando presente joga com sua ausência, desejando ser ausente na dinâmica da paisagem das cidades. Em Careiro Castanho não é diferente.
Ao subir a torre acredito que fincamos um marco que ativa aquele espaço, delimitando o território de audiência como um lugar ativo de produção e proliferação de experimentações a partir daquele dispositivo. Fincar uma torre é inaugurar uma espécie de laboratório aberto ou de um centro-cultural que não tem paredes e que atravessa conectando casas, rios, floresta, pessoas. Assim erguer uma antena de rádio livre é fazer fermentar uma política do comum, é produzir vizinhos como tal como se produz uma comunidade de alianças, adubando a imaginação política, como já falado aqui.
Com a antena montada foi a vez de instalar os outros equipamentos da rádio. E isso foi feito junto com um grupo de jovens interessados no uso (vale dizer que havia um burburinho grande de minha chegada na comunidade, da instalação da rádio e do início das transmissões).
Assim que os equipamentos foram instalados rapidamente microfones e computadores foram ligados e começaram as experimentações. Já nos primeiros segundos de vida da Rádio Floresta os que ali estavam presentes começaram a falar, se divertindo, evidenciando algo que depois se tornaria claro nas reuniões e na primeira organização de horários que surgiu. Ficou claro a coexistência de vozes e a escuta ativa.
Daquela salinha no Centro de Saberes da Floresta (como é chamado o espaço da ONG Casa do Rio naquela cidade) onde a rádio livre foi instalada acontece, tal qual numa floresta, a coexistência de vozes, uma polifonia sonora que busca reequilibrar forças e fazer surgir ainda mais vozes que afirmam o lugar de fala e a perspectiva que tomam. Daquela salinha vozes passaram a surgir vozes até então silenciadas que passaram a ser transmitidas, amplificadas, em total consonância com aquilo que propõe a pesquisadora Gayatri Spivak em seu fundamental livro chamado “Pode um subalterno falar?” e tal qual propõe a autora, não se trata de “simplesmente” o lugar de fala, mas de criar uma audiência efetiva, questão que naquele contexto a rádio possui. Trazendo uma outra questão muito importante não trabalhada pela autora nesse livro, se trata também do pertencimento efetivo dos meios, já que a rádio, os equipamentos e como falam, pertence a eles. Isso é importante dizer pois apesar da audiência nas redes sociais muito usadas e difundidas, nessas redes trabalhamos gratuitamente para empresas que modulam e controlam os conteúdos da audiência e lucram com nossas atividades e com nossos conteúdos. Isso não acontece com as rádios livres.
Esses sujeitos, ainda que marcados pelas desigualdades que estão inseridos, tomam consciência desse lugar marcado e se engajam para tensioná-lo, fazendo surgir e coexistir outras narrativas, outras possibilidades de proliferação da vida, experimentando fazeres, escutas e, sobretudo, engendrando a potência de uma política menor a partir do uso dessa “tecnologia menor”.
Referências
DIDI-HUBERMAN, G. A sobrevivência dos Vaga Lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
GUATTARI, F. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1977.
SPIVAK, G. C. Pode um subalterno falar?. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
Links
Residência artística Barda Del Desierto <https://bardadeldesierto.org/bdd2018/>
ONG Casa do Rio <www.casadorio.org>
Exposição Especular de curadoria de Hena Lee e Mirtes Marins de Oliveira <http://galeriajaquelinemartins.com.br/exposicao/especular>
Exposição “Que barra” de curadoria de Thais Rivitti, Flora Leite e Carolina Lauriano no Atelie 397 <https://atelie397.com/exposicao-que-barra/>
Escola da Floresta é uma projeto artístico de Fabio Tremonte <https://anarcotropical.tumblr.com/post/159111246198/escola-da-floresta-breves-notas-ou-um-texto>
Rádio Muda <http://muda.radiolivre.org/sites/muda/site/site_antigo/historia.htm>
Gustavo Torrezan
E-mail: ghtorrezan@gmail.com
TORREZAN, Gustavo. Rádio Floresta. ClimaCom – Povos ouvir – a coragem da vergonha [online], Campinas, ano 6, n. 16. Dez. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/gustavo-torrez…radio-floresta/
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SEÇÃO ARTE | POVOS OUVIR – A CORAGEM DA VERGONHA | Ano 6, n. 16, 2019
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