Linhas e correntes – os fios da trama de uma rede


Como admirei a magnanimidade do mar que não quer saber de pegadas!

 Herman Melville

A viagem teve início em Nantucket, ele, Melville, me convidou a pegar um mapa e a olhar, chamava aquela ilha de cotovelo de areia, um lugar tão fechado, tão cercado de água por todos os lados, uma “ilha perfeita”, foi como ele a definiu. Por isso começar naquele ponto, era importante, ser assim tão distante, tão cercado e tão definido. Logo o próprio Melville explicava que todas as peculiaridades e extravagâncias que descrevia a respeito de Nantucket pouco me diziam daquela misteriosa ilha, tudo aquilo era exótico para mim, era diferente, embora para Nantucket tudo aquilo fosse comum, era o cotidiano, o regular. Na verdade, nada diziam realmente da ilha, deixavam apenas clara a distância que eu próprio estava dela: “Mas essas extravagâncias demonstram apenas que Nantucket não é Illinois”

Neste sentido, Nantucket é por excelência um ponto de partida (ou de entrada como fui perceber mais tarde): pude realmente começar a experimentar aquela jornada a partir daquela ilha. Ao me mostrar que tudo que poderia usar para descrever Nantucket (tudo que era singular, específico) não poderia nunca me dizer realmente sobre Nantucket, Melville escrevia apenas sobre aquilo que me era reconhecível, aquilo que me era vizinho. Somente mais tarde pude perceber que as palavras de Melville faziam emergir singularidades que não eram apenas fruto de uma diferença perceptível pela sensibilidade de um estranho, iam para além disso, eram uma superfície interior (espécie de atol; ele tinha dito algo sobre um cotovelo). A ilha era uma ocorrência própria com suas estranhezas, que destituía suas peculiaridades no espanto com o qual eu a percebia, era uma estranheza oculta até para o meu sentimento de estranhamento. Bem mais tarde pude entender que todas as ilhas eram Nantucket: todas elas tão fechadas, tão cercadas de água por todos os lados, cada uma delas era uma ilha perfeita.

O mar não é uma metáfora para vida – o vulcão pode ser uma metáfora para o orgasmo, mas o mar não o é para vida. O mar é um vir a ser sensível da distância, dos espaçamentos, das ligações, dos caminhos e das conexões. A metáfora é o mistério reduzido ao conhecido para que não haja mais mistério, ela quer dar por entendido o “inintendível” por meio de um terceiro explicado. Mas o mar, quando evocado em Moby Dick, ou mesmo em outras obras literárias, não serve de explicação, mas emerge com a força de uma sensação pura, de uma experiência da distância e não de sua representação. O mar não vem para ser cenário ou explicação, o mar invoca em sua chegada a necessidade de partir, explorar e escrever, porque nada nele se reduz a um conhecido anterior. O mar é válido pelo seu indefinível. A metáfora é uma espécie de imagem, de representação da coisa, o mar não se faz passar pela vida, assim como Nantucket não se faz passar por outra ilha. Nem modelo nem universal, ambos, Nantucket e o mar, são potências justamente pelo que não está dito, pelo esforço que nos obriga a cavar por meio das palavras, pelo esforço de tentar dizer, que sempre falha. O que falta para dizer “vida” é o mesmo que falta para dizer “mar”. Daí a necessidade, mais importante que a própria vida, de navegar, ou de escrever.

Então como fazemos? Talvez devêssemos desenhar uma espécie de cartografia, uma distribuição de ilhas que se conectam por meio de linhas. Alguns chamam de carta de navegação, outros de rede, ou mesmo de literatura, aliança, talvez amizade. O importante é que seja feito de linhas e de pontos que componham uma superfície. E no fim, tudo é uma vasta rede de ilhas conectadas pelo mar, assim como dito por Melville: “A bordo do Pequod quase todos eram ilhéus, ou Isolados, digo, não pelo continente comum dos homens, mas porque cada Isolado vive num continente separado, que só a ele pertence”. Daí uma lógica da distância, e por isso a necessidade de a escrita ser uma cartografia.

Melville, muito antes de ser um escritor, é um cartógrafo e um tecelão. Moby Dick parte do preparo de uma oficina, da disposição dos instrumentos e da matéria prima (que naquelas páginas se confundem com citações a respeito de baleias) para forjar uma agulha, a ponta de um arpão que é Nantucket. A ilha nunca está completamente, ou suficientemente isolada, por isso Melville insiste em sua fórmula: tão cercada pela água. A ilha é preciso antes devir ilha, formar um ponto, um nó na superfície para que possamos penetrar. Mas assim que nela pisamos, revela-se arenosa; ela própria não sustenta seu devir: tão areia, logo se desfaz. Em um primeiro momento é extravagante, já no momento seguinte não é Illinois, por fim é Pequod, para então vir a ser mundo: “Sim, o mundo é um navio em plena travessia e que não terminou a viagem, e o púlpito é a sua proa”. Nantucket é costurada com o mundo, a ficção com a realidade, a vida com o mar, sempre formando um tecido inconsútil.

Primeiro Nantucket é um ponto de entrada, singular na iminência de ser único, de ser ilha. Melville conquista essa singularidade apenas para revelar o quanto ela é falsa, o quanto é impossível isolar Nantucket da América, para então percorrer o mar, o mundo. Assim, Melville aponta uma estratégia para um problema nosso: por onde entrar em uma superfície dispersa? Como acessar aquilo que não pode ser restringido? Cria-se um ponto, uma ilha, uma porta de restrição impossível. Ainda no começo de Moby Dick. Melville nos propõe a procura por Nantucket no mapa; como bom marinheiro, ele sabe que o importante em uma mapa são seus limites. Não se trata de conhecer ou reconhecer Nantucket, e sim de sentir a impossibilidade de seu isolamento, de perceber a superfície na qual a ilha se dispersa. Não se trata de fundar uma porta, mas de criar um ponto de entrada que logo se dispersa, que rapidamente torna-se indistinguível da superfície em que queria penetrar, pois desse modo é possível navegar sem ponto fixo.

Deus vos guarde de perder de vista essa ilha, pois jamais poderíeis tornar a encontra-la.

Herman Melville


[1] Graduado em História pela Unicamp, mestrado em Divulgação Científica e Cultural pelo LABJOR-Unicamp e atualmente doutorando em Teoria e Crítica Literária pela Unicamp, E-mail de contato: renatosmo@gmail.com.

Linhas e correntes – os fios da trama de uma rede.


Renato Salgado de Melo Oliveira[1]


MELVILLE, Herman. Moby Dick: vol. 1 e 2. Trad. Berenice Xavier. São Paulo: Abril, 2010.