Por | Allison Almeida
Editora | Susana Dias
Os estudos climatológicos relacionados às mudanças climáticas não seriam os mesmos sem o desenvolvimento de modelos climáticos. Trabalhando com sistemas complexos e inúmeras variáveis, estudiosos traçam panoramas do que está por vir e refletem sobre o que aconteceu no passado através de um exercício científico que envolve, entre outros elementos, apontamentos importantes sobre a ação humana no equilíbrio ambiental do planeta. Nesta área da climatologia, a ciência brasileira tem se destacado graças a produção de extensa literatura e a construção de um modelo nacional – O Modelo Brasileiro do Sistema Terrestre (BESM – Brazilian Earth System Model, na sigla em Inglês) – um projeto criado para pensar cenários de mudanças climáticas com a perspectiva brasileira. A Climacom convida para uma conversa com Paulo Nobre (INPE), um dos principais nomes da meteorologia no Brasil, e cientista-líder do componente Modelagem, no INCT-MC2, sobre os rumos atuais da modelagem e sua relação com as incertezas, que potencializam os saberes neste fascinante campo científico.
ClimaCom | A modelagem climática trabalha com sistemas caóticos, complexos e com inúmeras variáveis que tornam a incerteza uma espécie de Ethos deste fazer científico. Como as incertezas potencializam a ciência na climatologia? Como o senhor observa a relação entre incerteza e precisão no pensar da modelagem climática?
Paulo Nobre | Na modelagem climática, as incertezas são a única certeza. Assim também em todos os aspectos das ciências da terra, sociais, biológicas. O conceito de precisão, e.g. 1+1=2; leva a uma visão estigmatizada da ciência, e da “vida”, de que o “preciso” é o “certo”. Assim, a ciência da modelagem climática vive diante do paradigma, de certa forma inconciliável, de reduzir a incerteza como caminho para ganhar confiabilidade. Este foi o caminho adotado, por exemplo, pelo Programa Mundial de Pesquisa Climática (WCRP) da ONU. Caminho este que nas últimas várias décadas, mostrou pouquíssima evolução, se alguma, não obstante o considerável aumento no conhecimento e capacidade de representação matemática de inúmeros processos físicos, anteriormente desconhecidos da ciência moderna. No meu modo de ver, precisamos compreender de que forma podemos fazer as melhores escolhas, isto é, aquelas que nos levem a um contínuo processo evolutivo da capacidade de modelagem do sistema caótico do clima terrestre, contando com a incerteza e aprendendo a tomar decisões com ela. Procurar reduzir ou mesmo eliminar a incerteza, para então poder melhor decidir, me parece uma forma inadequada de lidar com um fenômeno complexo, sem compreender sua natureza, complexa.
ClimaCom | Os estudos de modelagem climática têm a ver com medições de mudanças climáticas passadas (recentes e mais antigas, paleoclimáticas) e a criação de cenários futuros possíveis. Como acontece essa relação entre passado e futuro? Poderia exemplificar? Que ferramentas e metodologias são utilizadas para explicitar essas relações? Quais são os desafios atuais da modelagem climática no que concerne a relação com o tempo?
Paulo Nobre | Poder-se-ia elucubrar infinitamente sobre o tema, cuja máxima pode ser resumida num pensamento expresso por Albert Einstein, em tradução livre: “nós que conhecemos a física, sabemos que o tempo é uma ilusão, porém persistente”. Na ausência total ou parcial do conhecimento sobre as leis regentes de um fenômeno, adotando aqui o pensamento de que “todos os processos são regidos por leis, sem exceção” (aqui, novamente, em pensamento formulado Einstein e complementado por Stephens Hawkins), procuramos no passado os momentos de ocorrência de um fenômeno, estudamos as intercorrências que as séries de dados disponíveis nos permitam inferir. Tal “algorítmo” nos permitiria, em princípio, “prever o futuro” a partir da constatação da ocorrência de um evento, e sua repetição, no passado. Contudo, há vários problemas com tal abordagem metodológica, o primeiro dos quais é de que o assim chamado “estado básico” nas ciências climáticas, isto é, as condições ambientais globais médias da época no passado (elas nunca serão “idênticas” – e aqui se interpõe novamente o conceito de precisão-certeza) sejam similares às condições atuais. Já neste quesito, o modelo de “perfect prog”, que consiste na previsão da ocorrência de determinadas consequências futuras devido à observação de um evento presente, tendo em conta que no passado tal evento esteve associado, predominantemente, à este ou aquele evento, falha. Isto porque vivemos uma condição onde o acúmulo de gases de efeito estufa (aqueles gases atmosféricos que naturalmente fazem do planeta habitável, termodinamicamente, por exemplo, vapor d’água, CO2, NO2… etc.) devido às atividades antrópicas decorrentes da utilização massiva de combustíveis fósseis como base do crescimento populacional, industrial, conversão do uso da terra, entre outros, torna as condições de contorno completamente díspares em relação aos registros paleoclimáticos disponíveis. A modelagem climática tenta, e de certa forma consegue, contornar tal limitação ao utilizar um conjunto de fórmulas matemáticas que descrevem as relações físicas entre processos naturalmente ocorrendo nos vários domínios interconectados do sistema terrestre, tais como os oceanos e a atmosfera, a criosfera, as florestas e os continentes. Não obstante, tal paradigma, calcado no reconhecimento da existência e atuação das leis da física, química, biologia na regulação do sistema terrestre, as representações matemáticas das leis que são conhecidas, dentro do universo de todas as leis existentes, algumas das quais sequer há noção da existência, é imperfeito. Uma forma singela de representar o tamanho desse desafio está na máxima de Edward Lorenz, pai da Teoria do Caos, ponderando sobre os efeitos do bater de asas de uma borboleta no Brasil… para a formação de um furacão no Caribe. Para o pensamento comum; nenhum! Mas sim para a compreensão dos sistemas altamente não lineares atuantes no sistema climático global, ou por assim dizer o sistema terrestre; embora (ainda, se algum dia) não conheçamos a matemática necessária para responder com “precisão” a tal pergunta, compreendemos que são fenômenos interligados para os quais não temos ferramental conceitual/matemático/computacional adequado para tratar.
ClimaCom | Historicamente os climatologistas têm dado uma atenção grande para o desenvolvimento de modelos que sejam mais específicos na construção de cenários que levem em consideração dados antropogênicos como o desmatamento, os aerossóis de carbono gerado por queima de biomassa e o uso extensivo do solo para atividades agrônomas. Quais os desafios de incorporar e medir as atividades humanas nos modelos?
Paulo Nobre | Paradigmaticamente, se trata de uma figura mental, de que “somos muito pequenos, infinitesimalmente pequenos, para que nossas ações possam afetar o planeta”. Tal conceito decorre de dois falsos paradigmas: (1) o primeiro é o do desconhecimento das consequências das opções e ações individuais no sistema como um todo. Seria o equivalente a perguntar qual o efeito do bater de asas de uma borboleta… enunciado por Lorenz. E aqui é de interesse notar que o paradigma errado, digamos assim, poderia levar à pergunta hipotética: “mas então, quantas borboletas são necessárias para que o bater de asas conjunto delas de fato cause um furacão em alguma parte do globo”! A razão pela qual tal pergunta não faz sentido, no conceito primário do Caos, é de que ela parte de um preceito linear (o Caos é em essência não-linear) de cascata de energia; o que naturalmente não é o caso. Seria o equivalente em dizer que montando um cavalo que cavalga a dez quilômetros por hora eu chegaria a tal destino em dez horas. A pergunta então seria: quantos cavalos eu necessitaria para chegar ao tal destino em uma hora!? Se, a velocidade dos cavalos fosse aditiva, alguém poderia arriscar a resposta… dez cavalos. Igualmente se poderiam dizer 600 cavalos, se eu desejasse vencer a distância em um minuto!! O problema com tal estrutura de pensamento é que as velocidades de translado não são aditivas; e mais cavalos gerariam ainda dificuldades inerentes às interações entre os cavalos e desses com o caminho, largura dos túneis e pontes, e tudo o mais associado. (2) o segundo é a incipiência da representação matemática da presença humana nos modelos climáticos. Assim, experimentamos uma condição de certa forma anacrônica, do ponto de vista da modelagem do sistema terrestre, na qual algumas das consequências das atividades humanas, como a poluição das águas, do solo e do ar; a remoção das florestas; a exaustão dos recursos pesqueiros, de solos agricultáveis; a superpopulação das cidades, entre tantas outras, alteram de forma significativa, geofisicamente, o planeta. No entanto, nossos modelos não contemplam as formulações matemáticas de ação-reação dos próprios agentes de mudança do ambiente. Atribuímos valores para tais ações mas não temos “pessoas” habitando nossos modelos.
ClimaCom | Desde que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas divulgou seu primeiro relatório em 1990, a climatologia e a modelagem evoluíram bastante ao ponto de reconfigurar nossa capacidade de entender os fenômenos ligados às mudanças climáticas. Uma das preocupações científicas encontradas no primeiro relatório era encontrar mecanismos que proporcionassem a produção de modelos climáticos com uma melhor resolução em termos de representatividade do que acontece em processos físicos em pequena escala (por exemplo, o que acontece nas nuvens). Passados quase trinta anos desde o primeiro relatório, quanto a modelagem climática evoluiu neste sentido de tentar explicar e medir fenômenos em pequena escala?
Paulo Nobre | Neste intervalo de tempo, a capacidade em representar processos de pequena escala na atmosfera, na biosfera e nos oceanos aumentou tremendamente, principalmente devido ao aumento da capacidade supercomputacional nos centros de climatologia que se dedicam ao estudo e à modelagem do sistema climático global. A velocidade de processamento do maior supercomputador destinado aos estudos do clima da década de 1970, o CRAY-YMP, hoje é superado pela velocidade de processamento de um smartfone. Além desse colossal aumento da velocidade de realização de cálculos numéricos nos supercomputadores, também evoluiu o conhecimento sobre os processos físicos e suas representações matemáticas. Embora a uma taxa infinitamente menor, como é natural no pesquisar sobre os processos da ciência.
ClimaCom | A modelagem climática é um tema transversal do INCT, pois envolve todas os demais subcomponentes. Como acontecem essas interações entre as pesquisas e pesquisadores da área de modelagem e os demais grupos de pesquisas e pesquisadores? Poderia nos dar exemplos dessas interações?
Paulo Nobre | Devido ao que eu acredito ser fruto de um campo bastante assimétrico no que tange à linguagem e aos paradigmas das diversas ciências abraçadas pelo INCT-MC, tem sido maior e mais frequente que os vários grupos se utilizem, quando o fazem, dos produtos dos cenários climáticos gerados, não somente pela subcomponente de modelagem do INCT, mas por diversos institutos ao redor do globo, do que o fluxo inverso de informação para a componente de modelagem climática. Assim, a taxa de assimilação de novos conhecimentos, desenvolvidos pelas demais subcomponentes do INCT apresenta uma taxa muito pequena, mas não nula, de incorporação no modelo que desenvolvemos. Exemplos de interação residem em artigos científicos utilizando os cenários climáticos desenvolvidos pelo BESM para proposição de ações de políticas públicas para o desenvolvimento sustentável do Nordeste Semiárido frente às mudanças climáticas; contando com as subcomponente de economia, energias renováveis e modelagem, além de Universidades e Institutos de Pesquisa no Brasil e no Exterior (Nobre et al. 2019), disponível no endereço: https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/IJCCSM-09-2018-0067/full/html).
ClimaCom | No que diz respeito aos estudos de modelagens climáticas, a primeira fase do INCT focou em desenvolvimento de modelos numéricos para construção de cenários ambientais que contribuíssem para uma melhor geração de estudos de impactos e adaptação às mudanças climáticas globais. Nesta fase foram desenvolvidos, por exemplo, estudos inéditos como a modelagem do efeito de descargas fluviais dos rios amazônicos, na circulação, temperatura, salinidade e biogeoquímica no Atlântico Tropical. Em relação a objetivos, o que podemos esperar do Tema Transversal “Modelagem Climática” no INCT-MC2?
Paulo Nobre | Inicialmente uma correção: durante a primeira fase do INCT-MC de fato focou-se no desenvolvimento do modelo acoplado oceano-atmosfera-biosfera global voltado para a geração de cenários globais de mudanças climáticas. Isto foi alcançado com relativo sucesso, contando inclusive com alguns resultados inéditos no que tange à compreensão de processos de interação oceano-atmosfera global com rebatimentos sobre a América do Sul. Os estudos dos efeitos das descargas fluviais dos rios amazônicos, que tiveram início no INCT-MC, continuam em fase de desenvolvimento e estudo; e deverão aportar novos conhecimentos para a compreensão do funcionamento sistema terrestre. Durante o INCT-MC2, daremos continuidade às pesquisas iniciadas anteriormente, agora utilizando o modelo na sua mais moderna versão, com parametrizações aprimoradas e a representação de processos atmosféricos, oceânicos e continentais de escalas espaciais mais finas. Além desses, deveremos contar com uma capacidade supercomputacional mais avançada, da ordem de cinco a dez vezes mais veloz do que aquela disponível durante o INCT-MC. No conjunto de um modelo que incorpora a representação matemática de um maior número de processos e um sistema computacional mais veloz, esperamos trazer à luz cenários de mudanças climáticas mais capazes de subsidiar as atividades de pesquisa das demais componentes do INCT-MC2.
ClimaCom | Países industrializados como Alemanha, França e, até mesmo Estados Unidos e China, reconhecidamente os maiores poluidores do globo, têm concentrado esforços científicos em estudos de modelos climáticos. Em relação a estes protagonistas no tabuleiro da geopolítica, como andam as pesquisas brasileiras em relação ao tema? O Brasil é um dos poucos países emergentes com estudos significativos nesta área.
Paulo Nobre | O Brasil se destaca entre os países de graus similares de industrialização (por exemplo, os BRICS) pelo desenvolvimento de sua própria capacidade de modelagem climática global. Contudo, inerente à uma condição antropológica particular histórica de Nação provedora de insumos (minerais preciosos, não ferrosos, ferrosos, madeira, grãos…) para os países industrializados, não desenvolvemos a cultura da geração de elementos altamente elaborados, como o é uma previsão ou cenário climático. Isto acarreta uma variabilidade nos próprios ciclos de financiamento, com períodos de maior afluência de recursos, seguidos de períodos de míngua. Esses próprios, elementos promotores de uma resiliência das estruturas de produção do conhecimento e de seus próprios pesquisadores. Além desses, o Brasil se define numa condição ímpar: recipiente da maior quantidade de diversidade biológica do planeta, em suas florestas e oceanos territoriais, o país continua desempenhando um papel de grande provedor de insumos com baixo valor agregado (por exemplo, grãos, isto é, água, minérios), fruto do extrativismo primário para os países industrializados. Tal “modelo” de desenvolvimento econômico condiciona uma pesquisa mais voltada para processos rudimentares da cadeia do conhecimento; em contraposição ao desenvolvimento de um modelo matemático do sistema climático global. Assim, sucessivas administrações federais se ejetam pela descoberta de jazidas de óleo no fundo do mar (onde deveriam ser mantidas para uma época futura na qual sua riquíssima estrutura polimérica pudesse ser utilizada para a produção de utensílios os mais variados (dos quais somente iniciamos a conhecer alguns com espanto na atualidade), alardeando imagens aos quatro ventos. Países com um mais elevado grau de desenvolvimento social-econômico, como exemplo da Noruega, não obstante produzirem um fantástico influxo de divisas pela exploração e exportação do petróleo; o fazem sem alarde, investindo, ao contrário, somas expressivas no desenvolvimento da pesquisa científica-tecnológica e cultural em seu próprio país.
ClimaCom | Na última década, o senhor junto com outros cientistas têm concentrado esforços para a criação de um modelo matemático de modelagem e variações climáticas exclusivamente brasileiro, e que leve em consideração variáveis particulares como o nosso bioma. Como os seus trabalhos em relação a esta perspectiva estão neste momento? Qual a importância de criarmos um sistema nacional de modelagem em vez de importarmos um modelo pronto de outro país?
Paulo Nobre | A estratégia de desenvolvimento de um modelo climático global no Brasil tem dois pontos de motivação principais. O primeiro é que de através do desenvolvimento de tal modelo se cria uma cultura científica de avaliação dos fenômenos climáticos através das diversas áreas do conhecimento. Ao desenvolverem-se teses nas quais estudantes das áreas tão distantes da área de modelagem de fluidos geofísicos, como por exemplo a agronomia, medicina, direito, para citar somente três, busca-se inserir o conhecimento sobre o que as mudanças climáticas de fato representam para o tecido social, de forma orgânica. Perguntas como: quais os impactos da manutenção ou expansão da matriz energética com base em combustíveis fósseis para os direitos difusos dos cidadãos ao ar e à água? Uma pergunta de difícil resposta, se não houver um corpo de juristas que compreendam as limitações e as incertezas, assim como o alcance e as “certezas” que a modelagem do sistema terrestre pode produzir. Assim se poderia citar condições análogas na medicina (ocorrência de calamidades de doenças transmitidas por vetores com pegada nas variáveis do clima, ou mesmo a ocorrência de períodos estendidos de estresse térmico, que podem levar ao óbito prematuro milhares ou mesmo milhões de cidadãos). A segunda motivação é que somente através do desenvolvimento de uma linguagem matemática expressa em modelos climáticos, como o que desenvolvemos no Brasil, é possível considerar o conhecimento sobre processos do sistema terrestre, tal como os biomas tropicais, o sistema de lagos e rios, no clima. O primeiro trabalho publicado a partir de estudos desenvolvidos no INPE com uma versão precursora do BESM, por exemplo, indicou, de forma pioneira, o papel da Floresta Amazônica como regulador do clima global (Nobre et al. 2009).
ClimaCom | O CPTEC / INPE desenvolve desde 2008 um modelo climático nacional, o BESM, sigla inglesa para Modelo Brasileiro do Sistema Terrestre. O senhor foi um dos líderes da última versão deste projeto, o BESM 2.5, que teve como um dos objetivos tentar equacionar importantes variabilidades climáticas, acontecidas principalmente no oceano atlântico, para uma melhor compreensão dos fenômenos das mudanças climáticas. Em relação a outras versões anteriores, o que a versão 2.5 trouxe de novidades para os estudos relacionados à previsão do clima e mudanças climáticas? Os cientistas brasileiros já trabalham numa nova versão do projeto buscando melhorias?
Paulo Nobre | A versão 2.5 do BESM foi aquela com a qual o Brasil inaugurou sua participação no projeto mundial de intercomparação de modelos acoplados, da sigla em Inglês CMIP fase 5 (Coupled Models Intercomparison Project, phase 5), com o artigo científico publicado no Journal of Climate apresentando o modelo (Nobre et al. 2013). Aquele foi um momento muito importante para a afirmação Brasileira internacional no âmbito da ciência mundial do clima, na qual se demonstrava a capacidade científica e institucional nacional para produzir um modelo climático global da classe dos demais modelos de nações com significativa capacidade científica, tecnológica, econômica e institucional. Presentemente há mais de dez grupos de pesquisa espalhados por todo o Brasil que trabalham diretamente com os cenários de mudanças climáticas gerados pelo BESM2.5, assim como parte deles contribui para a geração da nova versão do modelo, em curso. O INPE se mantém, nesses desdobramentos, como a instituição líder no desenvolvimento do modelo, através de seu Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC).
ClimaCom | O senhor é um dos principais cientistas da Rede de Previsão e Pesquisa no Atlântico Tropical (Pirata, na sigla original, em inglês), uma iniciativa acadêmica que há vinte e dois anos envolve pesquisadores do Brasil, Estados Unidos e França a fim de observar variáveis atmosféricas e oceanográficas entre a América do Sul e a África. Qual a importância deste tipo de cooperação internacional para os estudos brasileiros ligados a climatologia e quais as interações o programa vem monitorando atualmente?
Paulo Nobre | A Rede PIRATA de pesquisa e monitoramento do Atlântico Tropical representa, conjuntamente com o desenvolvimento do modelo BESM, uma evolução de enormes proporções para o avanço no conhecimento dos processos climáticos que afetam as Américas e a África. O Projeto PIRATA se reveste de uma importância adicional, por ser o resultado de parceria internacional entre o Brasil, França e Estados Unidos da América que já dura 22 anos, gerando, com isto as mais longevas séries históricas de observações horárias da interface oceano superior e atmosfera para o Atlântico Tropical. A rede PIRATA já entregou, neste período, mais de sete milhões de conjuntos de dados para atividades de pesquisa, que resultaram em mais de 300 artigos científicos publicados em jornais científicos com corpo editorial, com participação significativa dos EUA, França, Brasil e Alemanha. Para exemplificar a importância do conjunto de monitoramento oceânico e modelagem climática para o Brasil; foi utilizando o conjunto de dados das bóias da extensão oeste da rede PIRATA (PIRATA-SWE) e o modelo BESM, foi possível publicar de forma pioneira evidências observacionais e de modelagem do papel da atmosfera forçando o Oceano Atlântico Sudoeste, no que se chama de uma circulação termicamente indireta associada à gênese da Zona de Convergência do Atlântico Sul – ZCAS (Nobre et al. 2012).
ClimaCom | No artigo “Solar smart grid as a path to economic inclusion and adaptation to climate change in the Brazilian Semiarid Northeast”, o senhor e outros cientistas defendem a tese de que, num futuro próximo, a energia solar extraída no semiárido brasileiro poderá se tornar uma importante ferramenta de adaptação às mudanças climáticas visando um futuro de desenvolvimento sustentável desta região que é a mais pobre do país. Neste sentido, qual é o potencial econômico do semiárido para a produção de energia? Há estudos de modelos climáticos que abordem a questão a longo prazo?
Paulo Nobre | O enorme diferencial da geração fotovoltaica no Nordeste Semiárido, como meio de desenvolvimento econômico regional com inclusão social está em sua característica da possibilidade de geração distribuída. Isto significa que cada propriedade rural pode gerar energia elétrica localmente para enriquecer a cadeia de produção de alimentos e essências, além de poder comercializar o excedente gerado. Para se ter uma idéia do montante desta capacidade, basta notar que poder-se-ia dobrar quantidade de energia elétrica produzida anualmente no Brasil, pela implantação de painéis solares fotovoltaicos que ocupassem 10% do total das áreas de pastos degradados e terrenos desertificados no Nordeste Semiárido. Além do exposto acima, os estudos de modelagem climática desenvolvidos não somente com o BESM, mas com um grande número de outros modelos climáticos globais indicam uma tendência de redução dos totais pluviométricos anuais sobre o Nordeste. O que representa uma ainda maior disponibilidade de radiação solar anual. O conhecimento de tais características, presentes e futuras, já permitem ao Estado a geração de políticas públicas que levem em consideração tais condições, levando o Nordeste Semiárido a uma condição de geração de riquezas inalcançáveis através dos paradigmas anteriores baseados no provimento do escasso insumo água e remoção do rico bioma da Caatinga como fonte de energia.
ClimaCom | A comunidade da climatologia atenta para a necessidade do Brasil adquirir um supercomputador novo para um processamento de dados mais eficaz. O modelo atual, o supercomputador Tupã – adquirido em 2010 pelo governo brasileiro – está no final de sua vida útil e, segundo projeções, não deve funcionar plenamente até 2020. Um novo investimento numa ferramenta tecnológica custaria em média U$100 milhões, porém o atual cenário de cortes em áreas que envolvem ciência, tecnologia e inovação torna o investimento improvável a curto prazo. Se esta situação realmente se concretizar, há previsões do quanto esse cenário prejudicaria os estudos relacionados a modelagem e a climatologia por não poderem contar com um supercomputador?
Paulo Nobre | A hipotética ausência de investimentos para a atualização supercomputacional do INPE não afetaria somente a capacidade nacional de gerar os cenários de mudanças climáticas, cenários estes imprescindíveis para que outras instâncias do Governo Federal possam elaborar os estudos de impactos da ocorrência de eventos climáticos extremos (como as secas que afetaram a Região Sudeste nos anos de 2014-2016, ameaçando levar ao colapso não somente o abastecimento de água em centros urbanos da Região que somam mais de 40 milhões de pessoas, como também ao colapso da produção de energia hidrelétrica, como ocorrido na Usina de Três Marias); mas também afetaria a capacidade do CPTEC em gerar previsões de tempo e clima sazonal com consequências devastadoras na Economia. Contudo, sou de opinião de que diante da importância da continuidade do provimento destes serviços básicos, essenciais para as seguranças hídrica, energética e alimentar da Nação, certamente o assunto está sendo considerado pelos tomadores de decisão econômica estratégica nacional.
Bibliografia citada
Esta entrevista faz parte das ações do projeto INCT-Mudanças Climáticas Fase 2 financiado pelo CNPq projeto 465501/2014-1, FAPESP projeto 2014/50848-9 e a CAPES projeto 16/2014.