Paul Auster | Desaparecimentos
Titulo: DESAPARECIMENTOS (1975)
Paul Auster
(trad. Zé Frota/Naiana dos Anjos)
“Agora é, mas nem sempre foi”
Uma introdução à tradução de Desaparecimentos, de Paul Auster
Naiana dos Anjos / Zé Frota
Universidade Federal de Rio Grande do Norte
uma tradução a dois
éramos dois buscando abrigo
num jogo novo
num jogo que agora também nosso
de escuta silêncio e murmúrios.
Agora é, mas nem sempre foi, aconteceu no intervalo e também na impossibilidade das coisas que nunca chegam a se concretizar propriamente. Foi alguns meses antes daquele abril de 2017, aquele em que houve a mudança de rosto. Não existe palavra que descreva até hoje, mas não é uma daquelas coisas inefáveis é só que não se acha palavra pra isso e nem é necessário que haja.
O processo de construir a tradução de algo depende de vários fatores, primeiro têm que se encontrar algo extremamente caro que valha a pena a tradução, pelo menos foi assim. Depois, se for o caso de se fazer em par, tem que achar os dois certos para fazer o par. Alguéns que tenham afinidade de algum tipo e essa afinidade é necessária para que o trabalho seja significativo. No fim, deve existir certo tipo de compromisso, nesse caso um compromisso com a poesia e não necessariamente com o poema.
E assim nascerá ou nasce a tradução de Disappearances texto escrito por um Paul Auster de quase 30 anos, em 1975. Um livro de poemas que está ainda por se desvelar, porque seguimos a procura do significado da linguagem e dos sentidos. Desaparecimentos surge, então, como essa busca por uma linguagem que dê sentido no momento que devolve ou cria uma voz. Uma linguagem que traduza esse mundo de obstáculos e que ao mesmo tempo cria possibilidades de contorná-lo ou talvez de desconstruí-lo para, num ato libertador dele se apropriar – tradução nesse sentido é um produzir que visa desconstruir para dar lugar a uma voz que passa a habitar. É uma tarefa que já está na origem.
No que diz respeito à linguagem, acolher a contingência certamente é fugir ou talvez se desviar de toda construção que indique ou aponte para a noção de uma natureza humana, uma noção de que bem lá no fundo existe algo que é possível encontrar, que diga aquilo que é necessariamente desde sempre. Aquilo que é, é sempre num jogo de diferenças, é sempre numa relação com um fundo. Essa linguagem de fuga chega a ser um evento, mas daqueles com caráter de eventualidade que poderiam mesmo nem ser, que podem acontecer ou não. Quer dizer, tudo faz parte de um grande desvio do que se quer como imutável. Talvez isso retrate um pouco o caráter da tradução, considerando que, como seres situados acabamos por fazer escolhas contextualizadas, tocamos coisas em meio a coisas, realidades cambiantes, palavras em meio a tantas outras. Falamos de escolhas, mas escolhas que são possíveis e não necessárias.
Em Desaparecimentos temos um desafio: o do poema que parece percorrer distâncias na busca por uma fala que traduza um mundo erigido em pedras. Uma polis que é muro e entre muros, que silenciam e que criam silêncios e que ainda assim é um texto. É o encontro da voz própria – da fala – que nos doa vida – que nos assegura um lugar. A fala da tribo que está sempre por se fazer, onde encontro o lugar da escuta e do silêncio, das brechas para o falar. É próprio da linguagem a porosidade e a maleabilidade, pois encontro o meu lugar habitando seus poros, dando contornos novos a formas herdadas, fazendo dela (linguagem) meu habitat. Uma linguagem em permanente transitoriedade diante da circunstancialidade do mundo e do meu existir.
E o que significaria afinal habitar em meio a esses muros e pedras, em meio a essa cidade, em meio a esse pré-texto? Existir exige erigir meu próprio texto, encontrar minha palavra. Palavras sobre palavras como pedra sobre pedra, uma errância, um texto por si fazer e não algo que surge do nada e retorna ao nada. A fala que se intromete em meio a outras falas, que sobrevive em brechas, habitando silêncios, tomando forma na escuta – em meio a murmúrios e silêncio – dando forma àquilo que permanecerá diante do transitório. A circunstancialidade de nossa existência exige tradução – falar o mundo para dar vida a nos mesmos.
O desafio em traduzir Desaparecimentos está na busca por habitar suas metáforas, os deslocamentos dos vocábulos, conviver com sentidos ainda não cristalizados, com esse movimento inaugural. É em certo sentido tomar para si o desafio que está na origem de Disappearances que é o de encontrar uma linguagem que nos ofereça respostas que não estão dadas de antemão e estão sempre por se fazer, pois vivemos para encontrar a fala que fale o nosso mundo, para, então, desaparecer nele.
FICHA TÉCNICA
Título: Desaparecimentos de Paul Auster
Tradução: Naiana dos Anjos e Zé Frota
1
Da solitude, ele começa de novo como
se fosse a última vez
que iria respirar,
e portanto é agora
que ele respira pela primeira vez
para além do compreender
do singular.
Ele está vivo, e portanto nada é
exceto o que submerge no insondável dentro
de seu olho,
e o que vê
é tudo que ele não é: uma cidade
do indecifrado
evento,
e portanto uma linguagem de pedras,
uma vez que sabe que para o inteiro da vida
uma pedra
dará lugar a outra pedra
para erigir um muro
e todas essas pedras
formarão a monstruosa soma
de particulares.
2
É um muro. E o muro é a morte.
Ilegível
rabisco de descontentamento, na imagem
e pós-imagem da vida—
e os muitos que estão aqui
apesar de nunca nascidos,
e aqueles que ousassem falar
para dar vida a si mesmos.
Ele aprenderá a fala deste lugar.
E ele aprenderá a segurar sua língua.
Pois é esta sua nostalgia: um homem.
3
Escutar o silêncio
que segue a palavra de alguém. Murmúrio
da mínima pedra
moldada na imagem
da terra, e aqueles que falassem
ser nada
senão a voz que fala eles
para o ar.
E ele dirá
de cada coisa que vir neste espaço,
e dirá para o exato muro
que cresce diante dele:
e para isso, também, haverá uma voz,
que no entanto não será a sua.
Ainda que fale.
E porque ele fala.
4
Há os muitos-e eles estão aqui:
e para cada pedra que conta entre eles
ele exclui a si mesmo,
como se, também ele, possa começar a respirar
pela primeira vez
no espaço que separa ele
dele mesmo.
Pois o muro é uma palavra. E não há palavra
que ele não leve em conta
como uma pedra no muro.
Portanto, ele começa novamente,
e a cada momento que começa a respirar
sente que nunca houve outro
tempo – como se pelo tempo que viveu
ele possa encontrar a si mesmo
em cada coisa que ele não é.
O que respira, portanto,
é tempo, e sabe agora
que, se vive
é somente naquilo que vive
e continuará a viver
sem ele.
5
Diante do muro–
ele adivinha a monstruosa
soma de particulares.
Não é nada.
E é tudo que ele é.
E se ele fosse nada, então deixe-o começar
de onde se encontra, e como qualquer outro homem
aprenda a fala deste lugar.
Pois, também ele, vive no silêncio
que vem antes da palavra
de si mesmo.
6
E de cada coisa que viu
ele falará–
a cegante
enumeração de pedras,
até mesmo ao momento da morte–
como se por não outra razão
além da que ele fala.
Portanto, ele diz Eu,
e conta a si mesmo
em tudo que exclui,
que é nada,
e porque ele é nada
ele pode falar, que é o mesmo que dizer
não há fuga
da palavra que nasce
no olho. Dissesse ele
ou não,
não há fuga.
7
Está só. E a partir do momento que começa a respirar,
não está em parte alguma. Morte plural, nascida
na mandíbula do singular,
e a palavra que erguerá um muro
a partir da mais interna pedra
da vida.
Pois cada coisa da qual ele fala
ele não é–
apesar de si mesmo
ele diz Eu, como se, também ele, começasse
a viver em todos os outros
que não são. Pois a cidade é monstruosa,
e sua boca não sofre
nenhuma questão
que não devore a palavra
de alguém.
Portanto, há os muitos,
e todas essas muitas vidas
talhadas nas pedras
de um muro,
e aquele que começasse a respirar
aprenderá que não há lugar para ir
exceto aqui.
Portanto, ele recomeça,
como se fosse a última vez
que iria respirar.
Pois não há mais tempo. E é o fim do tempo
que começa.
D IS A P P E A R A N C E S (1975)
1
Out of solitude, he begins again as
if it were the last time
that he would breathe,
and therefore it is now
that he breathes for the first time
beyond the grasp
of the singular.
He is alive, and therefore he is nothing
but what drowns in the fathomless hole
of his eye,
and what he sees
is all that he is not: a city
of the undeciphered
event,
and therefore a language of stones,
since he knows that for the whole of life
a stone
will give way to another stone
to make a wall
and that all these stones
will form the monstrous sum
of particulars.
2
It is a wall. And the wall is death.
Illegible
scrawl of discontent, in the image
and after-image of life–
and the many who are here
though never born,
and those who would speak
to give birth to themselves.
He will learn the speech of this place.
And he will learn to hold his tongue.
For this is his nostalgia: a man.
3
To hear the silence
that follows the word of oneself. Murmur
of the least stone
shaped in the image
of earth, and those who would speak
to be nothing
but the voice that speaks them
to the air.
And he will tell
of each thing he sees in this space,
and he will tell it to the very wall
that grows before him:
and for this, too, there will be a voice,
although it will not be his.
Even though he speaks.
And because he speaks.
4
There are the many-and they are here:
and for each stone he counts among them
he excludes himself,
as if he, too, might begin to breathe
for the first time
in the space that separates him
from himself.
For the wall is a word. And there is no word
he does not count
as a stone in the wall.
Therefore, he begins again,
and at each moment he begins to breathe
he feels there has never been another
time-as if for the time that he lived
he might find himself
in each thing he is not.
What he breathes, therefore,
is time, and he knows now
that if he lives
it is only in what lives
and will continue to live
without him.
5
In the face of the wall–
he divines the monstrous
sum of particulars.
It is nothing.
And it is all that he is.
And if he would be nothing, then let him begin
where he finds himself, and like any other man
learn the speech of this place.
For he, too, lives in the silence
that comes before the word
of himself.
6
And of each thing he has seen
he will speak–
the blinding
enumeration of stones,
even to the moment of death–
as if for no other reason
than that he speaks.
Therefore, he says I,
and counts himself
in all that he excludes,
which is nothing,
and because he is nothing
he can speak, which is to say
there is no escape
from the word that is born
in the eye. And whether or not
he would say it,
there is no escape.
7
He is alone. And from the moment he begins to breathe,
he is nowhere. Plural death, born
in the jaws of the singular,
and the word that would build a wall
from the innermost stone
of life.
For each thing that he speaks of
he is not–
and in spite of himself
he says I, as if he, too, would begin
to live in all the others
who are not. For the city is monstrous,
and its mouth suffers
no issue
that does not devour the word
of oneself.
Therefore, there are the many,
and all these many lives
shaped into the stones
of a wall,
and he who would begin to breathe
will learn there is nowhere to go
but here.
Therefore, he begins again,
as if it were the last time
he would breathe.
For there is no more time. And it is the end of time
that begins.
AUSTER, Paul; FROTA, Zé; ANJOS, Nina dos. Desaparecimentos. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [online], Campinas, ano. 6, n. 15. Ago. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/paul-auster-desaparecimentos/
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SEÇÃO ARTE | A LINGUAGEM DA CONTINGÊNCIA | Ano 6, n. 15, 2019
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