Fernanda Cunha | A tragédia mais insignificante do mundo
TÍTULO: A tragédia mais insignificante do mundo
Entrevista [1]
“Enquanto dramaturgia, ‘A tragédia mais insignificante do mundo’ nasceu de um desejo pessoal de poder falar sobre feminicídio e masculinidade tóxica, de uma forma que os homens na sala pudessem assistir ao espetáculo sem levantar escudos de defesa, porque eu não estaria, abertamente, falando sobre homens que matam mulheres.
Eu nasci mulher, então aonde quer que eu vá carrego comigo a morte e a possibilidade de ser violada, isto aprendi desde muito cedo, quando me ensinaram que eu deveria sentar de pernas fechadas para não chamar atenção. Desde que me entendo por gente, enquanto ser que pensa, me afligem as possibilidades de viver como mulher no mundo, que parece ser muito masculino. Na graduação comecei a pesquisar a representação feminina e no mestrado pude aprofundar a reflexão sobre a vida e a morte das mulheres estudando três personagens de Shakespeare (Ofélia, Desdêmona e Lavínia). Deste estudo surgiu o desejo de fazer uma peça sobre a existência das mulheres, mas eu não queria mostrar a mulher violada, como é comum acontecer em obras sobre feminicídio, porque eu, particularmente, acredito que somos seres de linguagem e o que dizemos que uma mulher é, o que mostramos uma mulher sendo, uma mulher torna-se. Em “A tragédia mais insignificante do mundo” decidi me concentrar então no que precede a morte de uma mulher: o crime que a mata. A violência que mata as criaturas todas. Em “Otelo”, Emilia fala para Desdêmona: “Tis not a year or two shows us a man. They are all but stomachs, and we all but food”; desta fala veio o ímpeto de substituir mulheres por cabras (que tem duas tetas, dão leite e filhos, assim como se espera das mulheres). Não falar que a peça é sobre mulheres é uma maneira de fazer com que os homens na sala me escutem, de por um signo mais amplo em cena, e de, alguma forma, fazer com que ao final do espetáculo os espectadores se deem conta de que uma cabra parece muito um ser humano de tetas.”
O não dito, e inclusive o não dizível, sempre foram e continuam a ser objeto do teatro. Os artistas sempre tiveram um compromisso com o real, isto é, com tudo aquilo que foge à ordem da representação. Como e em que sentido se sente interpelada por tudo isso que procura aceder ao plano da expressão? E de que forma a linguagem teatral é capaz de ultrapassar os limites da leque das formas simbólicas com as quais articulamos o mundo e damos um sentido à história?
Há um livro da Laura Erber, onde ela escreve: “Era uma vez o artista contemporâneo e os abismos que ele arrastava por onde ia”. Desde que eu me deparei com essa frase, eu tenho pensado que todos os artistas (não só os contemporâneos) tem arrastado abismos enquanto ocupam lugar no mundo como artistas. Imagino que, talvez, ser artista seja justamente carregar consigo este lugar-limite, este lugar da possível perda e do abandono (ou entrega), este compromisso de carregar o real.
Enquanto ser humano no mundo sou atravessada de diversas formas pelo real, tudo que circunda é real: é real o pão que me alimenta, é real minha insatisfação com o atual governo, é real a guerra acontecendo em um outro país no velho continente, é real a voz de minha avô que escuto, é real a ausência preenchida que meu avô faz nos dias dela desde que morreu, é real a sede que sinto e que diminui quando bebo um gole d’água… enquanto artistas, todas essas coisas ganham carne na minha existência e eu as carrego aonde quer que eu vá, mesmo sem querer, como se houvesse uma força incontrolável de atração em tudo que me atravessa. E aqui falo por mim, é claro, não sei como é o processo de outros artistas, somente posso supor.
Eu preciso materializar meus atravessamentos, sinto essa necessidade de materialização da realidade porque, para mim, é como se eu desse forma a uma parte dos meus abismos e então posso vê-los e dizer “isto me compõe” e posso perguntar ao outro “também vês isso em ti?”. Isto pouco ou nada tem a ver com representação, no sentido de tentar apresentar o que me atravessa de outra forma a partir de uma leitura minha (como uma tentativa de pôr uma roupa nova num fato antigo), para mim é de fato uma possibilidade de expressão: e a arte torna-se um gatilho para a manifestação do real, que a ultrapassa, mas encontra nela lugar de atravessamento.
Se o artista é quem carrega abismos, eu entendo a arte como “vertigem”, nos moldes de Kundera que diz: “Vertigem não é medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados”. Compreendo a arte como um chamado brutal e irrecusável à realidade, não um mascaramento, uma representação somente.
Sinto que o teatro é capaz de romper a barreira da representação, do símbolo somente, tornando-se significante, centro articulador de discursos e ideias, pela articulações de percepções que pode engendrar: palavra, som, luz, cor, forma, movimento, tempo… tudo isso se articula para a criação de uma obra e há nisso uma potência criadora que muito me interessa, porque eu acredito ser revolucionária.
Em março deste ano eu fui para São Paulo assistir alguns espetáculos da Mostra Internacional de Teatro (MIT-SP), um dos espetáculos que vi se chamava “Cinco peças fáceis”, era um texto sobre Max Dutroux, assassino e pedófilo belga, condenado em 2004. Nesta peça o elenco era composto por um adulto (que apenas estava ali para organizar minimamente as cenas), e oito crianças e adolescentes com idades entre 11 e 14 anos. A articulação do tema, unida a idade dos atores, fez com que um leque de compreensões sobre o mundo me atravessassem. Numa determinada cena uma das crianças apontava uma arma para o público: este acontecimento, embora coreografado, era preenchido de uma realidade muito brutal, é muito violenta a imagem de uma criança segurando uma arma. Quando eu saí deste espetáculo pensei: “É por isso que eu faço teatro, para que as pessoas possam sentir o que eu senti hoje. Para que as pessoas possam se sentir muito humanas”.
Me interessa a articulação dos elementos dramatúrgicos, dos corpos atuantes e dos discursos, porque dessa relação, entendendo-a não como a tentativa de encerrar um sentido ou uma noção de realidade, mas como dispositivo para potenciar discursos, eu sinto que é possível se aproximar do real e da sua complexidade.
A contingência é frequentemente barrada ou mascarada pelo saber e o poder, e em geral é uma dimensão da existência que não encontra espaço na nossa propensão à viver as nossas vidas sob a forma do projeto. O que há na linguagem poética que não encontremos nas linguagens da ciência e da religião, da publicidade e da política, quando do que se traga é de pensar esse fundo informe e inumano sobre o qual conduzimos nossas vidas? Acredito que, desde a tragédia grega, esse sempre foi um tema importante para o teatro; mas qual é o lugar que ocupa concretamente na sua dramaturgia? Mais especificamente, como opera na posta em cena de “A tragédia mais insignificante do mundo”?
Creio que a arte, diferente do poder ou da religião (áreas do domínio humano que tendem a se imporem sobre os fiéis ou sobre os oprimidos usando a máscara da verdade ou a bota pesada da violência), antes convida-nos a mover nosso olhar e nosso universo epistemológico do que acorrenta-nos aos grilhões de uma certeza.
A arte desde sempre foi tomada por impulso e desejo de uma humana compreensão. O teatro é, sobretudo, uma arte que pede o encontro. O termo grego θέατρον (théatron) indica “o lugar de onde se vê”, eu penso que isto instaura, desde a etimologia, a necessidade da participação de um ser que vai engendrar uma camada de construção de sentido que está para além da obra, de modo tal que a obra só se completa neste contato.
Enquanto artistas, estamos à espera deste encontro, do olhar do público, que ao participar, ouvir, tocar a obra, toma-a para si e então, inevitavelmente torna-se parte do universo significante de minha obra. Há nisso um fenômeno extraordinário que possibilita a metamorfose de uma obra ao longo dos anos. Tomemos Shakespeare como exemplo maior deste fenômeno: Olho para minha estante e vejo nove livros de distintos autores de nacionalidades e épocas diversas, todos escrevem sobre a obra shakespeariana e leituras contemporâneas feitas a partir de uma mesma fonte. São tantas as compreensões sobre uma mesma obra, que poderíamos quase acreditar que trata-se de textos distintos ou que, magicamente, Shakespeare está reescrevendo suas peças ao longo dos séculos. Acredito que isto só é capaz porque a obra do Bardo não é hermética, não se centra no princípio da verdade, mas é, pelo contrário, o lugar da contingência, abriga sempre o espaço do “não dito”. Lúcia Vieira Sander certa vez escreveu que “os textos de Shakespeare são como um quebra-cabeça onde as peças que não estão têm de ser criadas por quem o constrói ou reconstrói”, isto modifica a imagem final revelada assim Shakespeare torna-se sempre novo, reinventa-se.
Creio que todo dramaturgo pós-Shakespeare tem o domínio maestral que o Bardo possui entre o dito e o não dito, este espaço de contingência, como objetivo maior, independente da estética ou gênero teatral que mais lhe agrade. Eu, enquanto dramaturga, almejo que meus textos jamais se encerrem em si, mas é também uma balança complicada esta da liberdade de significações e a completa abstração. Para a dramaturgia de “A tragédia mais insignificante do mundo”, partí de um princípio que era: conduzir , ou melhor, abrir espaço para a contingência a partir de uma estrutura muito simples que, com o auxílio da encenação como um todo, adquiriria camadas.
Em sua essência o texto é sobre o assassinato de três cabras por um homem, o que não é um acontecimento extraordinário visto que grande parte da população é carnívora e o abate de animais como cabras, especialmente aqui no nordeste, é algo banal. Justamente por este caráter, de princípio nada extraordinário, é que me interessa tal acontecimento, porque na encenação, nós do Teatro das Cabras, buscamos expor, criar diante do público e com o público a compreensão de como a violência pode despertar de formas banais e depois pode chegar a adquirir contornos dantescos. A morte de cada uma das cabras é uma releitura das mortes de três personagens Shakespearianas, sendo elas Desdêmona (Otelo), Lavínia (Titus Andrônico) e Ofélia (Hamlet), e há um espaço entre o bicho cabra e o bicho humano que tentamos aproximar, ou pelo menos explorar as similitudes e os reconhecimentos.
Quando leio ou assisto a uma representação de “Hamlet”, minha dúvida depara-se com a dúvida do príncipe e reconheço-me nos seus dilemas de humanidade, em “Macbeth” sou capaz de reconhecer a ganância e a sede pelo poder, em “Romeu e Julieta”, o frenesi e impaciência de minhas próprias paixões que antes devoram o tempo do que vivem-no. Tomo essas peças como exemplo porque este é o princípio maior que busco em “A tragédia mais insignificante do mundo”, há um plano de fundo universal, uma rede que sustenta de forma maior toda a representação e envolve, invariavelmente, o público: todos temos a capacidade de sermos violentos. Deparar-se com a possibilidade da violência, ou a violência expressa da forma como é posta em cena, não encerra o conjunto possível de significações da obra, mas, ao contrário, abre uma fresta na linguagem, dando margem para que o público construa conosco os entendimentos.
A cada vez que apresentamos a obra, ou quanto mais ensaiamos, algo novo se revela. Durante os ensaios abertos, os convidados nos deram retornos muito distintos sobre as significações da obra para cada um deles. Há quem dissesse que era uma obra muito dura, que sentiram-se intimidados em determinado momento, há também quem dissesse que era sobre feminicídio, outros uma reflexão sobre a própria capacidade de ser violento ou uma investigação sobre a masculinidade. Há também quem chorou durante a peça e quem riu durante as cenas. Esse amplo espaço de entendimento muito me interessa enquanto dramaturga, porque sinto que meu texto se refaz no contato com o outro e sempre me disseram que o teatro é uma arte colaborativa.
Suplementos da palavra, o corpo e o rosto, o espaço e o tempo, a música e a luz, a cor e inclusive o próprio ambiente, comportam uma miríade de combinações possíveis, que multiplicam os signos ou os colocam em variação. Entendo que o seu processo de criação começa pelo texto, mas o texto é sempre exposto à experimentação de todas essas variáveis. Como procede como autora em relação a isso? E como precedem para articular o texto com as linguagens colocadas em jogo pelo resto da companhia?
Na verdade trabalhamos com texto sempre sujeito a mudanças. A versão que hoje usamos é a quinta ou sexta. Do texto inicial ficaram poucas linhas e um fragmento de cena, somente. Creio ser essencial, para a forma de teatro que fazemos no Teatro das Cabras, o não endurecimento precoce de uma estrutura. O texto foi posto à prova em cena diversas vezes nos laboratórios de criação. Muitas das coisas que hoje configuram na obra surgiram à partir de improvisos. Partindo do texto ou da ideia nos primeiros textos, improvisamos tendo como princípio a repetição ou estados corporais distintos, ou realizando ações à partir do ritmo de uma música. Escrevi todas as primeiras versões sem rubrica alguma, deixando espaço livre para a criação e proposição da diretora, Heloísa Sousa, que muitas vezes me propunha coisas que eu não tinha enxergado como possibilidade.
Este trabalho duplo de dramaturga e atriz da mesma obra é um exercício de desprendimento muito rico, porque é claro que enquanto dramaturga concebo a cena imaginando uma forma para ela, mas entre meu trabalho de dramaturga e a concretização da apresentação do meu texto em cena, no meu papel de atriz, existem várias camadas de imagens e significações postas que não havia pensado inicialmente e foram criadas junto ao trabalho com Heloísa (diretora), Bex (musicista), Thuyza (produtora-performer) e Cléo (iluminadora).
Tomemos como exemplo a cena inicial: É a cena onde a perita adentra o espaço do crime, ela percorre toda a cena tomando notas e em silêncio apresentando a tragédia que mais tarde vai narrar ao espectador. Esta cena não existia no texto inicial, mas durante um dos laboratórios de criação, Heloísa pediu para que eu tentasse criar este corpo da personagem enquanto caminhava pelo espaço. Ela colocou como trilha a música “lascia ch’io pianga” da ópera Rinaldo. Percebemos, por esse encontro quase pelo acaso, pois foi uma música a princípio simplesmente posta para preencher o vazio, que ela era excelente para marcar o ritmo da cena. Adequamos então os passos, a gesticulação das mãos para melhor encaixar com a música. Posteriormente Bex entrou no processo para fazer a trilha sonora e resolveu refazer a música inicial, compondo uma música original. A nova música, além de outro compasso, que alterou o andamento da cena, acrescentou uma nova camada de significação, pois é cantada em português e Bex repete várias vezes o verso “deixe-me chorar”. Um novo conjunto de compreensão pode ser articulado somente pelo acréscimo desse elemento. Sinto que a obra ganha mais possibilidade de entendimento e isso só é possível porque Bex interviu, trazendo um novo elemento para além do que eu poderia imaginar inicialmente.
Acho muito positivo, enquanto dramaturga, permitir que o texto seja contaminado pelo processo.
Na sua ambiguidade essencial, os jogos da linguagem que compõem “A tragédia mais insignificante do mundo” convidam o espectador a uma experiência singular, que não se parece à experiência ordinária. O que pensam sobre essa relação, ao mesmo tempo intencional e imponderável?
Temos como proposta fazer um “teatro alucinado”, com isto queremos que o público vivencie conosco uma experiência muito real. A alucinação é quando o indivíduo identifica algo que não existe como sendo parte da realidade, é uma falsa crença, o que queremos propor é uma imersão do público nessa falsa realidade teatral. Para tanto pensamos em algumas estruturas de deslocamento como o texto, que parte de uma experiência simples e se complexifica, ou melhor engendra desdobramentos ao longo da peça. Também queríamos dar uma impressão mais semelhante ao cinema do que ao teatro na encenação, por isso corrigimos a coloração de todos os refletores para um tom mais próximo do branco frio, que melhor realça a cor do sangue falso que banha a cena do crime e do piso branco.
Existe muito cuidado em todos os elementos postos em cena, na disposição deles e na coloração. Existem muitas cenas que são iluminadas sem luz direta porque acreditamos que “A tragédia mais insignificante do mundo” é uma peça de penumbra, onde nada está prontamente revelado. Para nós todas essas coisas articulam discursos, que podem chegar ou não ao público da forma como esperamos, mas cremos que a intenção muito certa para nós da necessidade de cada coisa como está já é em si um canal para proporcionar esta experiência de imersão. É um convite, tudo que podemos fazer é convidar o público à alucinar conosco.
FICHA TÉCNICA
Artista: Fernanda Cunha
Obra: Entrevista – A tragédia mais insignificante do mundo
País: Brasil
Fernanda Cunha é dramaturga e atriz. Mestre em artes cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, integra o Teatro das cabras (Natal/RN), onde tenta dar forma em palavras às suas aflições e travestí-las de aflições universais. Gosta do teatro “porque a precariedade nos obriga à criação (e criatividade)”.
O Teatro das Cabras é uma companhia de teatro alucinado, feito prioritariamente por mulheres. Criado em Natal/RN foi idealizado em 2018 pela encenadora Heloísa Sousa e em 2019 faz sua estréia nos palcos com o espetáculo “A tragédia mais insignificante do mundo”. O espetáculo tem a participação de: Heloísa Sousa como encenadora, Fernanda Cunha como dramaturga e atriz, da iluminadora Cléo Morais, da performer Thuyza Fagundes, da Produtora Musical Bex e da designer Luisa Saad que esculpiu as cabras.
“A tragédia mais insignificante do mundo” é uma obra sobre o assassinato de três cabras, um homem que matou três animais e uma perita criminal que tenta compreender o que leva um bicho humano a matar outra criatura. É uma investigação sobre o despertar da violência, um convite ao público para que, deste acontecimento banal, possa surgir a oportunidade para a compreensão de algo maior.
[1] Entrevista: Eduardo Pellejero. Fotos: Caroline Macêdo.
CUNHA, Fernanda. A tragédia mais insignificante do mundo. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [online], Campinas, ano. 6, n. 15. Ago. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/fernanda-cunha…cante-do-mundo/
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SEÇÃO ARTE | A LINGUAGEM DA CONTINGÊNCIA | Ano 6, n. 15, 2019
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