Marcelo Díaz | Poemas

Título: Poemas


Sobre a linguagem poética, o fascismo e a contingência
A poesia é um acontecimento, nada pode prever que tenha lugar e, contudo, uma vez que acontece, vemos que tudo aquilo que a fez possível, e tudo aquilo que pela sua vez coloca em movimento, já estava aí, só que estabelecendo conexões inesperadas, fora do nosso radar. Que coisas ligou que acreditávamos não ter nada em comum? Como o fez? Toda a lição da poesia é em certo modo uma lição política. Como seria isso? Tenho comigo um poema de Adam Zagajewski (desde que o li, alguns anos atrás, volto a ele cada certo tempo):
“Tilos
Quanta doçura:
Anestesiaram a cidade,
Uma criança magrinha, que apenas
Ocupa espaço na terra,
E um cachorro,
E eu, soldado de uma guerra invisível,
E um rio que amo.
As tílias florescem.”
Poemas de primavera no século XXI, isso é possível? Por que não? E de guerra também. E de amor, claro. Leve e intenso. E político, neste mundo terrível poucas coisas são tão políticas como falar da primavera, com o seu ritmo local, não manejável, mesmo se já custa estabelecer quando começa e quando termina. Soldado de uma guerra invisível é o título que imagino para o livro que reúne o que levo escrito até o momento.
Da poesia me interessa o convite a submergir-nos em vários planos emocionais ao mesmo tempo, a possibilidade de que algo profundamente obscuro nos leve a umas palavras que nos arranquem um sorriso e isso desemboque num tom elegiático ou numa leviandade densa, serena e instável. Fora da poesia parece difícil poder pensar una tensão assim, mas a trama do mundo é algo assim, todo o tempo.
Não sei bem o que é a poesia, mas, como acontece a muitxs, posso reconhecê-la quando acontece.
Uma das formas nas que acontece, como dizia Reverdy, é quando realidades distantes se relacionam.
O que se apresenta é uma ordem inesperada: o que parecia impossível, torna-se possível. Agora, o que vivemos as 24 horas de cada dia dos 7 dias da semana é uma bombardeio acelerado de estímulos e informação, numa atmosfera na que predomina o medo, a sensação aterradora de algum perigo: de perder o trabalho, adoecer, o fascismo, xs otrxs, ser atacados na rua, envelhecer, ficar sozinhxs, não ter ânimo para acordar pela manhã… deixo reticências para que cada qual coloque o seu medo favorito. E esse bombardeio é psicotizante, porque se apresenta desconexo e absurdo, mas assume a forma da normalidade. Neste mundo grande, una normalidade sem razões, na que cada coisa se apresenta isolada (como escreveu faz muito tempo Drumond de Andrade: Ilhas perdem o homem), é inabitável. Vivemos o paradoxo de una normalidade inabitável. Por isso a volta do fascismo com outras roupas, porque oferece uma saída simples para uma realidade que nos confunde e aterroriza. Uma saída na que cada coisa tem o seu lugar inamovível e inquestionável. A linguagem poética tece outras relações: pacientes, distantes, a priori imperceptíveis, polifônicas, inesperadas. Constrói ao seu modo uma ordem que não é a preexistente. Da uma forma à experiência que se desvia da forma pré-digerida que nos oferecem os meios de comunicação, o protocolo, a rotina, o fascismo. Porque a saída da instabilidade programada do capitalismo não pode ser nunca a monolíngua fascista, pelo contrário, no capitalismo do século XXI o fascismo não é contingente, é um complemento necessário.
Tenho por língua nativa o fascismo / a impossibilidade do fascismo para dizer os nomes do real. Escreve a poeta galega Chus Pato em Fascínio. Desprender-se dessa língua para adquirir outra, sempre balbuciante, em melhores condições de dar conta da experiência de viver num mundo desconcertante e hostil, é a tarefa da poesia.
Há um grafitti na Ponte Negra, sobre os carris dos caminhos de ferro da cidade onde vivo, que diz:
“Tudo o que não passa também é a cidade. Longe de ser um comentário resignado sobre a impossibilidade de que aconteçam coisas em Bahía Blanca, como poderia entender-se numa leitura rápida e pouco atenta, sempre o interpretei como uma lição de poesia, uma chamada a não aceitar a normalidade bahiense, e tentar mover-se numa espécie de Bahía multidimensional”.

Essas poucas palavras abrem uma espécie de portal às muitas cidades possíveis, passadas, presentes e futuras. É poesia, e é uma declaração política; ou, melhor: porque é poesia, é uma declaração política. Fazer de cada momento de vida o ponte de cruzamento e abertura às (muitas) realidades possíveis poderia ser a função poética da política ou a função política da poesia. “Estamos numa encruzilhada de caminhos que partem e de caminhos que regressa”, diz o último verso de A cerveja do pescador Schiltigheim, poema que abre A rua do buraco na meia (1930), de Raúl González Tuñón.

Mesmo quando não possamos dizer bem o que é, e se veja modesta, menor, frágil, a poesia tem algo de rede de seguridade que nos envolve na queda. Bem, talvez esse movimento de procurar o
que não podemos dizer bem o que é, para fazer presente o que apenas podemos considerar possível, seja o que estamos necessitando.

Marcelo Díaz em resposta à pergunta feita pelo editor do dossiê “A linguagem da contingência”, professor Eduardo Pellejero. 

 


FICHA TÉCNICA

Poemas

Artista: Marcelo Díaz

 


Marcelo Díaz nasceu em Bahía Blanca (Argentina) em 1965. Estudou Letras na Universidad Nacional del Sur. Atualmente realiza o mestrado em Cultura Pública na Universidad Nacional de las Artes. Integrou o grupo de arte público Poetas Mateístas. É um dos coordenadores do Festival de Poesía Latinoamericana de Bahía Blanca e edita o site de poesia NAU (www.naupoesia.com).

Publicou  Berreta, Libros de Tierra Firme, Buenos  Aires, 1998; Diesel 6002 , Vox, Bahía Blanca, 2002; Laspada, El Calamar, Bahía Blanca, 2004;  Es lo que hay (poesia reunida), 17 grises, Bahía Blanca, 2010; Díptico para ser leído con máscara de luchador mexicano (plaquette), Editorial Subpoesía, Buenos Aires, 2013; Blaia, Ediciones Liliputienses, Cáceres, 2013, e 17 grises, Bahía Blanca, 2015; La estructura del desequilibrio, Ediciones Liliputienses, Cáceres, 2017; Grandes Éxitos (en castellano), antología poética, Vox, Bahía Blanca, 2018.

Poemas

IGLU BRANCO SOBRE FUNDO BRANCO

Existiria a crença de que os esquimós têm mais de vinte palavras diferentes para dizer vinte tipos distintos de gelo e de neve.

Existiria, por exemplo, uma palavra esquimó para dizer o gelo que se quebra ante o menor contato com um pé pequeno.

Outra palavra para a neve caindo.

Outra para a neve caindo pela noite.

Outra para a neve caindo pela noite iluminada por uma lanterna.

E mais uma palavra ainda para dizer a consistência esponjosa da neve, pela noite, caindo na palma da mão direita depois de tirar-mos a luva de pele de foca, não sem esforço, com os dentes (porque a mão esquerda sustenta, ainda, uma garrafa).

E assim por diante…

Numa superfície regida pelo branco, o corpo e a linguagem haveriam-se calibrado como um instrumento de altíssima precisão para incubar no inferno gelado do mesmo um mundo de diferenças, e habitá-lo. 

Agora, a linguística guarda sérias reservas sobre isso tudo…

 

 

PROBLEMA Nº1 

Quanto demora uma toupeira em cavar um túnel atravessando uma cidade de três-centos mil habitantes pela noite, se todos permanecem deitados, a toupeira avança a 90 centímetros por hora, quando de repente alguém liga a luz e pergunta para você: dorme?

 

HO CHI MINH CITY

O homem de Saigon cruza o mar da serenidade. Aparece e desaparece. Agora está, agora não está. O homem que agora está é uma sobra ténue, e o homem que agora não está é uma sobra em fuga por um túnel invisível. O homem de Saigon traça um triângulo de ferro, cava uma cidade na lua. Cheira o vento entre as crateras e desaparece. Agora está, agora não está. Os braços a frente, as costas vergadas e o nariz e os olhos e os pés fazendo mapa no corpo, na escuridão. A toupeira de Saigon é um sensei lunar. Enrolado sob a superfície, vê a chuva de napalm no jardim de ferro, vê as nuvens de fósforo branco avançar como num quadro expressionista, vê cair os cachos de bombas dos B-52. Cava uma cidade na lua. Crateras na superfície e túneis no centro da terra, como você pode ver nessas fotos que pescou na internet, com um cara sorridente que se dobra sobre si mesmo para circular pelos corredores; além desse mapa da aviação norte-americana que parece um Pollock.

 

Bemvindos a Cu Chi!

O guia que agora está recebe aos turistas e os signos de exclamação sustentam as paredes sob a superfície, e o guia que agora não está conta que o sensei da lua de Saigon semeou uma semente de serenidade na sua cabeça, e a viu germinar na escuridão.

 

DÍAZ, Marcelo. Poemas. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [online],  Campinas,  ano. 6, n. 15. Ago. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/marcelo-diaz-poemas/

BAIXAR O TRABALHO ARTISTÍCO EM PDF


 

 

SEÇÃO ARTE | A LINGUAGEM DA CONTINGÊNCIA | Ano 6, n. 15, 2019

ARQUIVO ARTE |TODAS EDIÇÕES ANTERIORES