André Vinícius Araújo | Cultura e besteira
André Vinícius Nascimento Araújo [1]
O pensar é uma atividade que não pode ser ensinada. Livros de filosofia ou enciclopédias não necessariamente ensinam a pensar. Se nos for questionado “pensamos?” ou “quando aprendemos a pensar?”, dificilmente teríamos uma resposta precisa o suficiente. Podemos crer e afirmar com convicção que pensamos (“ora, não tenho um cérebro afinal?!”), com isso expressamos uma crença subjetiva: a de que a articulação entre certas representações que sou capaz de apreender é por si só um “pensar”. Entendemos assim a necessidade inerente à filosofia de dividir a nossa atividade anímica em faculdades. Quando cremos que pensamos simplesmente por fazer um cálculo matemático, entender uma teoria qualquer ou conceber um ser quimérico é como se confundíssemos tudo – a imaginação com a razão, o entendimento conceitual com o pensamento reflexivo, e assim por diante.
Kant atribui o pensamento à razão: ela não determina nada, seus conceitos são puros “seres de razão” que só são apresentados ao sensível com muitas dificuldades, com procedimentos esquemáticos ou analógicos, sendo assim, expressariam uma destinação do humano ao suprassensível. O mais importante é considerar que concebido dessa maneira, o pensamento não só não pode ser ensinado, como é produtor de ilusões de transcendência, de mistificações. Se Kant dá um passo além do pensamento cartesiano, é por compreender o “erro” não como produto de incertezas da atividade sensível, mas como sobrevoo do pensamento para muito além daquilo que a experiência nos permite inferir. Ainda que isso torne o sujeito cindido como sujeito do pensamento e da experiência. Mas esse pensar que consiste em uma exposição sensível áspera de ideias que não pertenceriam ao sensível, parece depender muito de uma certa acuidade rara de uma “faculdade de julgar”: seriam poucos os grandes metafísicos e os grandes gênios da arte, favoritos da natureza [2].
Não obstante as possíveis mitologias que alimentemos em torno de uma genialidade inata ou dom natural e divino, não se pode, contudo, chegar a expressar pensamentos com maestria sem uma certa cultura. Chegado a esse ponto começamos a perceber que o “pensar” aquém de seus sobrevoos metafísicos encontra na cultura uma materialidade que põe sob suspeita a presunção do santo de ter sido escolhido por um Deus fora do mundo para intercursos arrebatados. Sobre a razão, as ideias e o pensar somos mais inclinados a crer que se tratam de produtos de uma gênese que passa pelo estabelecimento de uma cultura. Seria difícil dar uma definição precisa de cultura, nos propomos aqui defini-la em pelo menos três sentidos: o primeiro, quantitativo, fazendo remissão a uma cultura como confronto com intensidades experienciadas; o segundo, qualitativo, como fazendo referência a um processo de formação, erudição e refinamento intelectual que produz distinções de todo tipo (natureza e cultura, selvagem e civilizado, branco e preto etc.); por último, um sentido que agrega uma repartição de intensidades e de lugares definidos por certas qualidades “dominantes” ou a “margem” que queremos chamar de sistema aberto de partilhas [3] entre espectadores.
Se propomos uma divisão da cultura de tal modo é para melhor elucidar outra coisa que não a cultura, a remissão do pensamento ao sensível, do universal às contingências. Marginando o pensamento de Gilles Deleuze queremos na verdade encarar a cultura do ponto de vista de uma sintomatologia filosófica: “crítica e clínica”. Esse processo genético que descrevemos, o concebemos segundo etapas co–extensivas umas às outras, mostrando não um “auto-desenvolvimento do espírito” em termos hegelianos que indicam uma suprassunção dos resíduos do mundo. Queremos aqui nos aproximar da subsistência dos resíduos, onde o platonismo é pervertido e a dignidade da “sujeira da unha” como diz Foucault (2013) se manifesta incomodamente à basófia do espírito cuja beatitude clama ao ultrapassamento da natureza. Esse caminho nos leva a encarar uma problemática levantada por Deleuze em uma obra seminal em seu pensamento, Diferença e repetição (1968) que é o problema da “besteira” [4].
Os sintomas que melhor definem o que queremos entender aqui como “cultura” são a insônia, a má digestão e a ansiedade. A diferenciação entre “cultura autêntica” ou “inautêntica”, “alta” ou “baixa” é apenas um preconceito sem sentido. A nossa cultura sediada em um regime de produção do real eminentemente capitalista, se diz segundo graus de “insônia” ou “sonho”, de “singularidades” e “besteiras”, como oscilações que não se excluem de uma subjetividade a outra. Ao menos se estamos falando do ponto de vista dinâmico, e não das qualificações que a cultura produz segundo conflitos das divisões social, econômica, racial, de gênero e sexualidade. A cultura do ponto de vista das “quantidades intensivas”, do “estético-político” é a dinâmica de um espectador qualquer que busca alimentar-se e pode nos relatar o que viu, o que vê. O estudo, o “cultivo”, a aprendizagem, a experimentação são modos de fazer uso dessas quantidades intensivas de imagens com que se depara um espectador. Antes que um mero refinamento que permite ao espectador produzir uma distinção que o qualifique socialmente de “culto” ou “erudito”, o trabalho de auto-empenho negativo na cultura produz com frequência uma distância crítica que se torna coextensiva à imersão onírica nos produtos da cultura de massas.
É a isso que chamamos de “insônia” e “sonho”. Alguém pode muito bem assumir como prerrogativa o pleno esclarecimento, a saída do espetáculo, a saída do sonho ideológico; mas isso não é mais que o aprofundamento da insônia, um corpo que já não pode rir, um estado de negação absoluta que se tornou ascese contínua e perseverante. A grande questão é se esse esforço é suficiente para pôr em questão a predominância da besteira naquilo que consumimos por espontaneidade e gozo ou passividade insociável como cultura. Não tenho a escolha de não ouvir “sertanejo universitário”, “MPB” ou “Funk”, gostando de “Heavy Metal”. Não importa o que eu goste ou não, o Youtube, o Facebook, o meu vizinho, o colega de trabalho me fará saber da existência de, ao menos, um fragmento do que está no topo das “paradas de sucesso”. Como dizia Kant (2012), a universalidade do “gosto” se define pela sua comunicabilidade que parte de um sujeito que pressupõe assentimento, esse que pode ser mais suscetível de ocorrer diante da natureza, do que da arte. É mais difícil, aparentemente, universalizar um gênero musical, quanto menos popular ele seja – seu apreciador se torna um “outsider”, embora o “outsider” seja também assimilado ao mercado. É vã a tentativa de enunciar um “gosto universal” distinto das massas, no gosto privado permanecerá um “outro incômodo” enquanto recusarmos a pensar a besteira inerente ao nosso sentido mesmo de “gosto”, como algo intrínseco as nossas próprias distinções de gosto. Pensá-la, como queria Deleuze (2006), como um “problema transcendental”.
O problema é que vemos a besteira desde “fora”. O “besta” é o que nada sabe dos progressos da razão, ele parece “tosco”, “jocoso”, “belicoso”, “sensualista”. Queremos levá-lo a um senso comum que “nós” os “esclarecidos” pressupomos que todo mundo há de ter, se tem “bom senso” mínimo. Moralização do conhecer que faz do aprender uma adesão a língua oficial do Estado, da Igreja, dos valores estabelecidos. A “besteira” não é um algo de “fora da cultura”, se é o seu “fora” é porque é indissociável da sistematização das partilhas de espectadores que constroem na miséria e na dor, na alegria e no gozo a aventura humana. A besteira é inumana, mas nós a humanizamos e desumanizamos com igual violência. Os populismos de direita são tão “bestas” quanto os de esquerda, não é a posição ideológica aquilo que qualifica a besteira em seu sentido afirmativo, mas a disponibilidade de um corpo para o aprendizado. As apostas ideológicas são paixões que tentam, por vezes, se tornar esclarecidas, universalizar o seu verdadeiro. Longe de superar a besteira, facilmente fazem dela um “modo de vida”. Há besteira até mesmo na pretensão de estar acima de uma “besta de carga”, assim como na presunção de “superioridade moral” de uma visão política – é sobretudo aí que a besteira é intensificada no seu sentido negativo.
A política por memes, as fakenews, os discursos de “autoverdade” nos termos da jornalista Eliane Brum (2018) no período conturbado das eleições presidenciais de 2018, são constatações do triunfo da besteira sobre o pensamento racional; da falência geral deste em conter a irracionalidade das paixões que fundam os agrupamentos sociais, de “humanizar o homem”. Como bem observaram Adorno e Horkheimer (2014), nesse contexto de um esclarecimento que acaba por produzir também seus “mitos”, a alta-cultura paga caro pelos seus preconceitos e distância das massas; estas já não tem obrigação de lhes dar ouvidos. Não há mea culpa intelectual quanto a isso, a superação de uma suposta animalidade em nossa condição humana nos conduziu a muitas feridas narcísicas. Tentou-se em vão recalcar as contingências de nossa experiência sensual e corpórea, e com isso só produzimos através da “besteira” a “monstruosidade”, a cultura no sentido qualitativo e erudito não é senão a racionalização que varre para debaixo do tapete a nossa sujeira. O problema da besteira é que ela devenha com facilidade “fascista”, ela tende ao “racismo”, ao “especismo”, ao “reducionismo” (a “cultura superior” como trabalho de anões, ou “homens apequenados”, como diria Nietzsche). Todo o processo de “invisibilização” de pessoas operando segundo justificações de privilégios e subalternidade consiste em uma simplificação grosseira do mundo, uma bestialização da diferença que legitima e produz o uso de violências reais e simbólicas.
O insone quando recusa a dar descanso ao seu corpo no trabalho do negativo que é o processo cultural de “refinamento” intelectual e crítica, arrisca bordejar de maneira limítrofe os seus delírios. O corpo que não descansa, e, por conseguinte, não sonha, é invadido com o passar do tempo pelos seus sonhos. A intelectualidade filosófica é uma tendência latente à paranóia [5], à perversão; seu pathos com frequência se torna “irônico” o quanto mais espiritualizado e “sarcástico”, o quanto mais corpóreo e imanentista. A filosofia se desenvolve de uma tripla operação, na qual, o pensamento pensa as suas fundações, elabora um “plano” (DELEUZE, GUATTARI, 2010b) e, ao mesmo tempo, desmistifica o mundo com seus conceitos. Operação que explora esses estados do mal estar na cultura: sonho, insônia, sono sem sonhos [6]. Desse modo, o pensamento não está restrito a um desenvolvimento progressivo das ciências nas suas possibilidades de fazer o diagnóstico clínico da civilização. O que fomos não é separável do que hoje somos, nossas narrativas míticas não são senão esse enfrentamento de um fundo delirante da existência, do qual emerge a besteira como uma espécie de demência e animalidade que não se deixa domesticar.
O que são “anjos” senão imaginação ampliada pela razão? O que são “demônios” senão a imaginação fervilhada pelo desejo? São uma personificação de graus variáveis de afecção sensível. Vestígios de uma atividade anímica alucinatória cada vez mais esforçando por tomar distância da animalidade. São como reflexos dos precursores sombrios de feiticeiros, santos, teúrgicos [7], teólogos e de filósofos, desenhados e cromatizados pelas fantasias dos artistas, e convertidos em personagens de hipóteses científicas – “demônio de Maxuel”. A angeologia e a demonologia não tem apenas um interesse aos “místicos das letras” [8], nela encontramos a expressão imaginária de um “governo do mundo” em que Deus ou o Estado é o “Urstaat” (DELEUZE; GUATTARI, 2010a), semente primeva do capitalismo mundial integrado; seus anjos arcontes, potestades e magistrados de instituições que personificam a lei; os demônios como os jogos subreptícios da “realpolitik” dos pactos que pulam as cercas e as regras instaurando a exceção como prática de governo. Anjos e demônios ambos frequentemente aparecem em obras de ficção tão bons quanto maus, conforme as circunstâncias. A cultura “insone” ou “esclarecida” beira a conspiração como “delírio histórico mundial” (Ibid.), não há cultura erudita que não tenha elementos esquizóides. Os moralistas são em verdade tomados sempre por uma espécie de afecção cética, desconfiam dos anjos como dos demônios, embora queiram parecer angélicos, e não cessem de recorrer aos “pactos”: O Sacerdote e O Diabo são cartas intimamente relacionadas na iconografia de baralhos de Tarot. Descartes tinha seu Deus enganador e seu diabo perverso, e também seus sonhos. E o que é o sonho senão a marca do sensível sobre nós? De um sensível que nos antecede? De um mundo de imagens que apreendemos e produzimos ao ponto de confundi-las em nossa memória?
De um ponto de vista empirista, toda ideia universal remete no seu uso linguístico a um particular, por mais que esteja aparentemente separada deste por uma série de incontáveis acidentes das quais se supõe que ela seja capaz de abstrair. Mas é preciso ir além da noção de que a ideia nasce do sensível, e chegar ao ponto de enunciar que a própria “razão” é uma “modificação de nossa pele” como sugere Emanule Coccia (2010). A ideia não designaria mais uma separação do sensível, mas o objeto de uma “estesiologia” que a situa na nossa capacidade de produzir imagens, emergindo de nossa submersão no sensível que nos antecede enquanto sujeitos. Essa é uma forma de pensar que se diferencia daquela que o idealismo alemão pós-kantiano o queria, uma “sensificação das ideias”, nesse caso, das ideias universais que precisam descer de suas sandalhinhas aladas na alegorização de arquétipos. Não basta igualar aparência e realidade, é preciso ainda dizer que o Espírito é aparência e produz aparências. Se como queria Deleuze o universal não explica nada, mas é precisamente aquilo que deve ser explicado, é porque tudo se produz na superfície dos corpos, e se mergulhamos nas profundezas da vida sensível em solidão e isso nos faz pensar, o pensamento só reencontra a vida no ato de trazer novamente a superfície o que a ela pertence. Pensar já não poderia ser mais – uma vez abraçada a dignidade do sensível – um ato de mera superioridade sobre o animal e sobre a natureza, mas o combate com o Universal de uma cultura assoberbada com sua grandeza, e que se recusa a olhar para a memória viva de sua barbárie. O sensível já não tem mais uma “destinação suprassensível”, mas produz uma dobra, na qual, mais do que se refletir em um sujeito, espelha o mundo em seus múltiplos modos de existir, sobre vários ângulos. Uma das formas que tomamos como centrais nesse combate é a questão do racismo e da colonialidade e sua reprodução que utilizam de meios estéticos, como as estátuas coloniais na África, que inscrevem a dominação não só nos corpos, como no espaço e no imaginário de forma contínua, como observa Achille Mbembe (2018). O pensamento que enfrenta a besteira que arrasta consigo propõe-se a uma lenta caminhada que aponta para um processo de tornar-se sensível, entendendo esse “devir” como um modo de resistência aos revisionismos histórico-histéricos que tentam esmagar até mesmo no nível mais sutil das percepções as “diferenças radicais” de um mundo povoado de singularidades insurgentes.
Nos é exigida como uma primeira impressão, diante do acúmulo de produções e diante do enfrentamento das bases estruturais facistóides da nossa civilização, uma cultura monumental que só pode predispor aquele que se depara com um mundo que atribui pouco ou nenhum valor a um saber humanístico à “ansiedade” e à “indigestão”; concomitantes à insônia do pensador diante do “sonho da razão”. Os livros, seja para quem os escreve, seja para quem os lê, são ferramentas imprescindíveis para uma emancipação interior a nossa cultura, posto que alargam os horizontes de um espectador e o predispõe à distância crítica necessária. Mas a escrita também possui sortilégios nos quais somos enredados, sobre os quais desconfiava Platão: o enfraquecimento da memória fundamental à palavra falada autêntica. David Kopenawa (2015), xamã ameríndio dos Yanomami guardava essa desconfiança com Bruce Albert – o etnógrafo que se tornou seu amigo – e com todos nós “homens brancos” da cultura: nós com essas “peles de papel” enfraquecemos nossa memória, temos o pensamento “esfumaçado” e as palavras com pouco valor, com nossa jactância nós mentimos para “eles” e tomamos deles aquilo que não os pertencia (no nosso sentido de posse), mas no qual habitavam – a terra. E tudo isso que Kopenawa acusa passa pelo “sonho”, ele zomba da nossa incapacidade de “sonhar”. Não é por “peles de papel” que um Yanomami estuda e aprende, mas pelos seus sonhos e visões do rapé “Yakoana”, através das imagens que os “Xapiri” ou espíritos antepassados fazem vibrar em suas percepções. Nós sequer lembramos de qualquer coisa se não as anotarmos no papel. Corremos de um lado para o outro, não paramos de trabalhar com todos os aparatos tecnológicos ligados e abrindo possibilidades de projetos, muitos dos quais inconclusos, para aqueles que não conseguem se ajustar ao ritmo narcocapitalista. Com essa crítica, Kopenawa nos chama atenção para algo que queríamos remeter como elemento genético da cultura: seu elemento dinâmico e intensivo, a experimentação, e, ao mesmo tempo, para seu caráter qualitativo, a formação distintiva ou “erudição”.
É assim que compreendemos os dois primeiros sintomas que propusemos: a insônia como prevalência da erudição sobre a experimentação; a indigestão como experiência do acúmulo e retenção da cultura em decorrência de uma pobreza expressiva que só a experimentação poderia prover. Some-se a isso a abertura que produz a emergência de vozes que agora possuem os meios técnicos como veículos de expressão, sem se submeterem as velhas distinções de gosto; bem como as questões raciais, de gênero e sexualidade que entram no espaço mesmo da erudição e questionam igualmente suas velhas hierarquias. É desse modo que vemos a cultura formar uma espécie de alteridade disjuntiva de vozes que não formam um consenso, engendrando um sistema aberto de partilhas entre espectadores com múltiplas possibilidades de produção de subjetividades e enunciados. Alguns se recusarão entrar nesse sistema de partilhas e assumirão uma distribuição conservadora das subjetividades e dos enunciados, farão mesmo disso um programa político; mas no final dificilmente escaparão ao prolapso inconsciente na forma de discurso e ação que sucede as contrações anais antecessoras dos seus moralismos grosseiros de alfaiates de roupas íntimas e passam a ser absorvidas na própria dinâmica virtual do sistema de partilhas culturais do capitalismo global – um falatório que não ouve a ninguém nem a si próprio. Não podem senão jogar de forma suja, explorarem seus próprios desejos por vias pornográficas, diante das quais são ao mesmo tempo moralizadores e espectadores de armário – “segredinho sujo”. Na verdade são os resquícios de uma educação falocentrada, militarizada, feita para nos enrijecer, que produz o espírito reacionário anti-intelectualista e incapaz de ouvir o que uma diferença nos comunica – porões da ditadura. Lidar com o dinamismo acelerado que o sistema aberto de partilhas produz e que tem como sintoma a “ansiedade”, exige uma série de aprendizados: aprender a sentir com a experimentação; aprender a digerir aliando experimentação e estudos, o que produz distâncias críticas; aprender a refinar a escuta paciente mantendo-se aberto a alteridade.
Nada disso pode ser ensinado. O próprio aprender envolve empenho pessoal, ao mesmo tempo que “agenciamentos coletivos de enunciação” (DELEUZE, GUATTARI, 2014). Podemos ver isso no confronto político entre teoria e prática que logo se estabelece entre um estudante universitário e um trabalhador assalariado com pouca formação, mas próximo de um padrão de consumo de classe média: a “teoria” que ao jovem culto causava insônia para o outro não passa de “sonho”, por mais que o contestador seja seu próprio familiar que tanto o incentivou a se formar. Não escutamos bem o que não entendemos. Em Este lado do paraíso, de Scott Fitzgerald, romance de 1920 que ficou conhecido por retratar muito bem a cultura universitária norte americana: Amory, ex estudante de Princeton, já formado, certa vez pega carona com dois trabalhadores em um “Locomobile”. Logo passam a conversar durante a viagem, e Amory, jovem diante de dois senhores de tendência conservadora, passa a desafiá-los com suas análises da sociedade tendendo ao socialismo, e – diante do juízo irritando de um dos senhores que afirma a imutabilidade da “natureza humana” – profere irritado e com fervor um ataque a volubilidade da mentalidade de classe média “anti-intelectualista” que até então vinha atacando:
Esses homens de mentalidade mofada, que apenas alisaram os bancos escolares, tais como este seu amigo aqui, que pensam que pensam cada questão que surge… bem, gente assim encontra-se em cada esquina. Num momento eles se manifestam sobre a ‘brutalidade e desumanidade desses prussianos’ e, logo em seguida, declaram que ‘deveríamos exterminar todo povo alemão’. Estão sempre acreditando que ‘a situação, agora, não está nada bem’, mas eles ‘não tem qualquer fé nesses idealistas’. Num minuto afirmam que Wilson ‘não passa de um sonhador, não é nada prático’, e daí a um ano aderem a ele por ter tornado seus sonhos realidade. Não possuem ideias claras e lógicas sobre um único assunto, exceto uma oposição retrógrada e insensível a qualquer mudança. Julgam que as pessoas sem instrução não deveriam ser bem pagas, mas não percebem que se não pagarem bons salários a essa gente seus filhos também não terão uma boa educação, o que nos leva a um círculo vicioso. Essa é a famosa classe média! (FITZGERALD, 2013, p. 392).
Aprender a sentir, a ver, a ouvir, a digerir, só então escapamos da “verborragia” como estado afetivo da “besteira” que nos toca de um modo geral na vida mundana. É uma questão de tentativas expressivas, tentativas de amar, exercícios de curiosidade e mesmo de discordância aberta e franca. Nada disso está dado, como não está dado o que é ser um homem ou uma mulher. Aprender é pôr-se em relação com o movimento da paixão, é agenciar o desejo produzindo conexões entre os fragmentos de uma experiência dinâmica tirada dos eixos centrados nas percepções ordinárias e opiniões correntes. É preciso embriagar-se um pouco, não necessariamente de “vinho e de virtude”, como sugeria Baudelaire, para compreender como estamos enredados em um real que espelha o sonho, e não o contrário. Aprender até mesmo a dose e os meios adequados dessa embriaguez é uma arte do corpo, de exploração das intensidades que dinamizam o próprio processo de aprendizado. A crítica da besteira é tão necessária quanto a crítica transcendental das ilusões, enquanto a primeira opera sensorialmente por meio de práticas corpóreas concretas, a segunda investe sobre as representações produzidas e operantes no interior do sistema de partilhas da cultura.
O filósofo, mesmo diante dos avanços técnico-científicos que parecem limitar suas possibilidades de especulação sobre o real, encontra antes mesmo de qualquer especulação, o valor de seus estudos estéticos e metafísicos como vocação crítica: a de uma radical desmistificação de sua formação cultural. Não é o “erro”, propõe Deleuze (2006), que lhe importa, visto que sua expressão tem viés “problematizador” e não “determinante”, mas a “besteira” e a “ilusão” como elementos constitutivos da própria “viagem” intensiva pela qual nos tornamos um indivíduo ou um sujeito. A filosofia quando compreende o universal como delírio histórico mundial, enxerga melhor o que poderíamos ser, bem como o que estamos em vias de nos tornar, e assim amplia os horizontes de seu potencial crítico. Ela compreende os acontecimentos como exprimíveis contingentes em relação ao universal histórico.
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Recebido em: 30/06/2019
Aceito em: 30/07/2019
[1] Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: andrenascimento07@yahoo.com.br
[2] Tanto na Crítica da razão pura, como na Crítica da faculdade do juízo, aparece esse tema de um “favoritismo” na faculdade do juízo. Na primeira nas passagens A133, B172, A134, B173 como um, ‘bom senso” ou “dom da natureza” para a aplicação de regras que alguns possuem e não pode ser ensinado; na segunda, na passagem do gênio (46) como “talento (dom natural) que dá regra à arte”.
[3] Nossa inspiração para o conceito de “sistema aberto de partilhas” vem de leituras de Deleuze, Rancière e Eco. À Deleuze devemos a compreensão de sistema como uma “heterogênese do pensamento”; de Rancière tiramos a noção de uma partilha do sensível em um regime estético cuja literalidade é compreendida como efeito de uma livre circulação de textos sem instâncias autorizadas de interpretação; de Eco sua noção de “obra aberta” que mostra como a mutação de perspectivas de arte moderna, afeta nossa percepção até mesmo de arte clássica.
[4] Apesar de estar mais especificamente formulado em Diferença e repetição (1968), o problema da “besteira” já estava presente em uma obra anterior Nietzsche e a filosofia (1962). Nessa última obra havia a ideia de que a filosofia, desde uma inspiração nietzschiana, no que diz respeito a sua tão mal afamada “inutilidade”, deveria em tom ácido assumir para seus detratores que serve para “prejudicar a tolice”, a “baixeza”. Nessa mesma obra também estava presente o problema da “imagem do pensamento” que é também melhor formulado em Diferença e repetição, colocando esta última a “besteira” como algo distinto do “erro” (reflexo de uma imagem dogmática do pensamento).
[5] Em Deleuze e a psicanálise, Monique David-Ménard (2014, p. 35) diz sobre o fato de Freud não conceber a psicanálise como uma “filosofia”, que esta era situada por ele “nas vizinhanças da psicose: a tentativa apaixonada e rigorosa de retomar do zero um problema conceitual que um filósofo estima mal colocado se assemelha, segundo Freud, a um delírio por meio do qual um sujeito reconstitui um mundo em que sua própria existência de sujeito numa genealogia e num mundo seja formulável, depois que uma ameaça pesou sobre sua existência”.
[6] Em Crítica e clínica de Deleuze há um texto chamado “Para dar um fim ao juízo”. Há nele uma interessante compreensão do “sonho” que o entende como instância do “juízo de Deus”, no qual estaríamos presos conforme um diagnóstico ao mesmo tempo nietzschiano, kafkiano e artaudiano. Não é como se o sonho refletisse a realidade, mas é como se a “realidade” fosse a reprodução de um sonho que envolve paranóia, culpa, má-consciência etc.. A esse sonho que nos aprisiona, e mesmo o sonho dos outros que ameaça nos capturar, Deleuze opõe a “embriaguez” e o “sono sem sonhos” como meios de escapar dessa força intrusiva do “juízo de Deus”.
[7] Na introdução da tradução de Enéada II. 8 [30], José Carlos Baracat Júnior (2008) retrata um conflito interessante entre Porfírio, organizador dos textos plotinianos e Jâmblico outro discípulo da escola neoplatônica, no que diz respeito ao processo de alcançar o “Uno”. Enquanto o primeiro vislumbrava um caminho de ascese mais ético e intelectual, o segundo apelava ao uso de fórmulas teúrgicas que visavam pôr o operador em contato com “seres superiores” cujo entendimento de algum modo se aproxima do que entendemos como “anjos” e “demônios”.
[8] Na Crítica da faculdade do juízo, na parte destinada a faculdade do juízo teleológico, ao discutir a nossa relação com as produções da natureza em relação a possibilidade de um sistema de fins Kant (86) fala de uma “demonologia” quando refuta a possibilidade de uma teologia meramente física condicionada à natureza, que produz deuses e demônios como frutos do medo, e que ainda não reflete a sublimidade da destinação moral do homem. Há também uma discussão interessante, levantada por Marco Antônio Valentim (2018), em Extramundanidade e sobrenatureza, sobre as especulações kantianas a respeito de “extraterrestres” e sobre as visões do místico Swendenborg. É interessante verificar aí que mesmo nesses tópicos controversos e pouco falados estão presentes os temas clássicos de Kant, como sua antropologia, sua concepção de número ou mesmo o problema da ilusão transcendental.
Cultura e besteira
RESUMO: Nosso ensaio propõe uma “leitura à margem” da noção de “besteira” no pensamento deleuziano, tendo em vista um diagnóstico de nossas próprias configurações culturais. Encontramos aqui o problema de como é difícil aprender a pensar. Para problematizar isso, apresentamos em um livre exercício de escrita, alguns pontos de interesse de nossas próprias explorações culturais acadêmicas e não acadêmicas. Com essa auto-implicação subjetiva, queremos indicar a primazia do sentido dinâmico e sensível na cultura, que pode ser chamada de “experimentação”. Esse sentido dinâmico contrapõe à narrativa universal predominante na “cultura erudita”, favorecendo outras possibilidades de subjetivação e ficção do real.
PALAVRAS-CHAVE: Imagem do pensamento. Estética. Cultura.
Culture and stupidity
ABSTRACT: Our essay proposes one marginal reading of the Deleuze’s notion of “stupidity”, to make a diagnostic of our own cultural configurations. We find here the problem of how is difficulty learn to think. For problematize that, we presents in a free handwrite exercise, some points of interesting of our proper academic and non-academic cultural explorations. With this subjective self-implication we want to indicate the primacy of the dynamical and sensible sense in the culture, which can be called “experimentation”. That dynamical sense counters the universal narrative predominant in the “erudite culture”, by favoring other possibilities of subjectivation and fiction of the real.
ARAÚJO, André Vinícius Nascimento. Cultura e Besteira. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [Online], Campinas, ano 6, n. 15, ago. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/cultura-e-besteira/