Keli Pacheco e Willian Oliveira | O movimento intenso em O lustre, de Clarice Lispector
Keli C. Pacheco [1]
William F. de Oliveira[2]
Clarice no escuro
Quando publicou seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, em 1943, Clarice Lispector foi por alguns chamada “Furacão Clarice”[3]. “Ela não é brasileira”, “Ela não é ela, é ele”[4], “Seu jeito de escrever português é estrangeiro”, são apenas alguns comentários atribuídos à persona Clarice e sua escrita. Já ali começava o fenômeno estrangeiro (mesmo com C. L. afirmando e reafirmando que era brasileira); por assim dizer, já ali se instaurava uma escritura de estranheza.
Como se não bastasse, o período histórico era conturbado (a guerra e suas dores e mazelas, o afastamento da humanidade dela mesma). Paralela a isso, Clarice se casa com Maury Gurgel, um diplomata. Tal acontecimento vem a mudar drasticamente a vida da jovem autora (que passaria então a viver de viagens no exterior), e a contribuir para a fortificação do mito “estrangeiro”[5], auréola que carrega a escritora – já que, por um tempo, “desapareceria” de terras brasileiras. Essa guinada também vem a contribuir com seus romances vindouros, O lustre (1946), A cidade sitiada (1949) e A maçã no escuro (1961).
Tais obras são acertadamente chamadas de “a tríade do exílio” por Claudia Nina (2003), em seu livro A palavra usurpada – exílio e nomadismo nos romances de Clarice Lispector. Mas não são obras exílicas em razão de C. L. tê-las escrito, inteiramente ou em partes, no exterior, como afirma Claudia Nina – de fato, qualquer afirmação sobre influência, neste caso, pode ter forte caráter errôneo, por não poder se confirmar. Em verdade, essas narrativas classificam-se como exílicas muito mais pelo seu conteúdo, a escrita claustrofóbica ou deslocada, ou pelas personagens, que constantemente se sentem estranhas, não importando o lugar em que se encontram.
E o título desta seção é, então, sugestivo, não um simples jogo de palavras com o título de A maçã no escuro. Sim, C. L. está – ou esteve, melhor dizendo – no escuro, tateia as margens, as linhas e as palavras, e não encontra saída. É a noite de que fala Maurice Blanchot (2011)[6]; não se trata de escuro, mas de perda, desaparecimento, e ainda assim um encontro, que em si é um desencontro.
Ao mesmo tempo, enquanto tudo desaparece, enquanto Clarice, seja ela mesma ou a autora, se apaga (com o casamento e as inevitáveis viagens, Clarice se torna um sussurro distante no Brasil; A cidade sitiada e A maçã no escuro, por exemplo, tiveram certa rejeição, e demoraram a ser publicados), ainda permanece um gesto. Quase como um toque. E o toque de Lispector (autora), esse sim, é inconfundível. É no escuro – que não é escuro – que se projeta; não se vê, mas seu toque deixa marcas: o autor se projeta por sua ausência, metáfora de Giorgio Agamben (2007) – em “O autor como gesto”, presente em Profanações, Agamben afirma que só notamos certas coisas através da ausência [7]. Assim ocorre com as torres gêmeas: o espaço vazio deixado por elas é lembrança eterna de um marco considerado por alguns como o início do século XXI.
E estas marcas podem ser de uma escritura menor, de uma escritura que propõe deslocamentos, diluindo-se, achando caminhos na desterritorialização, linguagem em movimento – como reflete Simone Curi (2001):
Uma escritura menor como marca de singularidade, de deslocamento, de descontinuidade; à procura de uma saída, por onde fazer fugir todas as categorias, identidades, diluir as fronteiras, o gênero; enfim, o literário. Uma escritura menor, não de uma língua ou de um gênero menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior: traçar um mapa original, produzir o real, a vida (p. 10).
Nesse sentido, existem paralelos entre o que dizem Deleuze e Guattari (1975) a respeito da literatura menor e o que escreve Curi (na verdade, Simone Curi tem estes dois autores como uma importante base). Trata-se, assim, de desterritorializar a língua, fazer os próprios pontos de reterritorialização [8]. Escrever “como um cão que faz um buraco, um rato que faz a toca” (DELEUZE & GUATTARI, 1975, p. 42), fazer uso de uma língua maior para uma literatura menor, revolucionária:
As três categorias da literatura menor são a desterritorialização da língua, a ligação do individual com o imediato político, o agenciamento coletivo de enunciação. O mesmo será dizer que “menor” já não qualifica certas literaturas, mas as condições revolucionárias de qualquer literatura no seio daquela a que se chama grande (ou estabelecida). Até aquele que por desgraça nascer no país de uma grande literatura tem de escrever na sua língua, como um judeu escreve em alemão, ou como um Usbeque escreve em russo (DELEUZE e GUATTARI, 1975, p. 41-42).
De outra maneira, pode-se ver aí, em Clarice Lispector, em sua escritura, marcas de uma experiência radical – experiência que já começa em sua trajetória, uma judia – vinda da Ucrânia – escrevendo em português, no Brasil, fazendo uso de uma língua provinda do processo de colonização. E, se pensarmos no que afirma Silviano Santiago em “O entre lugar do discurso latino americano”, quando escreve que o escritor latino-americano está entre a luta constante contra o modelo da metrópole, precisando digeri-lo para sobreviver, e o “dever” de ser original, Clarice Lispector parece inclusive aí estar fora, não somente em relação ao colonizador, ao modelo, como também à colônia (Lispector por si só é um “fora”). No entanto, ela utiliza uma língua que se “tornou” a dela, pois, mesmo que colocada como um “fora” na literatura brasileira, mesmo que considerando a linguagem insuficiente, precisava de um meio de expressão (e na maioria das vezes este meio foi o português).
Como fazer de todo fragmento um (re)começo, anotar em qualquer hora ou lugar uma frase sequer, que depois poderá ser destruída no processo eterno de escrita, reescrever e revisar aquilo que nunca termina; ou então escrever enquanto os filhos, um deles inclusive bebê, brincam no chão da sala de estar [9] (contrariando a imagem de escritor escrevendo num quarto, solitário). Assim, estas marcas, que tão bem podem indicar uma literatura menor, de desterritorialização e reterritorialização (ou mesmo uma escritura menor), também indicam uma experiência absoluta.
Pensamos em “experiência radical” a partir do que escreve Maurice Blanchot (2011) a respeito do contato que escritores tais quais Mallarmé, Hölderlin, Rilke tiveram com a literatura, com a escrita. Blanchot, que tal qual Deleuze e Guattari (1975), analisa Franz Kafka e sua “literatura menor” (abraçam a “escritura errada”, aquela que parece incorreta), descreve essas experiências [10] a partir de temas variados que confrontam seus autores – o desespero, o fascínio da morte, o afastamento (da obra, de Deus, a solidão), a estranheza da arte, a inspiração e suas faces obscuras, etc. Desse modo, parece-nos plausível pensar em Clarice Lispector em face destes temas – ela que tão intermitentemente escrevia e enfrentava a obra e a escuridão (podemos ver, como exemplos, a luta que Lispector travou na escrita de romances como A cidade sitiada e O lustre, luta com o estranhamento e com a realidade – contexto da Segunda Guerra Mundial e pós-guerra; e se Blanchot reflete que por vezes Kafka se via impossibilitado de escrever diante das obrigatoriedades do mundo, do trabalho, também podemos pensar isso em relação a C. L., quando, por acidente, ela queimou a mão, tendo assim problemas – precisando inclusive da ajuda de Olga Borelli, sua amiga, no processo de escrita).
E, seja como for, Clarice tem inspirado um número crescente de pesquisas e leituras (e vem atraindo mais olhares, tanto aqui quanto no exterior [11]).
Movimento intenso
Detenhamo-nos rapidamente na estrutura de O lustre: trata-se prioritariamente de um fluxo quase ininterrupto de texto em que não há capítulos ou divisões rígidas, e aqui e ali pode-se encontrar pausas, que dão, por assim dizer, nova guinada na narrativa. Também a linguagem flui, com parágrafos geralmente enormes, poucas paradas e diálogos. Quase tudo se centraliza em Virgínia, mulher dissecada pela voz do narrador. Sendo assim, aqui também não se espera uma divisão rígida, mas sim um acompanhamento do texto enquanto se decorre a análise.
E, ao abordarmos esta fluidez, já nos vem em mente a frase inaugural do romance: “Ela seria fluída durante toda a vida” (LISPECTOR, 1982, p. 7). Isso significa, ou pode significar: não haveria barreiras intransponíveis que pudessem parar o que ela era e, assim como a água move as profundezas do mar e a areia, no deserto, é movida e modificada pelo vento, Virgínia[12] se movia ou era movida. Pelo quê?
O que dominara seus contornos e os atraíra a um centro, o que a iluminara contra o mundo e lhe dera íntimo poder fora o segredo. Nunca saberia pensar nele em termos claros temendo invadir e dissolver a sua imagem. No entanto ele formara no seu interior um núcleo longínquo e vivo e jamais perdera a magia – sustentava-a na sua vaguidão insolúvel como a única realidade que para ela sempre deveria ser a perdida (LISPECTOR, 1992, p. 7).
Ou seja, por mais dissolúvel que Virgínia possa – ou tente – ser, há ainda um centro cativante, algo que puxa ou atrai. Como planetas e corpos celestes que se atraem gravitacionalmente por corpos mais densos e com mais gravidade, Virgínia perambulava e era atraída pelo mistério. E aqui já nos é oportuno falar da filosofia de Deleuze e Guattari (1997): há sempre centros que nos controlam ou nos cativam. Em Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 5, Deleuze e Guattari abordam a questão como um modelo político. Há o Estado, centralizador do poder, agente soberano, e a margem; ou, em outras palavras, o nômade – aquele que resiste, que está além justamente da dita soberania do Estado. No romance de Lispector, podemos pensar este ponto (ao menos de início) como uma resistência silenciosa, inútil e cansativa (por parte dos irmãos Daniel e Virgínia): embora o pai fosse o agente poderoso na Granja (ver a nota de rodapé 10), os irmãos criavam mecanismos de fuga deste centro (podemos chamar de linhas de fuga[13]: um destes era a Sociedade das Sombras, espécie de “grupo” em que participavam apenas os dois irmãos e que servia para Daniel exercitar seu sadismo contra a irmã – tornando-se, portanto, outro agente centralizador, por assim dizer). À parte isso, havia uma rebeldia em Daniel, coisa que em Virgínia se traduzia em silêncio.
É preciso, no entanto, cautela ao abordar a “fluidez” de Virgínia. Assim como o romance em si, a protagonista está presa, parada. Como se os objetos, as coisas, as palavras, o mundo, cada pequeno detalhe fosse um planeta ou corpo celeste que atravessasse Virgínia e a impedisse de se mover. E é exatamente isso: o romance é um todo de silêncio e imobilidade, claustrofobia impedidora, embora a linguagem, ao menos ela, sempre se mova. Nesse sentido, a linha de fuga de Virgínia é um mergulho inicialmente para dentro (é intenso, vertical, rápido, constante). E mais uma vez chegamos a Deleuze e Guattari: Virgínia não atravessa as fronteiras; as fronteiras é que passam por ela – assim acontece com a topografia do deserto, que muda constantemente.
Podemos abordar isso com mais detalhamento. Vamos ao nomadismo.
Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997) afirmam que o lugar do nômade é o espaço desterritorializado (por exemplo, o deserto) e que, também, o nômade aproveita o aumento deste espaço; ou seja, do crescimento do deserto o nômade faz seu abrigo. Assim, seu trajeto não possui pontos e se realiza na própria desterritorialização – muito embora o nômade jamais ignore os pontos: o ponto de água, de abrigo, de assembleia, etc. Mas, como afirmam Deleuze e Guattari, não se tratam de puras referências, os pontos apenas existem para serem deixados para trás: “O ponto de água só existe para ser abandonado, e todo ponto é uma alternância e só existe como alternância” (1997, p. 42). Ademais, na distinção com o sedentário (quando se trata de distribuição de espaço), o nômade percorre caminhos conhecidos, mas não tem a finalidade de distribuição de homens em um espaço fechado; a distribuição ocorre, ao contrário, em um espaço indeterminado, aberto:
O nomos acabou designando a lei, mas porque inicialmente era distribuição, modo de distribuição. Ora, é uma distribuição muito especial, sem partilha, num espaço sem fronteiras, não cercado. O nomos é a consistência de um conjunto fluido: é nesse sentido que ele se opõe à lei, ou à pólis, como o interior, um flanco de montanha ou a extensão vaga em torno de uma cidade (“ou bem nomos, ou bem polis”)(DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 43).
Desse modo, pode-se fazer outro distanciamento entre o nômade e o sedentário: o espaço sedentário identifica-se como estriado, é a pólis, cercado por muros, delimitado, com caminhos especificamente marcados; enquanto o espaço nômade é liso[14], sem traços ou delimitações, ou mesmo marcado por traços que se apagam ou se movimentam de acordo com o trajeto. “O nômade se distribui num espaço liso, ele ocupa, habita, mantém esse espaço, e aí reside seu princípio territorial”, (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 43).
Assim, chegamos a outra questão apresentada por Deleuze e Guattari: o nômade não é aquele marcado pelo movimento; este ponto, na verdade, não importa tanto. Ao contrário, define-se antes como aquele que não se move: na distinção com o migrante, que diante de qualquer problema tende a se mover, o nômade insiste, apresentando como resposta a um território hostil a imobilidade.
Pois o movimento não importa tanto como extensão, mas como intensidade. O nômade atravessa espaços de intensidade, pode partir em movimento (extensivamente) lento, mas ser veloz [15]. A velocidade caracterizaria a intensidade, que é o mergulho, que pode ser a viagem sem movimento relativo: por isso mesmo não possui pontos, não pode possuir; não se parte através de caminhos delimitados, num movimento cadente, mas mergulha-se em campos de intensidade, atravessando-se a própria imobilidade. Desse modo é possível que um indivíduo que viaje pelo mundo, conhecendo diversos lugares, permaneça no mesmo lugar (o sedentário moderno), e outro mergulhe em fluxo (quer seja através de leitura, de escrita, de viagem espiritual, etc.), imobilizado espacialmente, e ainda assim seja nômade, pois imerso em campos intensivos, estes que constituem espaços lisos, livres de pontos ou de caminhos delimitados.
Daí que o nômade se caracteriza, também, por se potencializar na desterritorialização. Inicialmente, na desterritorialização do território próprio, como quando a floresta recua e o deserto cresce [16]. Tanto assim que Deleuze e Guattari (1997) o chamam de o “desterritorializado por excelência”: tanto aumenta o deserto quanto é aumentado por ele. E também porque, ao mergulhar em campos de intensidade, necessita da desterritorialização para constantemente se reterritorializar, surgindo em pontos quaisquer.
Tais asserções, contudo, podem soar demasiado abstratas se apenas colocadas sem algum ponto de ligação. Podemos então, num primeiro momento, olhar para o(s) espaço(s) em O lustre. Vejamos primeiramente Granja Quieta, local em que Vírginia passa, com sua família, a infância.
Trata-se de uma localidade rural e, portanto, não segmentada tal como o é o ambiente urbano. Tudo que se pode ver são terras não estriadas pela modernização:
Granja Quieta e suas terras estendiam-se a algumas milhas das casas que se agrupavam em torno da escola e do posto de saúde, afastando-se do centro comercial do município de Brejo Alto, sob cuja circunscrição se achavam. O casarão pertencia à avó; seus filhos haviam casado e moravam longe. O filho mais moço trouxera para lá a mulher e em Granja Quieta haviam nascido Esmeralda, Daniel e Virgínia. Aos poucos os móveis desertavam, vendidos, quebrados ou envelhecidos, e os quartos se esvaziam pálidos. O de Virgínia, frio, leve e quadrado, possuía apenas a cama. No espaldar ela depositava o vestido antes de dormir, e, metida na rala combinação, os pés sujos de terra, escondia-se sob os enormes lençóis de casal com um longo prazer (LISPECTOR, 1992, p. 11).
Por mais que não estriada pela modernização e urbanização (no sentido de o asfalto fazer caminhos; as cercas/muros criarem barreiras, e assim por diante), e por mais que distante de tal urbanismo, não está totalmente livre desse centro: as terras em Granja Quieta se estendem, mas têm um limite (e quanto mais o espaço urbano crescer, menores serão as extensões “rurais” de terra [17] ). Em um primeiro olhar, então, trata-se de distribuição de espaço, e nisso Granja Quieta não possui um estriamento rígido.
No entanto, o não estriamento desse espaço não serve para deixar livre Virgínia (e isso se aplica aos demais integrantes de sua família – Daniel e Esmeralda, que são seus irmãos, e sua mãe e, em último caso, a avó): ao contrário, serve muito mais para deixá-la à margem, e nisso tudo colabora para seu afastamento [18]. Há um modelo patriarcal de poder ali, sendo o pai a última palavra em qualquer situação (e quando não é palavra, é silêncio). Desse modo, podemos notar que há sempre um centro criando margem, sempre um centro atraindo ou repelindo o que está ao redor; e, nesse caso, Virgínia, através do medo que sente por essa figura centralizadora que é o pai, obedece, aceita a hierarquia como quem aceita a vida.
Mas também Daniel serve como um centro magnético a Virgínia (e este é tirânico e ditatorial). Ele a atrai ou a retém, dominando-a. Ela, por outro lado, nutre por ele admiração ou, mais intensamente, devoção. Mesmo quando Daniel é rude – acontecimento frequente:
– Que é que você está pensando? – não se continha ela adoçando a voz, apagando-se com humildade.
– Nada, respondia ele.
E se ousava insistir recebia uma resposta que ainda mais a intranquilizava pelo seu mistério e pelo ciúme que nela despertava.
– Estou pensando em Deus.
– Mas o que de Deus? Indagava a custo, com voz baixa e insinuante.
– Não sei! Gritava ele com brutalidade, irritado como se ela o acusasse. Mesmo você é tão estúpida que morria antes de compreender […] (LISPECTOR, 1992, p. 48).
Consideremos apenas como um xingamento, um comportamento agressivo. Pois o ápice da tirania foi a criação da Sociedade das Sombras, espécie de “clube” que o próprio Daniel cria para exercitar seu sadismo sobre a irmã:
A Sociedade das Sombras tinha objetivos estranhos e indefinidos. Eles mesmos não os conheciam e misturavam seus mandamentos a uma ignorância quase desesperada. A Sociedade das Sombras deveria explorar a mata. Sim, sim. Mas por quê? Perto do casarão havia um caminho quase cerrado e por lá alcançava-se a escuridão, sim, a escuridão, mas por quê? (LISPECTOR, 1992, p.49).
Um dos episódios mais marcantes deste “clube” acontece quando Daniel ordena, como punição, que Virgínia fique, durante um dia, fechada no porão [19]. E Virgínia silenciosamente obedece. No silêncio, ela permanece. Obediência à exaustão, silêncio ao cansaço.
Era preciso não se misturar, nada mover ao seu redor com o pensamento para não ser imperceptivelmente movida. Distraída, adivinhava: pensando profundamente ia saber o que era dela com água misturada à água do rio e o que não era, como pedras misturadas à água do rio. […] Caminhou para o porão lentamente, empurrou sua grade e mergulhou ao cheiro frio de penumbra onde timidamente viviam bacias, poeiras e móveis velhos. […] Sentou-se e esperou. Apertava a intervalos o grosso vestido contra o peito. Os pássaros lá fora cantavam mas isso era o silêncio. (LISPECTOR, 1992, p.52).
E ela fica. Pode não parecer, mas esta é sua primeira grande vitória na vida. É o território hostil que ela desbrava, na desterritorialização ela se reterritorializa. Permanecer, em silêncio, no escuro, significa que ela não teme o mistério, o desconhecido. Pelo contrário, atrai-se a isso, vai ao encontro daquilo que outros fugiriam. Passa a imagem de coragem e curiosidade. Curiosidade não somente com o mistério – forma abstrata de ela tocar o desconhecido –, mas também com o silêncio: Virgínia já conhece o próprio silêncio, este é-lhe imanente, precisa explorar o exterior, o silêncio exterior: dos objetos, dos seres, dos campos, das pessoas, da fala, do próprio barulho. Em tudo há silêncio: aquilo que não se nota, assim como o ar passa despercebido por nossos pulmões, a não ser quando falta. Ela é a maçã no escuro, perdida em linguagem desconhecida. Nesse sentido que cava um caminho exaustivo, assim se movimenta (aqui começamos a construir nossa ideia principal de movimento em O lustre): Virgínia, exaustivamente, procura sair do próprio silêncio para o silêncio ao redor. É cansativo, mas intenso, um movimento que não se interrompe, que é captado pelos olhos ou ouvidos, ou então pelo toque.
Aqui uma amostra da verticalidade e intensidade do movimento:
Linhas luminosas, secas e velozes riscavam sua visão interior, sem sentido, escapulidas de alguma fresta misteriosa e então, fora do próprio meio do nascimento, débeis e tontas. Ela podia pensar em todos os sentidos; fechando os olhos dirigia dentro do corpo um pensamento da qualidade do que nasce de baixo para cima ou senão do que percorre correndo o espaço aberto – isso não era palavra ou conteúdo mas o próprio modo de pensar orientando-se. Seria isto pensar profundamente – não ter sequer um pensamento a trazer à superfície… (LISPECTOR, 1992, p. 52-53).
Há mais a abordar nesta cena. Após certo tempo, após a epifania e o “pensar sem palavras”, Virgínia sai do porão, tenta passear pelos campos, não consegue e volta para casa (com isso, Daniel perde, ao menos de momento, a autoridade que tinha sobre a irmã). É interessante pensar que, enquanto no escuro e no silêncio, Virgínia transcendeu os céus e os sentidos, flutuou como se passeasse pelo mundo, e, ao sair de lá, já tinha perdido tudo: o momento, a epifania, a linguagem certa para seu descobrimento. Isso nos lembra algo que Maurice Blanchot (2011) escreve a respeito da inspiração, aquilo que serve como faísca a um escritor. Em algum sentido, pensamos que algo similar ocorreu a Virgínia: no escuro tudo desapareceu para reaparecer novamente. Vejamos Blanchot:
Na noite, tudo desapareceu. É a primeira noite. Aí se avizinham a ausência, o silêncio, o repouso, a noite. Aí, a morte apaga o quadro de Alexandre, aí aquele que dorme não o sabe, aquele que morre vai ao encontro de um morrer verdadeiro, aí se realiza e se cumpre a palavra na profundidade silenciosa que a garante como o seu sentido. Mas quando tudo desapareceu na noite, “tudo desapareceu” aparece. É a outra noite. A noite é o aparecimento de “tudo desapareceu”. É o que se pressente quando os sonhos substituem o sono, quando os mortos passam ao fundo da noite, quando o fundo da noite aparece naqueles que desaparecem (2011, p.177).
E assim tudo muda, o que não aparecia, aparece, Vírginia se desloca mesmo sem nunca ter saído de lá. Como um esvaziamento que possibilita o alcance, o encontro decisivo que se esvai logo após o primeiro toque, conquistar e perder imediatamente a conquista, achar no desencontro, na noite, um encontro possível, procurar um caminho próprio no escuro, mesmo que em perda, fracasso [20]. Assim está (esteve) Virgínia no porão.
Avancemos na narrativa. Mais especificamente, encontraremos Virgínia já adulta, morando em uma dita “cidade grande” [21]. Percebemos a confirmação de um indício que já aparecia em sua infância, recheada de descobrimentos e de conexão com o desconhecido: ela se sente estranha – condição constante na literatura de Lispector, o estranhamento. Se antes olhava para o mundo sem entender, agora olhava e entendia sem concluir nada. Desse modo, está deslocada tanto em Granja Quieta quanto em Brejo Alto – e, provavelmente, em qualquer lugar. É uma estrangeira – ou constantemente se desterritorializa, como queira –, tal como Clarice. Perceber tal detalhe permite-nos aproximar a leitura do romance às concepções de exílio – talvez termo intercomunicante com o nomadismo de Deleuze e Guattari (1997). Mais propriamente, podemos aproximar tal estranheza ao que escreve Jean-Luc Nancy (1996) sobre o exílio.
Nancy deseja estabelecer uma reflexão acerca do exílio como uma condição da existência. Não há meio termo, terra habitável nem lugar além do exílio. Desse modo, o espaço não nos lança ao exílio, mas a própria existência é exílio. Assim, resta somente a expropriação, que se traduz numa busca incessante, um movimento de saída – não de si, nem dos outros, mas permanecer na própria expropriação, algo inerente à existência moderna [22]. Tal característica permite que entendamos o exílio como potência: se não há terra habitável possível, então não é necessário procurar por isso (os fins não importam, mas sim os meios; e, nesse caso, o meio é a saída, o movimento). Como se pode perceber, há um paralelo entre o que dizem Deleuze e Guattari (1997) – sobre nomadismo, movimento ou desterritorialização – e o que pensa Jean-Luc Nancy (1996) sobre exílio (nem mesmo o estranhamento se distancia: se o nômade está em constante desterritorialização, o exilado está para sempre expropriado). Em ambos há um projeto, uma tarefa a se pensar, pensar o nomadismo e o exílio é, por assim dizer, por o pensamento em ação.
Retornemos ao romance. Mais especificamente, ao jantar a que Virgínia, meio que contra a vontade, vai. Tudo ocorre bem, mas ela está mais atenta a observar, a aprender aquilo que se apresentava como um mundo novo:
[…] tudo realmente deslizava bem, o jantar era um sucesso, o marido de Irene [anfitriã do evento] ria inclinado sobre a mesa, apesar das vozes por instantes se libertarem muito acima o harmonioso ruído dos talheres e engrossarem desagradavelmente – depois da reunião ficariam amáveis um em relação ao outro, gratos porque ninguém se ofendera, nenhum pedaço de galinha saltara do prato, porque ninguém havia comido a ponto de se sentir infeliz, só aquela plenitude que mais um momento e seria incômoda, deixando os olhos turvos e aflitos – mas não, só o leve aturdimento gentil, gentil, gentil. (LISPECTOR, 1992, p. 82).
Ou seja, apenas o leve movimento, o quebrar dos talheres, a risada exagerada, o constrangimento social, fariam desmoronar tudo. E não somente para Virgínia – embora estejamos, ainda, na superfície –, mas para todos: o código social era bem visto e bem servido em razão de algo maior – evitemos a estranheza sempre que pudermos.
Embora não seja assim tão simples. A festa acabou, os dias passaram, Daniel já não convive com Virgínia, de modo que sua companhia mais constante é Vicente. E assim ela vivia em pensamento e imaginação, presa na linguagem: a realidade era uma apresentação, e pensar era um modo de conhecê-la. Era um esforço tocar o que estava ali, pois tudo parecia evidente, mas ela procurava sempre o segredo. E “sua impressão então era a de que só poderia chegar às coisas por meio de palavras. Era sempre um esforço entender, entender tudo”(LISPECTOR, 1992, p. 97).
Esforço, esforço. Paralisia indefinida, tentativa inútil. Parece apenas seguir ordens, mas é um desbravamento – quando silenciava à voz de seu pai, quando obedecia Daniel, quando seguia as normas sociais, era porque Virgínia queria conhecer, desvendar (o esforço de ficar no mesmo lugar).
Até que nova mudança ocorre e ela vai morar com duas de suas primas, Arlete e Henriqueta. E mais uma vez encontra pessoas que querem lhe impor controle (negavam-lhe comida, obrigavam-na a aprender a coser), novamente silencia como forma de resistência. Chega a pensar que fora péssima ideia vir morar com as duas primas e considera constantemente sair de lá, mas ainda assim adia tal decisão. Virgínia somente deixa a casa após a alegação de que havia batido em Arlete, detalhe que proporcionaria uma discussão. E, após sair, vai morar em uma pensão. Assim, Virgínia
Descobriu que não possuía bom senso, que não estava armada de nenhum passado e de nenhum acontecimento que lhe servisse de começo, ela que nunca fora prática e sempre vivera improvisando sem um fim (LISPECTOR, 1992, p. 111).
Sempre dessa forma, um encarceramento, como se estivesse presa em areia movediça, sempre a paralisia seguida do silêncio e então os pensamentos e, assim, a exaustão. A loba solitária que não caça, mas observa, força exterior presa num espaço estriado – não somente a cidade como símbolo, mas também a família, as pessoas próximas, os amores.
E na escravização da existência resta a Virgínia a solidão. E na evolução da linguagem constituem-se devires [23], coisa contínua e sem descanso, tal como é a persistência de Virgínia. Não há paradas, e através de pensamentos a subjetividade de personagens, principalmente da protagonista, é explorada. E desse modo a vida continua, as páginas se corroem e o animal atormentado (Virgínia) espera, espera, nunca um retorno, mas sempre um novo abismo:
Ocorria-lhe em raros e rápidos segundos de visão que sua comunicação com mundo, aquela secreta atmosfera que ela cultivava ao redor de si como um escuro, era o seu último existir – depois dessa fronteira ela própria era silenciosa como uma coisa. E era essa última vida interior que continuava sem lacuna o fio de sua existência de mais elfo na infância (LISPECTOR, 1992, p. 131).
Essa consciência, mesmo que efêmera, essa luz, mesmo que assombrada, era constante na vida de Virgínia, em sua solidão na cidade grande (sua companhia mais frequente, novamente, era Vicente). Por vezes, inclusive, ela parecia querer desterritorializar o próprio corpo, com intervalos longos de jejum, somente para depois comer mais do que necessitava.
Até que, meio que a pedido de seu pai, meio que em razão da morte de sua avó, retorna a Granja Quieta, sem avisar Vicente. Foi apenas a passeio, e lá não mais encontrou sua infância, mas um espaço desconhecido e, por que não dizer?, abandonado (vários móveis foram vendidos ou simplesmente envelheceram, a casa já não sustentava qualquer traço de juventude). Percebemos que mesmo Vicente, o novo “catalisador”, já não tinha a mesma força para mantê-la perto – era hora de procurar novo caminho; e mesmo nisso o silêncio era constante.
O mesmo vale para Daniel, ou para seu pai, ou para qualquer membro da família. Tudo havia mudado, tudo estava fadado a não estar mais no mesmo lugar:
Não era só de Daniel que ela [Virginia] se via afastada. Na sua ausência os pequenos fatos diários que ignorava erguiam-se em barreira e ela se sentia excluída do mistério da família. Entre as conversas os instantes de silêncio enchiam-se de reserva e vaga desaprovação. Pareciam culpá-la de não continuar ausente, de ter vivido com eles a infância e a juventude. Como que se defendiam de uma acusação que na realidade ela não sabia fazer.
Que foi que aconteceu de bom? Perguntava sorrindo falsamente.
Era tão difícil contar o que sucedera na separação… tudo escapando às palavras.
Bem, tudo correu igual a sempre, diziam afinal aborrecidos. (LISPECTOR, 1992, p. 192).
E assim Virgínia tenta, mergulha em outros mistérios. Deixa (deixou) aos poucos o passado porque, ainda que lenta, sua busca era incessante. Nenhum pouco horizontal, mas vertical – não como alguém que vai ao céu ou ao inferno, mas como alguém que os desbrava. Ver é um ato solitário e em Virgínia isso era um turbilhão, sempre pulsante em pensamento: assim percebemos a duplicidade de quem se projeta na esperança de desbravar não o território, mas o silêncio, e a perplexidade de perceber que não há silêncio mais gravitacional que o de si mesma – e que isso é o lustre: a luz é silenciosa, mas pode ecoar pelo indefinido e criar mistérios que encantarão ou atormentarão outros olhos.
E então, cansada do ambiente e das pessoas que fizeram parte de sua infância, Virgínia decide voltar à cidade grande pela última vez: o final da narrativa nos leva à morte da protagonista, que é atropelada por um carro. Similaridade com A hora da estrela (1998), em que Macabéa também tem o mesmo fim. Embora não exatamente com o mesmo significado. Sim, ambos os romances dialogam com a ideia de luz e escuridão, linguagem e mundo (nisso paralelos se encontram em A maçã no escuro [1998]). No entanto, a morte para Macabéa é um fechamento, quando o futuro anunciava uma escapatória da vida que ela levava no presente (ou seja, um corte da esperança, também um corte na vida, ou na não-vida de Macabéa). Além do mais, a morte serve a Macabéa como seu momento de brilho máximo, enquanto que para Virgínia isso é uma abertura para o mistério, um novo encontro com o mistério (que, ao final de tudo, foi o centro da vida de Virgínia).
Vemos assim: Virgínia esperava alguma mudança em seu retorno à cidade grande, seus laços com o passado eram cada vez mais fracos (tanto assim que suas decisões eram tomadas instantaneamente, como quando fora morar com as primas ou decidira retornar à metrópole), mas a mudança, o futuro, não era um “filho” que ela carregava, tal como ocorre a Macabéa [24]. E sim, a morte é uma abertura para a protagonista de O lustre, embora de forma exclusiva – como uma focalização, como quando a luz nos cega por ser forte demais (olhar para o céu, nesse cenário, não é buscar a luz, mas a escuridão), assim se conservava Virgínia, estatelada no chão, ela mesma o grande mistério que sempre procurara [25].
Vejamos a cena. Após ser atropelada, Virgínia ficou cercada de pessoas, sendo algumas conhecidas, outras não. Depois de sua morte, vemos o ocorrido a partir do olhar de Adriano, amigo de Vicente (e que nutria certa afeição por Virgínia). Vários comentários começam a circular a respeito daquela mulher que jazia no chão (de que, por exemplo, Virgínia havia se envolvido com um homem casado, porteiro de um prédio no qual ela morou), o que desaponta Adriano – era o silêncio que falava, o mistério se construindo; praticamente nada poderia dar um veredito, fosse sobre isso ou outros assuntos, mas as palavras circulavam, e tudo se dava por um instante: a cena final, por assim dizer, se constrói em tensão que leva ao clímax, com Virgínia parada na calçada, pensando sobre diversas coisas, sobre como queria mudar, se mover. Tudo aconteceu com uma rapidez jamais demonstrada na narrativa, e ainda assim tudo parecia parado (nesse sentido, o presente parecia parar para dar lugar aos pensamentos de Virgínia, e isso surge, muitas vezes, com a valorização de momentos precisos). Assim, achamos válido apontar a reflexão de Silviano Santiago (1997) (presente no livro Cosmopolitismo do pobre e também no texto “A aula inaugural de Clarice”, sobre a escritura de C. L.).
Quis ela [Clarice] inaugurar uma outra concepção de tempo para o romance (vale dizer de história, ou seja, de transformação e evolução do personagem): a do tempo atomizado e, concomitantemente, especializado. Não há dúvida que o “momento”, “os raros momentos essenciais” […] estão dramatizados na ficção de Clarice (SANTIAGO, 1997, s/p.).
E, voltando ao romance, após a quebra desse momento essencial (que existe no romance e realmente está dramatizado), após a quebra dessa paralisação, as pessoas continuaram ao redor de Virgínia, mas são os pensamentos de Adriano que acessamos:
Assim, ela recebia homens no seu quarto. E assim ela recebia homens no seu quarto! Prostituta, pensou ele. A morte inacabara para sempre o que se podia saber a seu respeito. A impossibilidade e o mistério cansaram com força seu coração (LISPECTOR, 1992, p. 239).
É a morte que fala, mesmo na sombra; é a morte que sussurra, mesmo na escuridão. Os pensamentos de Adriano violentamente ressignificam a morte de Virgínia, procuram apagar o fato, o corpo, o ser, o sujeito, mas a morte é o inacabamento, ela é mais forte. A morte que narra, que ganha autoridade, garante uma transmissibilidade (mesmo que, na narrativa, isso se traduza em mistério), e nisso pensamos em Walter Benjamin (1987) [26]: Virgínia, sem vida, provoca um afastamento (tanto assim que somos levados aos pensamentos de Adriano), guia a uma escuridão que é abertura – o indefinido, o mistério definitivo que se conserva com o chapéu, símbolo do assombro dela quando criança (quando foi atropelada, ela usava um chapéu).
Não somente isso. Através do silêncio vemos se consolidar uma máquina de guerra [27], um instrumento nômade. Pela exaustão e pelo silêncio, Virgínia, mesmo morta, se moveu (ou fez mover). Toda a irritabilidade que provocava em Daniel era uma motivação, todas as respostas mudas e a obediência lenta eram uma maneira de implodir o seu meio, desterritorializar o hostil. E vemos nas palavras finais da narrativa a consolidação de uma revolta que se perpetuou pelo silêncio exaustivo:
Adriano sentou num banco do jardim, mal se apoiava ao seu encosto. Os olhos entrefechados olhavam para a distância, ele respirava dificilmente com surpresa e cólera. Com o lenço alisou devagar a testa dura e fria. E de súbito não saberia se era de gelado êxtase ou de sofrimento intolerável – porque nesse único instante para sempre ele a ganhara e a perdia [Virgínia] – de súbito, numa primeira experiência da vergonha, ele sentiu dentro de si um movimento horrivelmente livre e doloroso, um vago ímpeto de grito ou choro, alguma coisa mortal abrindo no seu peito uma clareira violenta que talvez fosse um novo nascimento (LISPECTOR, 1992, p. 239).
Assim, a máquina de guerra, Virgínia, havia libertado Adriano, era um movimento livre que poderia ser um nascimento, uma indecisão que não sabia se tal sentimento se traduzia em glória ou derrota.
Considerações finais
Observamos em O lustre, narrativa de luz e sombra, de silêncio e som, um romance exaustivo. A força com que a linguagem se desenvolve, num fluxo praticamente interminável, faz jorrar pensamentos e percepções, principalmente no que se refere à protagonista.
Em relação à Virgínia, pensamos que, mesmo que quase sempre submetida por algo além dela mesma (as relações de obediência que mantinha com seu pai ou seu irmão, Daniel, ou então a admiração que nutria por Vicente), nada a manteve tão fixa quanto a busca pelo mistério. Era uma força gravitacional, reiteramos, que a colocava em uma busca incessante, vasculhando, desbravando, observando, pensando. Nem mesmo a morte, que poderia ter colocado fim nisso, conseguiu: pelo contrário, serviu para apresentar Virgínia como o lustre, sendo ela mesma o próprio mistério.
Assim, temos como movimento intenso essa tentativa, cansativa, de Virgínia de sair do próprio silêncio com o intuito de desbravar o “silêncio exterior”. Era a forma de ela se conectar (ela acreditava) ao mais puro do desconhecido – pois acreditava existir o “mistério do mistério”. E, como já abordado, esse caminho era lento, ineficaz, sempre um esforço quase ao limite da percepção, um desbravamento daquilo que é exterior e também imanente. Esforço, claro, que a desterritorializava, provocava estranhamento, isolamento e novamente silêncio. E nisso tudo, no turbilhão de percepções que constroem a narrativa, estão os devires na linguagem e desterritorialização do espaço – era preciso se reterritorializar, e Virgínia permaneceria até que o silêncio se apagasse.
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política – obras escolhidas. Vol. 1. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 3ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 197-221.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
BRAIDOTTI, Rosi. Metamorphoses: towards a materialist theory of becoming. Malden: Blackwell Publishers, 2002.
CHKLOVSKI, Viktor. A arte como procedimento. In: TODOROV, Tzvetan. Teoria da Literatura- I. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 39-56.
CIXOUS, Hélène. La hora de Clarice Lispector. Barcelona: Anthropos; San José: Editorial de la Universidad de Puerto Rico, 1995.
CURI, Simone. A escritura nômade em Clarice Lispector. Chapecó: Argos, 2001.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles; GUATARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995.
_______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. São Paulo: Editora 34, 1997.
_______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 5. São Paulo: Editora 34, 1997.
LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_______. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_______. A maçã no escuro. São Paulo: Rocco, 1998.
_______. O lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
MOSER, Benjamin. Clarice. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
NANCY, Jean-Luc. La existencia exilada. Archipiélago, n. 26-27, inverno de 1996, p. 34-40.
NINA, Cláudia. A palavra usurpada – exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector. Porto Alegre: Edipucrs, 2003.
PACHECO, Keli. A fala exilada em A hora da estrela. In. BUENO, A, MOREIRA, C, SKREPTZ, I e DULCELI, T. (Orgs). Imagens da América Latina. União da Vitória: O Guari, 2014.
SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
________. A aula inaugural de Clarice. São Paulo: 1997, s/p. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/12/07/mais!/20.html> (Acesso em: 23/08/2017).
________. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural, 2° ed. Rio de Janeiro: Rocco. 2000.
Recebido em: 28/06/2019
Aceito em: 28/07/2019
[1] Professora adjunta de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG, Departamento de Estudos da Linguagem, Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem. E-mail: kelipacheco@hotmail.com
[2] Mestrando em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. E-mail: williamf.o@outlook.com
[3] Lúcio Cardoso, Francisco de Assis Barbosa e Joel Silveira, por exemplo, foram alguns surpreendidos por tal furor.
[4]Podemos perceber em tais apreciações traços de um machismo existente na crítica que parece insistir em pensar que uma mulher não pode ou não deve escrever bem.
[5] Um dos detalhes que contribuiu para um “estrangeirismo” em Lispector: seu sotaque com “r”s carregados.
[6] “O que aparece na noite é a noite que aparece, e a estranheza não provém somente de algo invisível que se faria ver ao abrigo e a pedido das trevas: o invisível é então o que não se pode deixar de ver, o incessante que se faz ver […]. Isso está vazio, isso não existe, mas veste-se isso como se fosse uma espécie de ser, encerra-se-o, se possível, num nome, numa história e numa semelhança” (BLANCHOT, 2003 p. 177-178).
[7] Em “O autor como gesto”, Giorgio Agamben (2007) reflete sobre o texto de Michel Foucault (1982), “O que é um autor?”, e afirma que, embora ausente e sem autoridade sobre um texto, sem autor não existe texto, e a ausência surge, então, como gesto, “presença apagada”. Assim, “há […] alguém que, mesmo continuando anônimo e sem rosto, proferiu o enunciado, alguém sem o qual a tese, que nega a importância de quem fala, não teria podido ser formulada. O mesmo gesto que nega qualquer relevância à identidade do autor afirma, no entanto, a sua irredutível necessidade” (2007, p. 55).
[8] “O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a marca que faz o território. As funções num território não são primeiras, elas supõem antes uma expressividade que faz território. É bem nesse sentido que o território e as funções que nele se exercem são produtos da territorialização. A territorialização é o ato do ritmo tornado expressivo, ou dos componentes de meios tornados qualitativos. A marcação de um território é dimensional, mas não é uma medida, é um ritmo”. (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 106). Não é possível entender a questão da desterritorialização a partir dela mesma, daí a colocação de sua relação com o território, como afirmam Deleuze e Guattari.
[9] Benjamin Moser (2009) escreve que, durante alguns momentos de sua vida, Clarice escrevia enquanto tomava conta dos filhos.
[10]Vejamos o embate de Kafka como exemplo: “[…] Kafka se choca e se divide. Ele tem uma profissão, uma família. Pertence ao mundo e deve pertencer-lhe. […] O Diário – pelo menos até 1915 – está repassado de comentários desesperados, onde se repetem pensamentos suicidas, porque lhe falta o tempo. […] Sem dúvida, as circunstâncias exteriores não são favoráveis, deve trabalhar pela tarde ou à noite, o sono perturba-o, a inquietação esgota-o, mas seria ocioso acreditar que o conflito teria podido desaparecer mediante “uma melhor organização das coisas”. […] Não há circunstâncias favoráveis”(BLANCHOT, 2011, p. 56).
[11] Benjamin Moser é um exemplo disso: não somente não parou em sua biografia sobre C. L., como também organizou coletânea de contos da autora. Outros nomes são: Claudia Nina, Simone Curi, Hélène Cixous, Rosi Braidotti, Silviano Santiago, Nádia Gotlib, e mais uma série infinda de pesquisadores que se debruçam sobre a obra da autora.
[12] É preciso um contexto acerca da narrativa: o romance se inicia com Virgínia ainda criança, vivendo em uma área rural, chamada Granja Quieta, com sua família e, principalmente, seu irmão Daniel. É uma vida isolada, calma, centralizada na figura paterna (ambiente patriarcal e autoritário, em que o pai “reina”, por assim dizer). Nota-se logo no início a menção ao mistério, objeto catalizador de Virgínia: enquanto passeava com Daniel, ambos viram um chapéu flutuando em um rio. Não há nenhuma explicação sobre, apenas a indicação de que houve um afogamento e que ninguém além dos dois deveria saber da existência do chapéu.
[13] Gilles Deleuze e Claire Parnet (1998) escrevem que a linha de fuga é “uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem o que é isso. É claro que eles fogem como todo mundo, mas eles pensam que fugir é sair do mundo, místico ou arte, ou então alguma coisa covarde, porque se escapa dos engajamentos e das responsabilidades. Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano. […] Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobre mundos através de uma longa fuga quebrada”, (p. 30).
[14] Pode-se entender as definições de espaço liso e estriado através da analogia que Deleuze e Guattari (1997) fazem: há primeiramente o jogo de xadrez, jogo que representa o espaço estriado (o território do jogo é totalmente delimitado, marcado, as peças prosseguem em movimentos já tracejados, o espaço constitui-se fechado); então há o go, completamente o contrário – as peças, que em si não possuem valor definido, circulam em livre movimento, num espaço aberto, não delimitado, constroem o próprio trajeto na construção do jogo em si, trajeto este que se apaga constantemente, como as areias do deserto. Desse modo, o xadrez se constitui território da polis, e o go se faz território do nomos.
[15] “O movimento pode ser muito rápido, nem por isso é velocidade; a velocidade pode ser muito lenta, ou mesmo imóvel, ela é, contudo, velocidade. O movimento é extensivo, a velocidade, intensiva. O movimento designa o caráter relativo de um corpo considerado como "uno", e que vai de um ponto a outro; a velocidade, ao contrário, constitui o caráter absoluto de um corpo cujas partes irredutíveis (átomos) ocupam ou preenchem um espaço liso, à maneira de um turbilhão, podendo surgir num ponto qualquer”, (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 44). Um dos exemplos de intensidade e velocidade apontados pelos autores seria a fortaleza, proteção que o “estado” achou para conter as investidas nômades: como os ataques eram baseados em intensidade, a fortaleza tinha como objetivo frear tal movimento.
[16] “Se o nômade pode ser chamado de o Desterritorializado por excelência, é justamente porque a reterritorialização não se faz depois, como no migrante, nem em outra coisa, como no sedentário (com efeito, a relação do sedentário com a terra está mediatizada por outra coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado…). Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização”, (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 44).
[17] Em A cidade sitiada, outro romance de Lispector, isso se torna mais visível: tem-se São Geraldo, cidade rural que se moderniza; a cada capítulo, as extensões de terra, antes verdes, ganham ruas, prédios e casas.
[18] Virgínia é uma estrangeira (ponto que abordaremos mais adiante neste texto): não pertence à Granja Quieta ou aos campos ou ao casarão que lá se encontra; também na cidade grande não acha conforto, ou iguais.
[19] “- Virgínia, todos os dias você vendo café com leite gosta de café com leite. Vendo pai você respeita pai. Arranhando a perna você sente dor na perna, já compreendeu o que eu quero dizer? Você é vulgar e estúpida […]. A Sociedade das Sombras sabe que você é vulgar porque não pensa, como se diz, com profundeza, porque você só sabe seguir o que lhe ensinaram, está entendendo? A sociedade das Sombras manda que você amanhã entre no porão, sente-se e pense muito, muito para saber o que é de você mesma e o que é que lhe ensinaram. Amanhã você não deve se preocupar com a família nem com o mundo! A Sociedade das Sombras falou”, (LISPECTOR, 1992, p. 53).
[20] Talvez seja possível pensar em outro paralelo relacionado à metáfora da noite: “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já “passado” não importa para a arte”, (CHKLOVSKI, 1999, p. 45). Ou seja, Viktor Chkloviski pensa essa questão da singularização dos objetos como um ponto de estranhamento: cria-se um distanciamento, uma dificuldade e uma prolongação da percepção do objeto; e o “olhar”, então, acontece agora; o passado está irremediavelmente perdido (tal como achar um encontro possível e perdê-lo logo em seguida).
[21] Ao longo de todo o livro, há poucos eventos ou ações. Apenas a linguagem se desenvolve através dos pensamentos e percepções de Virgínia, e passa a impressão de que há uma redoma de silêncio, uma câmara a vácuo. Poucas páginas após o episódio da Sociedade das Sombras descrito acima, somos introduzidos a um novo personagem (Vicente, espécie de namorado de Virgínia) e a um novo ambiente: Brejo Alto, cidade dita grande em que Virgínia vai morar. Claro, abandonamos sua infância e adentramos, sem qualquer introdução, em sua vida adulta. Virgínia já não vive com Daniel, que se casou. Iniciamos a jornada em sua nova vida através de um jantar a que ela fora convidada (recebera o convite por conhecer Vicente). Há, logo ali, um desconforto com a situação, de modo que ela tenta controlar tal estado através do álcool.
[22] Vejamos nas próprias palavras de Nancy: “parece, pues, como si hubiera una especie de exilio constitutivo de La existencia moderna, y que el concepto constitutivo de esta existencia fuera él mismo concepto de un exilio fundamental: un “estar fuera de”, un “haber salido de”, y ello no sólo en el sentido de un ser arrancado de su suelo, ex solum, según lo que parece ser la verdadera etimología de “exilio”: ex y la raíz el de un conjunto de palabras que significan “ir”; como en ambulare, exulare sería la acción del exul, el que sale, el que parte, no hacia un lugar determinado, sino el que parte absolutamente” (1996, p. 2).
[23] Podemos pensar o devir, segundo Gilles Deleuze e Claire Parnet (1998), como um movimento paralelo entre dois reinos distintos, não havendo termos ou estados definitivos, mas avanço contínuo.
[24] Podemos confirmar esta leitura de A hora da estrela através de Keli Pacheco (2014): “A força de Macabéa vem de manter-se viva […]. E apesar da morte da personagem, que acontece quando esta finalmente fica ‘grávida de futuro’, o romance encerra com um SIM que surge como uma aposta, uma crença, não em um futuro utópico, o qual encerra Macabéa na morte, mas no presente onde está a vida, em sua paciência e força”, (p. 182). Ou seja, a morte encerra o futuro que Macabéa tinha como aposta, como novo – ela só seria Macabéa enquanto permanecesse no presente, viva.
[25] O lustre como mistério, Virgínia como mistério. O lustre, que carrega consigo o nome da narrativa, era o do casarão de Granja Quieta, que Virgínia sempre olhava com fascínio. Na última vez em que esteve lá, na despedida, acabou esquecendo-se do lustre, não olhou para o objeto – posteriormente, na morte por atropelamento, se colocaria ela mesma transformada em lustre (não como luz: como dito acima, procurar a luz é encontrar a escuridão, e nisso Virgínia se apresentou em mistério). Nesse sentido, podemos apresentar outro paralelo, recorrendo novamente a Viktor Chklovski (1999). Em A arte como procedimento, o autor escreve: “Os objetos muitas vezes percebidos começam a ser
percebidos como reconhecimento: o objeto se acha diante de nós, sabemo-lo, mas não o vemos”. (1999, p. 45). Assim, Virgínia estava estatelada na rua, todos podiam olhá-la, mas não a viam – a compreensão era inexistente.
[26] “[…] Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existênciavivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens – visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso –, assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade.” (BENJAMIN, p. 207-208).
[27] Deleuze e Guattari (1992) definem a máquina de guerra “como um agenciamento linear que se constrói sobre linhas de fuga. Nesse sentido, a máquina de guerra não tem absolutamente por objeto a guerra; ela tem por objeto um espaço muito especial, espaço liso, que ela compõe, ocupa e propaga. O nomadismo é precisamente esta combinação máquina de guerra-espaço liso” (p. 47).
O movimento intenso em O lustre, de Clarice Lispector
RESUMO: O lustre (1982), de Clarice Lispector, romance de silêncio e paralisia, pode ser lido como uma narrativa que potencializa subjetividades, como um produtor de movimentos que não são extensivos, mas intensivos, tratando justamente da transformação e modificação da subjetividade. Nele encontramos Virgínia (foco de todo o desenvolvimento), personagem que perpetra um movimento de dentro para fora, mergulhando no silêncio (inicialmente) de si mesma, em direção ao silêncio que a cerca. Nesse processo contínuo, a personagem produz linhas de fuga (que muitas vezes são o próprio silêncio), escapa da imobilidade, do estriamento do espaço, avança para campos lisos, se desterritorializa na busca pelo mistério – força catalisadora de Virgínia –, se traduz como uma nômade que permanece. Nesse sentido, ao que se refere ao nomadismo, à literatura menor, ao devir, à desterritorialização, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997) sustentam nossa pesquisa. Também nos apoiamos em Jean-Luc Nancy (1996) e sua concepção de existência como exílio. Assim, propomo-nos a refletir sobre movimento e nomadismo em O lustre.
PALAVRAS-CHAVE: Nomadismo. O lustre. Clarice Lispector.
The intense movement in O lustre by Clarice Lispector
ABSTRACT: O lustre (1982), by Clarice Lispector – a novel of silence and paralysis –, can be read as a narrative that potentiates subjectivity, as a producer of intensive movements (instead of extensive moves) – the intensive movements relate to the modification and transformation of the subjectivity. In this novel can be found Virgínia (centre of the plot), character that produces a movement from inside to outside, creating a dive within herself towards the silence that surrounds her. In this continuous process, she produces lines of flight (it is often silence), goes towards smooth spaces, de-territorialises herself on the search for mystery – catalyser to Virgínia – becomes a nomad that stays. Some authors such as Gilles Deleuze and Félix Guattari (1997) support this paper, mainly when it comes to the nomadism, minor literature, becoming, de-territorialisation. Also, the conception of existence as exile, by Jean-Luc Nancy (1996), bases this research. Thus, this paper aims to think about movement and nomadism at O lustre.
KEYWORDS: Nomadism. O lustre. Clarice Lispector.
PACHECO, Keli C. OLIVEIRA, Willian F. de. O movimento intenso em O Lustre de Clarice Lispector. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [Online], Campinas, ano 6, n. 15, Ago. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/o-movimento-in…rice-lispector/