A expressividade do deserto: ressonâncias estéticas


Grandes são os desertos e tudo é deserto.

Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto.

Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.

[…]

 

Álvaro de Campos

Proximidade do deserto

A paisagem do deserto sempre forneceu aos artistas e aos filósofos inúmeros momentos de inspiração. Objeto de fascínio paradoxal por suas características hostis à manutenção da vida, tais como a ausência de rica vegetação e a grande amplitude térmica, o deserto também serve de metáfora para o vazio, o abandono, a desolação e a ruína, sugerindo um referencial imagético capaz de mobilizar o pensamento em torno da experiência humana no mundo e seu destino.

Se tomarmos nossa epígrafe e os versos de Álvaro de Campos (PESSOA, 1951, p. 41), heterônimo de Fernando Pessoa, perceberemos uma estratégia poético-filosófica que estende a condição desértica para a totalidade do real. A grandiosidade dos desertos nos daria a ver sua totalidade, permitindo-nos inferir a sugestão de sua anterioridade em relação à presença “das toneladas de pedras ou tijolos ao alto”, das civilizações e sociedades. Se o deserto pode ser definido pela ausência de uma habitação, pelo vazio de vida, a presença humana no planeta aparece sob a forma do disfarce: disfarce do deserto, distanciamento vertical do solo que nos aproxima da natureza. A superação dos obstáculos naturais por meio da técnica, ao escavar modelos de habitação do planeta, teve um papel importante na elaboração desse disfarce do solo, propiciando aos humanos a ilusão de sua separação e isolamento do ambiente.

No entanto, se o deserto pode servir de imagem para o vazio anterior ao homem, por conseguinte, também pode, igualmente, assinalar sua posterioridade. A posterioridade do deserto, do vazio de vida, que torna ilusória a posteridade do homem. Cenários que desafiam a permanência humana no planeta têm sido sugeridos com os consecutivos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Seu último relatório, publicado em 2014, confirma enfaticamente a influência humana no sistema climático do planeta[2], tendo sido alcançada a mais alta taxa de emissão de gases de efeito estufa da história. Desde a década de 50 do século XX, são observadas mudanças que apontam para evidências de aquecimento do planeta sem precedentes, em especial nas três últimas décadas.

Os dados do relatório científico do IPCC convocam à conscientização global e à tomada de medidas para salvaguardar as sociedades das ameaças decorrentes das mudanças climáticas – em especial aquelas em situação de pobreza. Suas previsões reconhecem a possibilidade real de altos riscos ao final do século XXI: caso não realizemos esforços mais efetivos que os atuais para atenuar as consequências do aquecimento global, os impactos podem ser graves e irreversíveis.

Se persistia ainda alguma resistência em se considerar o deserto como co-condição da humanidade, o relatório fornece uma enfática ocasião para o pensamento em torno de um destino em comum, de apostas conjuntas. Tais apostas têm como prerrogativa uma mudança de perspectiva com relação à paisagem desértica: trata-se de apreender o deserto como lugar que não se opõe à vida e ao pensamento, mas que se oferece como potência para a criação de relações, habitações, modos de vida futuros. Com a dissolução desta oposição, dissolver-se-ia também a ilusão de separação que o homem entretém com o ambiente, ancorada na ilusão metafísica de duplicação do real. O pensamento, longe de ser um ato natural ou isolado em algum recôndito mental, não atua pela duplicação do mundo em imagem, pela representação, mas somente se exerce quando é impelido, quando é forçado, por algo, ao movimento. No limite, este algo pode ser associado ao mundo, à Terra.

Evocaremos aqui alguns apontamentos que aproximam a condição desértica do pensamento, ao mesmo tempo em que se extrai de sua imagem um operador conceitual capaz de reverberar as ressonâncias estéticas que atravessam os problemas em foco.

 

Ilusão da distância

Um dos efeitos das mudanças climáticas observadas e relatadas pelo IPCC, além do aumento do nível do mar e do aquecimento da atmosfera e dos oceanos, foi a diminuição da quantidade de neve e gelo, com o aumento do derretimento e a diminuição da extensão das camadas geladas do planeta. Desde 2006, a artista e fotógrafa estadunidense Diane Burko tem se dedicado à causa das mudanças climáticas, investindo sua obra no processo de investigações visuais em áreas remotas, onde é possível perceber os efeitos do aquecimento planetário. Nos últimos anos, seus esforços têm se concentrado nas regiões polares, documentando a diminuição de geleiras ao longo do tempo. Suas fotografias e pinturas, que emulam a imagem fotográfica, nos forçam a pensar tanto sobre as redes que compomos com o ambiente quanto com as redes que a arte compõe com o real.

 

Figura 1 - Over Ilulissat 1 | Fonte: BURKO, 2014.

Figura 1 – Over Ilulissat 1 | Fonte: BURKO, 2014.

 

Em expedição recente, Burko acompanhou a geleira de Ilulissat na Costa Oeste da Groenlândia. Desde 2000, esta camada gelada da Groenlândia já perdeu 739 gigatons de gelo devido ao derretimento (BURKO, 2014, [s.p.]). Para nós, observadores do Antropoceno, os pedaços de gelo captados na foto, em contraste com a água e a pedra nua, sugerem uma fronteira não apenas espacial, mas existencial. Somada aos painéis climáticos traçados pelos cientistas, a fotografia se projeta como mensagem estética a partir das relações que capta em paisagens anteriores ao homem. Embora a fotografia tenha sido produzida com um ponto de vista aéreo[3], aquilo que ela nos revela nos é bastante próximo e urgente. Refletida no sensor da câmera de Burko, a luz registra um dos instantes que marcam a fronteira existencial da contemporaneidade, ativando em nós o pensamento acerca do destino em comum dos homens.

A herança metafísica do Ocidente legou à ciência o lugar privilegiado de onde podemos observar e explicar o mundo, a partir da relação binária entre um Sujeito, elemento ativo do conhecimento, e um Objeto, a saber, o todo do real, a Natureza, que se daria ao conhecimento evidenciando sua propriedade passiva[4]. O mundo estaria condenado a ser percebido de forma objetiva (curiosamente, objetiva é também o nome da lente de uma câmera fotográfica), com seus sistemas e modos de funcionamento específicos, que apagam a singularidade de suas partes ao englobá-las em unidades gerais, ilusórias, conjuntos abstratos, destacados de sua realidade imediata. A aceitação deste percurso significador, que se caracteriza pela criação de um duplo do real[5], de uma instância transcendente que autorize e legitime a vida e o mundo, produz as formas abstratas pelas quais se admite compreender as noções de razão, mundo, natureza. Porém, diante deste percurso “objetivante” do conhecimento, poderíamos nos perguntar e duvidar, com Nietzsche: de que objetividade se trata?

Possibilitando a crença do homem na independência diante dos processos que o constituem, a ideia tradicional de objetividade, tal qual cunhada desde a modernidade na ciência, recebe outros contornos a partir da doutrina do perspectivismo, anunciada por Nietzsche:

De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si”; – tudo isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção […]

(NIETZSCHE, 2002, p. 109).

Considerando como contraditórias as ideias de um conhecimento que fosse puro, de uma espiritualidade que transcendesse os espíritos, o interior particular dos homens, Nietzsche alerta os filósofos que se atenham às particularidades de cada olho, não exigindo do olhar que vá além de seus próprios horizontes, de sua própria fisiologia, já que a simples atribuição de um objeto para o olhar seria uma forma de ignorar ou desconsiderar o próprio ato de ver, pois, definitivamente, “existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’” (NIETZSCHE, 2002, p. 109).

Desde a Antiguidade, a visão foi enfatizada e adotada como metáfora para o conhecimento racional (KELLER; LONGINO, 1996), posicionando-se como superior diante de outros sentidos e contribuindo para o distanciamento do homem em relação ao mundo. Embora Platão já aponte a associação da visão com o conhecimento das ideias, será apenas com Descartes que ela alcançará sua comunhão com a mente e a dimensão inteligível do homem, tendo os olhos como acesso privilegiado do corpo às verdades da alma, para além da existência material, corpórea. Admitindo que o conhecimento provenha de uma luz interior ao sujeito, a passividade do processo mecânico do olhar sofre uma inversão capaz de dotá-lo de agência. A legitimidade do conhecimento é garantida, portanto, pela criação do Eu como um duplo mental do sujeito, responsável pela manutenção da ilusão de sua separação do mundo.

Se admitíssemos ser a fotografia uma duplicação do real, o trabalho de Diane Burko nos apareceria como mera informação, algo distante em relação à vida cotidiana, que só nos diz respeito indiretamente. Não se diferenciaria em nada das reportagens de aventura, cujo papel se reduz, em geral, à apresentação das áreas remotas do planeta como mimese de processos exploratórios que se ocupam em levar a visão a experimentar outras paisagens, conhecê-las apenas como outros do mundo ordinário.

 

Habitar o deserto

Se aceitarmos o desafio de Keller e Longino (1996), como poderíamos imaginar o percurso da tradição ocidental recorrendo a alguma outra metáfora que não a visual? Uma possibilidade seria o exercício de pensar a via da audição ou do tato. As próprias autoras – evocando o trabalho de Luce Irigaray e Hélène Cixous (apud KELLER; LONGINO, 1996) – fazem referência ao tato como uma perspectiva feminina ligada ao desejo. Se a via masculina do desejo é articulada ao olhar, a uma componente voyeurística[6], a via feminina estaria antes associada ao toque, elevando-o como protagonista na dimensão do prazer. Tanto o tato quanto a audição permitem, ao contrário do olhar, um acesso à passagem do tempo, à experiência da temporalidade. “Uma mente desencarnada poderia ter apenas experiências visuais, mas não táteis” (VESEY apud KELLER; LONGINO 1996, p. 200, tradução nossa), isentando-se de qualquer envolvimento com as coisas que ultrapassasse o caráter imediato da visão.

Em outra obra de Diane Burko, desta vez uma pintura que se aproveita do registro fotográfico e científico, a geleira Columbia é mostrada em um tríptico que acompanha a evolução de seu desaparecimento, na Costa Sul do Alasca, nos EUA.

 

Figura 2- Columbia Triptych II | Fonte: BURKO, 2010.

Figura 2- Columbia Triptych II | Fonte: BURKO, 2010.

 

Ao mergulhar as fotografias ou os registros científicos na fluidez e na transitoriedade do traço pintado, Burko chama atenção para a mediação pela qual passam tanto a fotografia – com seu registro “objetivo” – quanto os fatos e relatórios científicos apresentados sobre as mudanças climáticas. Os processos captados por ambos os registros situam o observador como parte integrante daquilo que se mostra. Um observador/espectador, portanto, que ao mesmo tempo observa e sente seus efeitos. Trata-se de tornar tátil, ou sensível, a experiência da visão, como recurso capaz de reenviar o sujeito à percepção da temporalidade na qual ele mesmo está imerso – e que lhe diz respeito diretamente.

Deste modo, quando nos mostra a condição desertificante do mundo, no lugar de funcionar como um duplo do real, a fotografia não faz senão a denúncia da necessidade do duplo, criticando seu caráter ilusório – ancorado na busca de segurança e garantias. De acordo com Clément Rosset, a fotografia não é reprodução do real, mas um signo dele:

[…] não é possível captar, em fotografia, senão um objeto aparentemente vivo, ou verdadeiramente congelado na morte. Segue-se que um ser vivo ou em devir – ou seja, toda forma de ser – se subtrai definitivamente à tentativa de apreensão fotográfica, ou de qualquer forma de apreensão.

(ROSSET, 2006, p. 47, tradução nossa).

Tais objetos, imagens, congelados no tempo, afetam o observador do presente com sua vividez. No entanto, tal vividez não se limita à Forma representada, à identificação da imagem com os conteúdos mentais de quem observa. São as próprias geleiras, as águas e as pedras de Ilulissat e Columbia que nos afetam por meio das imagens captadas, nos fazendo perceber algo que transvasa o mero decalque do real para se impor como condição mínima de seu poder de afetar. São as forças que, insinuando-se por meio da forma, reverberam no observador, em sua vivacidade, reenviando o pensamento às sensações, à fuga das significações humanas, e, enfim, ao deserto e ao vazio como matéria tanto da arte como do pensamento, evocando o nomadismo, aposta ética.

Para Deleuze e Guattari, a arte cria um bloco de sensações definido como um composto de intensidades, forças que existem para além do humano, excedendo os limites e as expectativas daqueles que tomam contato com a obra. Tal composto é formado por perceptos e afectos, palavras destacadas pelos autores para designar, respectivamente, uma diferença com relação às percepções e aos sentimentos, ou afecções. O modo próprio de a arte colocar problemas é por meio destes seres de sensação que formam o composto, segundo nos esclarecem os filósofos:

Os perceptos não são mais percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e de afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si.

(DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 213).

No caso do percepto, trata-se de buscar, ali onde um objeto é percebido, o elemento que se afasta das percepções vividas de um sujeito, impregnadas de significações humanas: “O percepto é a paisagem anterior ao homem, na ausência do homem” (Ibid., p. 219), “[…] são as paisagens não humanas da natureza.” (Ibid., p. 220). No caso do afecto, trata-se de se afastar das afecções, dos sentimentos e emoções pessoais, subjetivas: “Os afectos são precisamente estes devires não humanos do homem […]” (Ibid., p. 220); “O afecto não é a passagem de um estado vivido a um outro, mas o devir não-humano do homem.” (Ibid., p. 224). Notamos, assim, que a arte nos oferta um meio de pensar o mundo de outra forma, a partir da experiência com a qual nos implica nas sensações que não são mais minhas ou suas, mas da Terra, que é deserto e potência.

As obras de Diane Burko, captadas pelo aparato mecânico e modificadas pela pintura, ajudam a tornar sensíveis as forças que desafiam as pretensões do humano em relação à Terra, um desafio cuja urgência é enfatizada pelas mudanças climáticas que a própria obra incorpora. A iminência do deserto, o caráter efêmero da espécie humana, a necessidade de novas apostas políticas que impliquem o homem no ambiente, são questões que invadem as preocupações contemporâneas. Ao lado dos esforços científicos, trata-se de investir em modos outros de se relacionar com o mundo, atentos às suas características moventes, transitórias e sem garantias. Dentre estes modos, podemos evocar a figura dos nômades como alternativa possível para pensar a multiplicidade.

Ao projetar-se como um duplo sobre o vazio, a mente humana evoca a interioridade, o voltar-se para si como via de leitura do mundo, elegendo a unidade da forma. No entanto, tal qual o relevo do deserto, toda forma é moldada pelo movimento das singularidades não-localizáveis que a constituem. Sempre exteriores a si mesmas, as forças corroem as formas tanto quanto as delimitam, fazendo com que o pensamento acesse sua exterioridade e afirme sua insubordinação às próprias formas que buscam contê-lo em alguma imagem, em alguma representação. São as forças que insistem nas formas e as molda, tal como os grãos de areia modificam, com o vento, a distribuição sempre renovada da paisagem desértica. De acordo com Deleuze e Guattari,

O deserto de areia não comporta apenas oásis, que são como pontos fixos, mas vegetações rizomáticas, temporárias e móveis em função de chuvas locais, e que determinam mudanças de orientação dos percursos. É nos mesmos termos que se descreve o deserto de areia e o de gelo: neles, nenhuma linha separa a terra e o céu; não há distância intermediária, perspectiva, nem contorno, a visibilidade é restrita; e, no entanto, há uma topologia extraordinariamente fina, que não repousa sobre pontos ou objetos, mas sobre hecceidades, sobre conjuntos de correlações (ventos, ondulações da neve ou da areia, canto da areia ou estalidos do gelo, qualidades tácteis de ambos); é um espaço táctil, ou antes “háptico”, e um espaço sonoro, muito mais do que visual […]

(DELEUZE;GUATTARI, 1997a, p. 53-54)

As tribos nômades possuem a invejável habilidade de direcionar sua atenção a estas linhas de variação do ambiente, às mudanças e aos deslocamentos impostos pelo deserto, em oposição ao Estado e sua forma, em detrimento da organização do mundo a partir de nacionalidades e fronteiras. O nômade estabelece uma relação com a terra caracterizada pela desterritorialização incessante, sempre em busca de novos arranjos e alternâncias: “é a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade aí encontra um território. A terra deixa de ser terra, e tende a tornar-se simples solo ou suporte.” (Ibid., 1997a, p. 53). Evitando as ilusões do duplo, e atentos à rede de relações do real – sempre exteriores aos seus termos, independentes dos seus pontos de origem ou destino, de uma oposição entre um Sujeito e um Objeto –, a aposta nômade na multiplicidade se define pela perseguição da linha que acompanha as forças, em detrimento das formas, sempre secundárias, instáveis.

Todos nós – nômades – perseguiríamos ainda uma clandestinidade mais radical, “o imperceptível como destino do eu” (BUYDENS, 2005, p. 65), onde a adaptação e a habitação aparecem como tarefas infinitas, acompanhando as redes intensas que movimentam o real:

o eu é apenas um limiar, uma porta, um devir entre duas multiplicidades. Cada multiplicidade é definida por uma borda funcionando como Anômalo; mas há uma enfiada de bordas, uma linha contínua de bordas (fibra), de acordo com a qual a multiplicidade muda. E a cada limiar ou porta, um novo pacto? Uma fibra vai de um homem a um animal, de um homem ou de um animal a moléculas, de moléculas a partículas, até o imperceptível. Toda fibra é fibra de Universo.

(DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 33).

Neste sentido, enquanto modos distintos de se relacionar com a terra e reverberar suas questões, as fotografias e pinturas de Diane Burko evocam a antecipação de um tempo em que o deserto se confunde com o mundo. Os registros científicos, deslocados para o registro artístico, afirmariam a irredutibilidade da terra aos discursos unificadores, aceitando como solo comum do futuro o espaço aberto da criação. “Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno.” (NIETZSCHE, 2001, § 107, p. 132).


 

Referências

BURKO, D. Back to observing Ilulissat Fjord [blog], Friday August 8. Disponível em: <http://www.dianeburko.com/polarinvestigations/?p=395>. Acesso em: 11 nov. 2014.
 
______. Over Ilulissat 1. (imagem). 2014. Disponível em: <http://www.dianeburkophotography.com/polar-investigations-arctic-ilulissat-gr#/id/i8467701>, Acesso em: 11 nov. 2014.
 
______. Columbia Triptych II. (imagem). 2010. Disponível em: <http://www.dianeburko.com/work/paintings/current_work/politics_snow/columbia_triptych_a.html>. Acesso em: 11 nov. 2014.
 
BUYDENS, M. Sahara: l’esthetique de Gilles Deleuze. Paris: J. Vrin, 1990.
 
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 4. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997b.
 
______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 5. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997a.
 
______. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004.
 
HARAWAY, D. J. Modest_Witness@Second_Millenium. FemaleMan©_Meets_OncoMouse™. Feminism and technoscience. London: Routdledge, 1997.
 
KELLER, E. F. Reflections on gender and science. New Haven: Yale University Press, 1995.
 
KELLER, E. F.; LONGINO, H. E. (ed.). Feminism and science. New York: Oxford University Press, 1996.
 
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. Paulo. César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
 
______. A genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
 
PESSOA, F. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1951.
 
ROSSET, C. Fantasmagories. Paris: Minuit, 2006.
 
______. O real e seu duplo. Trad. José Thomaz Brum. São Paulo: L&PM, 1988.

 
[1] Produtor cultural, Casa da Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor-tutor da Escola de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Coordenação de Educação à Distância (Unirio/Cead). Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Email: gcidgarcia@gmail.com
[2] De acordo com a síntese aprovada do 5º Relatório de Avaliação do IPCC, 2014. Disponível em: <http://www.ipcc.ch/pdf/assessment-report/ar5/syr/SYR_AR5_SPM.pdf>.
[3] A fotografia, no lugar de pressupor uma visão autônoma, separada do tempo e do espaço – características de certas expressões do modernismo nas artes visuais – assume sua propriedade trágica de pertencimento ao instante, reenviando ao presente dos observadores uma imagem que os conecta ao mundo, como instantâneos do real partilhados pelo olhar.
[4] Cf. KELLER, 1995 e HARAWAY, 1997.
[5] Para Clément Rosset, a figura do duplo se encontra tanto na gênese das narrativas literárias oraculares como na gênese da própria metafísica e da compreensão psicológica da consciência. Seu aparecimento e desenvolvimento, em todas as instâncias, define-se para o homem como uma função de proteção diante dos elementos caóticos do real. Para o aprofundamento deste tema, ver Rosset, 1988.
[6] Tal componente estabelece ressonâncias com o próprio esforço científico em busca da neutralidade e da objetividade, conferindo à visão sua independência e distanciamento do objeto observado.

A expressividade do deserto: ressonâncias estéticas 


Gabriel Cid de Garcia[1]


Resumo: A paisagem do deserto sempre forneceu aos artistas e aos filósofos inúmeros momentos de inspiração. Se o deserto pode ser definido pela ausência de uma habitação, pelo vazio de vida, a presença humana no planeta aparece sob a forma do disfarce: disfarce do deserto, distanciamento vertical do solo que nos aproxima da natureza. A superação dos obstáculos naturais por meio da técnica, ao escavar modelos de habitação do planeta, teve um papel importante na elaboração deste disfarce do solo, propiciando aos humanos a ilusão de sua separação e isolamento do ambiente. O pensamento, longe de ser um ato natural, ou isolado em algum recôndito mental, não atua pela duplicação do mundo em imagem, pela representação, mas somente se exerce quando é impelido, quando é forçado, por algo, ao movimento. No limite, este algo pode ser associado ao mundo, à Terra. A partir do diálogo com a fotografia e a pintura de Diane Burko, evocaremos aqui alguns apontamentos filosóficos que aproximam a condição desértica do pensamento, ao mesmo tempo em que se extrai de sua imagem um operador conceitual capaz de reverberar ressonâncias estéticas.

Palavras-chave: Estética. Deserto. Gilles Deleuze. Objetividade. Multiplicidade.


Abstract: The desert landscape has always provided artists and philosophers with countless moments of inspiration. If the desert can be defined by the absence of a dwelling, the emptiness of life, the human presence on the planet shows in disguise: desert disguise, a vertical distance that brings us away from the ground and from nature. The act of overcoming natural obstacles through technology, while excavating the planet for dwelling models, has played an important role in the development of this ground cover, giving humans the illusion of their separation and isolation from the environment. Thinking, in this sense, far from being a natural or isolated act in some mental recesses, does not act by duplicating the world in an image, through representation, but only when it is driven, when forced by something. Ultimately, this something can be associated with the world, the Earth. Through the dialogue with photographer and painter Diane Burko, this article evokes philosophical notes approaching desertic condition and thought, extracting from its image a conceptual operator able to reverberate aesthetic resonances.

Keywords: Aesthetics. Desert. Gilles Deleuze. Objectivity. Multiplicity.