Sementeia: multi-mídia, educação e resistências em uma plataforma virtual
Semeando
Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, ainda que bígrafos.
Manuel de Barros
A concepção deste projeto nasceu a partir de uma disciplina de pós-graduação (AP545 Meio Ambiente e Questão Agrária e Multimeios) oferecida pelo Laboratório TerraMãe[5] da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na qual tivemos a participação do diretor, documentarista e professor, Dr. José Roberto Pereira Novaes. Parte das reflexões feitas naquele momento instigaram alguns integrantes deste grupo a se organizar e solicitar recursos, por meio de um edital da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Unicamp, com o intuito de criar uma plataforma virtual para centralizar e disponibilizar produções audiovisuais, assim como outros materiais que ficam à margem da produção acadêmica como a fotografia, a música, as artes em geral, e, ainda, complementar as informações e discussões pertinentes a cada um deles. O projeto foi aprovado, possibilitando a concepção e o desenvolvimento da Plataforma multimídia Sementeia. Conforme o texto de apresentação elaborado para o site:
Sementeia é uma plataforma digital multimídia que tem por objetivo produzir sementes e semear. As sementes são conteúdos desenvolvidos numa concepção de livre produção e circulação de materiais audiovisuais, textos, vozes, sons e imagens. Sua concepção busca privilegiar uma linguagem multimídia e a produção colaborativa entre nossos parceiros sobre grandes temas relacionados a propostas para mudança e ações de resistência no campo e na cidade. Alguns assuntos, que farão parte de nossas primeiras semeaduras, estão relacionados a questões como: trabalho rural, movimentos camponeses, agroecologia, economia solidária, comunicação popular e mídia-livre.[6]
O nome Sementeia remete ao desejo de que as sementes, as Unidades de Conteúdo compartilhadas, possam fomentar e instigar os que tiverem contato com uma conexão crítica com os temas apresentados. E, ainda, que o espaço, em sua trama e teia, possibilite trocas e construções coletivas.
Concebemos, como núcleo da Plataforma, as Unidades de Conteúdo como espaço onde cada material, seja vídeo, seja foto, sons, ou qualquer outro meio, poderá ser postado, prevendo-se sempre incrementar sua apresentação com textos, entrevistas, materiais complementares, que contextualizem, aprofundem e forneçam subsídios para os que desejam fazer algum tipo de uso pedagógico ou político. As Unidades de Conteúdo serão assim sementes da luta, da resistência, que, em teia (ou rede), possibilitam outras configurações, quem sabe transformações.
Na plataforma, os parceiros participarão com a produção e postagem de conteúdos e como coletivos parceiros que poderão ser acessados na seção Movimentos de resistência. Cada um dos parceiros terá, na Plataforma, um espaço para inserir textos de apresentação, links e outros materiais que considerem interessantes. Os parceiros poderão ainda postar informes sobre eventos e encontros que julgarem importantes.
A proposta da equipe é que a plataforma ganhe autonomia, tendo os parceiros como alimentadores/cultivadores. Os pesquisadores do Laboratório TerraMãe pretendem dar continuidade à manutenção e divulgação do espaço, especialmente fomentando movimentos sociais, grupos comunitários e acadêmicos a produzirem materiais para serem postados e orientando os parceiros sobre como se dá o uso da plataforma.
Fizemos aproximação com outros grupos cujas experiências são similares àquela que propúnhamos: a Rede Mocambos, que em parceria com o Governo Federal instalou pontos de internet e computadores em diversos quilombos, e ainda capacitou inúmeros atores desses espaços para operação de hardware e software, na expectativa de que ganhassem autonomia na produção de conteúdos para a Rede[7]; o grupo Ninjão Zinclair, que atua em movimentos sociais urbanos preparando vídeos e outros meios para socializar as lutas e os temas de interesses dos movimentos, um dos desafios compartilhados é o de que estes grupos ganhem autonomia no processo de expressão e divulgação[8]; o grupo Saravá, que cria e hospeda sites para movimentos sociais; o Núcleo Audiovisual Maria Lacerda de Moura, criado no ano de 2013, que realiza cinema popular itinerante, exibindo filmes e documentários em diversos espaços sócio-geográficos, desde espaços autônomos, associação de moradores, okupas anarcopunks, ocupações de sem-teto, até bares, praças, sempre com a idéia de descentralizar ao máximo nossas ações. Estes contatos favoreceram vislumbrar alternativas de formato de interação do espaço virtual e como estabelecer as relações entre parceiros.
Na concepção do projeto, previmos uma parceria com o Assentamento Milton Santos, para a qual, inicialmente, iríamos apenas dar apoio a uma rádio comunitária que estava sendo organizada. No entanto, no decorrer do processo, o grupo se tornou um parceiro na concepção da plataforma, fortalecido pela presença de uma assentada, Luciana Henrique da Silva, e de um colega, Marcelo Pupo, que está desenvolvendo atividades no assentamento, integrando a equipe do curso de especialização do Pronera (Educação do campo e agroecologia na agricultura familiar e camponesa – Residência Agrária, Feagri/Unicamp). Nesse processo, percebemos que a instalação de uma antena para captação de sinal de internet seria importante para garantir o acesso à plataforma. A proposição desta instalação foi bastante mobilizadora entre os assentados.
Atualmente, a comunidade está mobilizada no mapeamento das famílias que têm interesse em participar do rateio dos custos para acesso ao sinal. No processo de esclarecimento sobre a alternativa tecnológica para viabilizar a internet no assentamento, está sendo feito um esforço para retomar a importância da comunicação e da produção de conteúdos a partir da realidade produtiva dos lotes e da vida cotidiana no local.
Procuramos, dessa forma, desnaturalizar nossa postura passiva diante dos meios de comunicação que, historicamente, não são arquitetados dialogicamente e nem respondem às demandas existenciais dos grupos populares. Ainda que a inclusão nas redes sociais permita relações interativas com os conteúdos presentes na web, essa interação é nitidamente direcionada e marcada pelas vozes dominantes dos interesses mercantis, o que anestesia outras posturas na comunidade conectada e evita que processos pedagógicos se desenvolvam e proporcionem uma participação mais ativa nos processos sociopolíticos da vida fora da internet.
Essa intenção motiva questões estruturais e conceituais a respeito dessa plataforma. Junto com os atores sociais e as entidades ligadas direta ou indiretamente aos proponentes deste projeto, buscamos conceber essa plataforma da maneira mais participativa possível, reconhecendo os limites existentes, mas angariando esforços para gerar atuação em vertentes como ciência e cultura, educação do campo e políticas públicas para a transição agroecológica, agregando informações de interesse à saúde pública e defesa do trabalhador rural. Nesta direção, a Plataforma Sementeia possui alguns objetivos que vão ao encontro e para além do desejo de configuração de um portal e uma rede virtual de colaboração:
- Consolidar as parcerias já existentes entre universidade/comunidade/movimentos sociais entrando em contato com representantes e agentes culturais e ampliando o contato com parceiros já existentes;
- Desenvolver um portal de recebimento e transmissão do conteúdo, áudios e imagens, utilizando software livre, que atenda às necessidades do projeto, buscando criação de novos recursos e possibilidades para compartilhamento de conteúdos e interação com os atores das comunidades e outros;
- Selecionar materiais disponíveis, bem como sistematizá-los de acordo com objetivos pedagógicos e temas de interesse dos movimentos sociais e comunidades dando visibilidade àqueles produzidos no âmbito da Rede de Agroecologia da Unicamp, do Laboratório TerraMãe e demais parceiros;
- Dar suporte ao grupo dos jovens e interessados do Assentamento Milton Santos na manutenção da rádio digital e em outras ações culturais visando a produção de conteúdos para a plataforma;
- Promover ações para divulgação da plataforma e ampliação de parcerias entre movimentos sociais populares.
Histórico e apresentação do Assentamento Milton Santos
As famílias do Assentamento Milton Santos não participaram como meras coadjuvantes: fizeram e escreveram a sua própria versão dos fatos.
O Projeto de Desenvolvimento Sustentável Milton Santos foi criado em 2006, após uma série de ocupações realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A área havia sido ocupada pela primeira vez em 2002, com o objetivo de denunciar o arrendamento irregular de terras públicas para a Usina Ester S.A. Em 2005, a área foi destinada para a Reforma Agrária, tendo sido reconhecida em primeira instância como pública.
O histórico da área remete ao período da ditadura militar, precisamente ao Decreto de Desapropriação nº 77.666, de 24 de maio de 1976, que desapropriou, além do Sítio Boa Vista, onde se encontra hoje o projeto de assentamento, mais três áreas: Sítio Saltinho, Arranchamento do Zezé e o Sítio Jacutinga de propriedade da Fábrica de Tecidos Carioba da conhecida Família Abdala[9], pelo não pagamento de impostos. O Sítio Boa Vista coube ao Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e foi repassado, posteriormente, ao Instituto Nacional de Segurança Social (INSS), que em 2005 repassou a área ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O Incra entrou com ação de reintegração de posse contra a Usina e ganhou em primeira instância; entretanto, o processo continuou na justiça e, em 2012, as famílias receberam uma liminar de reintegração de posse.
Desde que tomaram conhecimento da decisão judicial, no final de julho de 2012, as famílias assentadas realizaram uma série de atividades: reuniões de negociação, articulação e mobilização de aliados e parceiros do assentamento, ocupações de prédios públicos etc. Contudo, não conseguiam dar visibilidade às ações que desenvolviam. A partir de então, alguns apoiadores, juntamente com alguns assentados e militantes mais experientes, discutiram a necessidade de ampliar a divulgação que, até então, vinha sendo realizada por e-mail. Parte do grupo já tinha experiência na produção de conteúdos, pois havia participado da confecção de jornais e boletins que circulavam regionalmente, principalmente entre os próprios assentados e apoiadores. Entretanto, era preciso alcançar um público maior. Deste modo, ficou decidido: a) criar uma conta no Facebook e b) um blog que agregasse todas as informações sobre o processo de luta e resistência do assentamento. Assim, ampliou-se também o número de pessoas que passaram a discutir a questão da comunicação, tanto interna (construção de murais, boletins, etc.) quanto externa (blog, e-mail, Facebook, confecção de vídeos, comunicados a imprensa etc.).
Inicialmente, o objetivo era quebrar o bloqueio da mídia convencional e produzir alguns veículos alternativos para dar visibilidade à luta do assentamento, pois até aquele momento apenas o Coletivo de Comunicação Passa Palavra[10] divulgava a situação das famílias assentadas – inclusive, a experiência desse coletivo e a sua colaboração para a organização do Coletivo de Comunicação do Assentamento Milton Santos foi decisiva. Passou-se de uma concepção restrita da comunicação que consistia no mero registro e repasse de informações para uma compreensão da importância da produção de conteúdos. A experiência de construção deste coletivo foi muito rica, não só para os seus integrantes, mas para todos os assentados, visto que eles se reconheceram como protagonistas do processo.
Por outro lado, a organização destes veículos de comunicação ampliou a capacidade de organização das atividades realizadas pelos assentados, uma vez que as informações eram transmitidas imediatamente e desse modo podia-se mobilizar rapidamente apoiadores e aliados atentos à situação do Assentamento. Evidentemente o processo de comunicação não substituiu as outras estratégias de organização, de luta e de resistência. As famílias organizaram suas próprias estratégias de ação: reuniões de negociação para pressionar o executivo, reuniões com aliados e apoiadores para definir conjuntamente as estratégias de ação, ocupação de prédios públicos, entre outras, e participavam também das ações organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: marchas e passeatas, ocupações de rodovias, dando apoio ao acampamento instalado pelo movimento no próprio assentamento. Não participaram como meros coadjuvantes: fizeram e escreveram a sua própria versão dos fatos. Após muita luta, conseguiu-se uma vitória parcial: a suspensão da reintegração de posse. Passado esse momento mais emergente de luta, o coletivo de comunicação precisou se reestruturar, já que parte dos apoiadores teve que realizar outras atividades. A juventude do assentamento que integrou o Coletivo de Comunicação passou a ter um papel mais ativo na luta e a perceber a importância da comunicação, o que possibilitou a organização de uma rádio livre.
A partir dessa experiência e do contato com os integrantes do projeto Sementeia, surgiu a possibilidade de participação desse grupo, anteriormente mobilizado pela questão da comunicação, como parceiro na construção da plataforma. Ao buscar concretizar essa parceria, surge também uma nova necessidade: a de promover ações para fortalecimento e reestruturação do Coletivo de Comunicação do Assentamento Milton Santos, a fim de garantir os meios materiais e técnicos para que os assentados continuem a escrever e a divulgar os conteúdos produzidos por eles mesmos.
Pedagogias culturais na reformulação político-subjetiva
Em primeiro lugar, uma revolução é uma ruptura na ordem do que é visível, pensável, realizável, o universo do possível. […] Criam-se cenas inéditas, aparecem pessoas que não eram visíveis, pessoas na rua, nas barricadas. As instituições perdem a legitimidade, aparecem novos modos de palavra, novos meios de fazer circular a informação, novas formas da economia, e assim por diante. É uma ruptura do universo sensível que cria uma miríade de possibilidades.
Jacques Ranciére
José Eli da Veiga (2003), em seu livro Cidades imaginárias, coloca que “o Brasil é menos urbano do que se calcula”, como diz o subtítulo, e questiona os parâmetros oficiais que mensuram a distribuição da população brasileira entre o campo e a cidade. O título do livro traz duas significações: uma de ordem subjetiva, em que se verifica o imaginário rural eclipsado pelo urbano, e outro de ordem político-econômica, que faz pensar o modelo de desenvolvimento que direciona as políticas públicas e as reproduções culturais. De todo modo, traz para o debate este espaço nulificado resultante do encontro entre a urbis e o ruris, este “rururbano” unilateralmente destituído de visibilidade política e cultural.
Perguntamo-nos, então: Esse “entre” que hibridiza o urbano e estica seu horizonte deve ser re-conceitualizado? Devemos abrir a ele espaço político e estético para localização dos sentidos culturais hoje marginalizados – ainda que potentes – e desestabilizar o torpor que envolve o consentimento em torno da noção de cidade? A resposta afirmativa a essas perguntas está representada pelo esforço de ensino, pesquisa e extensão no qual se situa o desenvolvimento da plataforma virtual aqui relatada.
O processo histórico testemunhado pela Era Moderna parece reunir símbolos e significações que moldam inteligibilidades que estruturam a dicotomia entre cidade e campo em detrimento deste; um enovelamento de percepções que despreza a interdependência dessa relação. A “ficcionalidade” própria da Era Moderna, parafraseando Jacques Rancière (2005, p. 55), “se desdobra entre a potência de significação inerente às coisas mudas e a potencialização dos discursos e dos níveis de significação”. Uma questão vai se delineando: como pensar dispositivos imagéticos, pedagogias culturais na reformulação político-subjetiva que compreende e apreende outra relação campo-cidade?
Um caminho pensado por nós é constituir um ciclo de pensamento político, um outro universo de ideias que dê forma a este ciclo, uma mudança dos “significados, categorias, conceitos e discursos através dos quais a realidade adquire sentido e pode ser nomeada” (Silva, 1996, p. 167). “A transformação do campo semântico”, como pontua Tomaz Tadeu da Silva (Ibidem), é parte integral dessa mudança. Os sentidos e conceitos, “ao constranger e limitar a esfera do possível, ao permitir ou impedir que certas coisas sejam pensadas, são parte central de qualquer projeto político de transformação social” (ibidem).
Dessa forma, podemos assumir que o tema da questão agrária pode ser ricamente trabalhado quando a ação se pauta em sua dimensão cultural, no exercício colaborativo de gerar aproximações entre retóricas, políticas e epistemes. As atividades sociais relacionadas com a produção agropecuária requerem uma abordagem própria, já que suas implicações políticas compreendem um universo amplo de significados e práticas, e, por isso, podem subsidiar a produção de conhecimentos e materiais que tenham interesse para a divulgação de ciência e para a educação do campo.
Podemos aceitar, então, a conceituação de cultura, no tema de nosso interesse, na relação entre significados e sentidos partilhados pela sociedade para tensionar identidades e valores no entrelaçamento do mundo rural com o ideário moderno, sentidos camponeses e crise contemporânea (de raiz socioambiental). Neste cenário metodológico, é possível lidar com a diversidade das expressões agriculturais que encontramos em Campinas, em sua região e no próprio Estado de São Paulo.
Vemos que essas diferentes expressões agriculturais – camponesa, capitalista, familiar, patronal, ribeirinha, empresarial, indígena – e os processos a elas inerentes, donde derivam determinantes ambientais (relação com o solo, grau de poluição e contaminação, preservação da biosfera local, uso de água e rios), determinantes sociopolíticos (políticas públicas e investimentos necessários, fontes de recursos, grau de interlocução e inter-relação entre os atores sociais envolvidos, estratégia produtiva e objetivo da produção) e os determinantes de subjetivação (valor cultural associado, imaginário atuante, vinculação religiosa e espiritual, formação de identidades e viabilidade de existências), nos mostram mundos distintos e repletos de antagonismos, mas que disputam o mesmo solo para produzir.
Esses “mundos” distintos e seus projetos (declarados ou não) de sociedade parecem congregar os elementos contrastantes e as contradições básicas que também são encontradas na raiz da crise contemporânea na qual estamos inseridos.
A Agroecologia anima este cenário, desde seus princípios conceituais, problematizando a produção de conhecimento acadêmico ao reposicionar os atores envolvidos na relação dialética da localidade com a globalidade referente aos agroecossistemas e à inscrição cultural das iniciativas socioprodutivas a serem trabalhadas.
A legitimação pública crescente das práticas e tecnologias desenvolvidas pelos movimentos populares na atividade agrícola tem implicado sério constrangimento ao conhecimento institucionalizado, às postulações da ideologia do agronegócio e ao conjunto de símbolos e códigos que, disseminados pela comunicação de massas, traduzem o discurso único e a “monoculturalização” industrialista-consumista. Há, portanto, um campo de debate que se abre em torno da produção de conhecimento e sua legitimação, representado pela cultura científica e/ou popular e os espaços comunicativos que dão visibilidade (ou não) a estes espaços produtores de informação.
No geral, nota-se uma clara imperceptibilidade social dos valores populares, pois estes são produzidos como ausência pelas representações dominantes. Mas quando atentamos para a sociedade civil organizada, percebemos que o espectro do que é “real” se amplia, encontrando sérios fatores limitantes para a agricultura industrial, assim como maior diversidade e possibilidade de modos de vida alternativos que solucionam problemas socioambientais.
O projeto em curso para o desenvolvimento da plataforma Sementeia pretende, então, contribuir com a intenção de transformar estas ausências em presença, valorizando a experiência social representada pelos trabalhadores rurais e suas organizações e pelos povos do campo.
Inventar história, propor outras racionalidades, compartilhar o comum e o singular das comunidades do campo, rearranjar o inconsciente coletivo…, seria esse o campo de uma educação imagética do campo? Poderia o material audiovisual engajar afeições e deserções que retalhem o corpo das representações culturais que nos dominam, em particular daquelas envolvidas na produção de alimentos, no rururbano, na ecologia e na ocupação de terras, na terra? É certo que estes símbolos massificados pelas estruturas dominantes precisam ser mutilados para que outros sentidos, múltiplos, surjam. Em que medida a criação de linguagens audiovisuais responde às demandas do que se constrói em Agroecologia, em comunicação popular, em organização social, em novas pedagogias?
Vai formando-se aqui um desenho-base no qual podemos interferir e propor criações. O interesse da plataforma faz-se na multiplicidade das vivências agriculturais que se apresentam nos campos e que, conceitualmente, são constitutivas de unidades de análise acadêmica: os agroecossistemas de base agroecológica. Por sua vez, estas práticas respondem à multiplicidade composta na realidade envolvente, em seus diversos cortes de análises, estudos e percepções – ambiente, sociedade, economia, cultura, religião… Daqui podemos concluir sobre a indefinição pragmática, em seu caráter positivista e a despeito de seus princípios generalizantes, do que vem a ser Agroecologia, ela mesma aberta à miríade destas vivências agriculturais. Ainda que disciplinarmente circunscrita ao pensamento sistêmico, pedimos licença (poética) aos cânones da matéria para romper hierarquias analíticas no intuito de confeccionar instrumentos de comunicação, fazer experimentos com a linguagem textual, imagética e sonora.
O interesse que está se forjando é um desígnio, uma disposição de inventar o mundo diante da hostilidade que experimentam os povos do campo; em desdobrar a força neles contida em relações com a materialidade de seus registros; em circunstanciar a maneira própria de ser o mundo pela potência de continuidade, pela potência de ruptura.
Se a comunicação pode ser entendida como a partilha do comum, podemos retomar esse pensamento de partilha – que é, ao mesmo tempo, o que une e o que separa – em partições políticas do dar a ver e do dar a entender em educação (do) sensível. Militar no espaço vazio da uniformidade de cena para fazer corresponder as forças que movimentam outros regimes e inteligibilidades. Na vasta paisagem em aberto, preencher de ruralidades os espaços vazios, a multiplicidade dos existires no contínuo rururbano.
Uma mutação autogerida; “desinventar” a forma civilizatória para fazer acontecer uma suficiência campesina, indígena, ribeirinha, citadina; desacelerar o crescimento e acelerar a transferência de riquezas, circulação livre de diferenças, em espaços produtores e reprodutores de sentidos para autossuficiência e autodeterminação, para uma vida que seja boa o bastante (Viveiros de Castro, 2008).
Para os Estudos Culturais, os meios de comunicação de massa são igualmente agentes da reprodução social – criam também sentidos e significados, e, ao fazê-los, produzem cultura, constituem fatos (Escosteguy, 1998). Quais hipóteses nós podemos propor quando a circulação de significados nestes meios está restrita, tal qual um imenso gargalo, a um oligopólio de opiniões? Estratégias teriam de ser debatidas e moldadas no intuito de fazer proliferar outro fluxo de representações culturais.
Certamente, a tarefa não parece simples ao imaginarmos o que seria uma difusão mais democrática das expressões discursivas relevantes que existem na sociedade; o que sabemos, no entanto, é que a atual concentração na difusão de significados tem gerado uma falsa sensação de homogeneidade cultural – dia a dia acessamos os mesmos discursos, desperdiçam-se continuamente forças criativas, dissemina-se o terror consumista e o medo do outro.
Inevitável é ouvir as vozes do poderio vigente neste movimento, que suprime vidas na tentativa de extinguir ideias, sem amargar um gosto de negação do que somos. Em Sociedades Camponesas, Eric Wolf (1970) argumenta que, quando inovações tecnológicas são socialmente incorporadas, cria-se a existência de uma “solicitação cultural”, pois elas passam a significar mais do que simples meios de obtenção de algo: transformam-se num comprometimento diante do qual o ser humano deverá desdobrar-se para obter.
Mas aqui emerge o esboço de um dilema, que só pode ser desfeito pelo diálogo entre cultura e poder. Não é factível que os movimentos do campo possam receber o rótulo de “antitecnológicos”, no que se refere às atuais tecnologias do agronegócio (como, por exemplo, as sementes transgênicas), mas parece certo que enfrentem algumas solicitações culturais da modernidade, a saber, aquelas que são instrumento de dominação e exclusão do capital. Tratar a tecnologia e a comunicação (produção de conhecimento que as concebe) como se fosse produto desprovido de intencionalidades, politicamente neutro, seria um equívoco. Muitas das solicitações culturais da modernidade podem ser categorizadas de “fetiches” tecnológicos, que portam consigo fortes indícios de um projeto de sociedade. Nas palavras de Wolf sobre a cultura, fazem parte de “uma série de processos que respondem a determinantes identificáveis”.
Uma relação necessária que devemos fazer, então, é pensar os tensionamentos que hoje permeiam os meios de comunicação e as redes sociais que se estabelecem como espaços de produção de sentidos políticos e culturais. Até que ponto as “solicitações culturais” impostas pelo Facebook, por exemplo, devem ser questionadas ou apropriadas pelos movimentos sociais do campo no intuito de disseminar sua perspectiva de vida, visão de mundo? O desenvolvimento da plataforma Sementeia pode ser um instrumento que traga contribuições para esse debate. A produção de conteúdos com as comunidades de assentamentos rurais, quilombolas, entre outras, pode se aproveitar do lócus comercial representado pelas grandes redes sociais? Ou a concepção política desses conteúdos comunicativos exige outros espaços para circularem, de maneira que seu papel educativo seja efetivado?
Se hoje o agronegócio predomina na política governamental e no imaginário da sociedade como setor que alavanca a economia brasileira, temos um cenário em que os povos do campo e os grupos tradicionais devem se esforçar para, pelo menos, garantir sua autodeterminação. Sem esquecer, contudo, que, no presente, florestas e moradores das florestas são igualmente ameaçados pela proposta de mecanismos legais de facilitação de grandes empreendimentos pouco preocupados com seu futuro, o que torna o atual momento de expansão agrícola e industrial brasileiro preocupante para as populações rurais.
Todavia, a história é mestra em nos pregar peças. As populações tradicionais e as assentadas realizam formas insuspeitas de comunicação virtual, fazem parte de redes translocais, têm muitas experiências a mostrar, e não só no Brasil. Nenhuma dessas experiências trará maiores divisas ao País do que a exportação de toneladas de soja para a China. Mas não é disso que se trata. Trata-se de manter os biomas de pé produzindo diversidade social e biológica. Trata-se de aceitar a multiplicidade, não em sua visão vulgarizada, aquela de um produto cultural com diversos sabores, mas a multiplicidade como a diversidade de possibilidades. Um discurso paradoxalmente fora de moda, em uma economia global que se depara com becos sem saída.
A semear
E chegou o dia que o risco de continuar espremido dentro do botão era mais doloroso que o de desabrochar.
Anais Nin
Almeja-se com este processo levar os envolvidos a atingir um nível de conexão com a realidade em que vivem na busca de transformação, na construção coletiva do conhecimento. Nesse sentido, todos são sujeitos de uma mesma ação, e trabalha-se a concepção da unidade de conteúdo de forma participativa e contextualizada, por meio de grupos nos quais prevalece o diálogo, partindo, principalmente, do conhecimento e da realidade dos participantes envolvidos, com dinâmicas e trabalhos em grupos. Portanto, criam-se as condições para o desenvolvimento de uma atitude de reflexão crítica, comprometida com a ação e a transformação.
Gerar processos de autoformação, assumindo a realização, avaliação e retroalimentação da plataforma, transforma os estudantes, assentados, acampados e movimentos sociais envolvidos em agentes dinamizadores das comunidades envolvidas, assim como em multiplicadores no futuro.
Referências
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ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. Uma introdução aos Estudos Culturais. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 1, n. 9, p. 87-97, dez. 1998.
______. Educação como prática da liberdade. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Uma boa política é aquela que multiplica os possíveis. [2007]. Entrevista concedida a Renato Sztutman e Stelio Marras. In: SZTUTMAN, Renato (org). Encontros: Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 228-259.
WOLF, Eric. Sociedades Camponesas. Trad. Oswaldo Caldeira C. da Silva. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
[1] Artigo apresentado no GT “Cultura e comunicação no mundo rural” do encontro da Rede de Estudos Rurais realizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em setembro de 2014.
[2] Pós-doutoranda em Ciência Política no Departamento de Ciência Política da Unicamp, assentada no PDS Comuna da Terra Milton Santos. E-mail: lucianahen@ig.com.br
[3] Doutora em Multimeios, pesquisadora no Laboratório TerraMãe da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp, E-mail: kellen@fegri.unicamp.br
[4] Doutora em Política Científica e Tecnológica e pesquisadora do Grupo de Análise de Política de Inocação (Gapi/Unicamp) e da Rede de Agroecologia, E-mail: marcia.tait@gmail.com
[5] O Laboratório TerraMãe é um centro interinstitucional vinculado à Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri), ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) e ao Instituto de Artes (IA). Criado com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o Laboratório visa promover a produção audiovisual favorecendo o compartilhamento das experiências que estão acontecendo no meio acadêmico e nos movimentos sociais sobre as questões socioambientais, dando atenção especialmente às linguagens a serem pesquisadas e elaboradas, e tendo como foco de atenção e reflexão uma construção a partir da dialogicidade entre o universo acadêmico e as múltiplas realidades.
[6] Disponível em: <http://sementeia.org/sementeia/>.
[7] Disponível em: <http://mapa.mocambos.net>.
[8] Disponível em: <http://us.twitcasting.tv/ninjaozinclar2>.
[9] O blog Proprietários do Brasil fez uma importante pesquisa sobre a Família Abdalla ver em: http://proprietariosdobrasil.org.br/a-quem-interessa-a-remocao-do-assentamento-milton-santos.
[10] As matérias redigidas pelo coletivo do Passa Palavra estão disponíveis em: http://passapalavra.info/2013/01/70939.
Sementeia: Multi-mídia, Educação e Resistências em uma plataforma virtual ¹
Luciana Henrique da Silva[2].
Kellen Maria Junqueira[3].
Márcia Maria Tait Lima[4].
Resumo: O presente artigo relata o desenvolvimento do projeto Sementeia: Multi-mídia, Educação e Resistências em uma plataforma virtual. Visa compartilhar a experiência da concepção e construção da Plataforma multimídia Sementeia na qual serão disponibilizados materiais audiovisuais, sonoros, fotográficos e gráficos relacionados à educação, sensibilização e às ações nas áreas de assentamentos rurais e urbanos, entre trabalhadores rurais, movimentos sociais populares, produzidos por esses mesmos coletivos, pela universidade e, prioritariamente, em parceria entre universidade e coletivos populares. No processo de construção da Plataforma esteve presente uma concepção de comunicação e de linguagem como processos dialógicos, sendo a atuação em rede um componente fundamental para que a colaboração e a articulação ocorram de fato entre os diversos parceiros e configurem o “coletivo de coletivos” que constitui a Plataforma Sementeia. O artigo busca compartilhar a base de onde se partiu para semear a construção da plataforma.
Palavras-chaves: comunicação; movimentos sociais; rede
Abstract: The present paper reports the development of the project Sementeia: Multi-Media, Education and Resistance in a virtual platform. It seeks to share the experience of conceiving and designing the virtual platform Sementeia, in which audiovisual materials, audio recording, photographs and wordings related to education, political awareness and actions in rural settlements concerning land reform, urban struggles, rural workers, popular social movements and others are made available. All the graphic materials shown in Sementeia are produced by popular collectives, people in the University and primarily through a partnership between these two groups. In the process of the platform construction there has always been the idea of communication and language as dialogic processes, considering the network action a fundamental component to make collaboration and articulation take place effectively among partners and configure the “collective of collectives”, which constitutes the Sementeia Platform. In this paper we share Sementeia’s initial germ, from where we are seeding ideas to compose it.
Keywords: communication; social movements; network.