Cau Silva | 24/7

Título: 24/7


As derivas urbanas acontecem no decorrer de meus trajetos cotidianos e durante esse processo observo e busco um ponto de partida para a realização de trabalhos. É uma espécie de exercício social e antropológico, mas também de uma vivência concreta e experimental: a pulsão criativa emerge no encontro da materialidade de um corpo sensório com o espaço-tempo do ato de se deslocar. A partir desse encontro poético, lugares, objetos, situações e coexistências entre seres questionam a dureza material das coisas e evocam efemeridade, precariedade e resiliência. Muitas vezes, é preciso estar atenta para perceber as vicissitudes de um ambiente: no solo de uma metrópole como São Paulo é possível encontrar não só pedaços de asfalto, como formas de existência e sobrevivência das pessoas em situação de rua. Ao entrar em contato com o chão de um lugar e com o que dele emerge, vejo meu trabalho como se fosse uma dança com esses elementos, na qual nos alteramos e agimos uns com os outros mutuamente: nisso seu caráter instalativo e fotográfico.

Esse processo passa por refletir, escavar e sobrepor coisas que podem formar novos elementos, sujeitos e narrativas, no sentido de dar agência a matéria, de formar corpos outros. Refletindo sobre a simbologia do solo urbano, passei a me interessar pelo material papelão e pelo ato de dormir, relacionada com uma pesquisa mais geral a respeito do corpo e do fazer artístico. Ao lidar com caixas de papelão, objeto precário e banal, me deparei com sua complexidade. O fundo de uma caixa, formado por suas abas, quando aberto, evoca o não pertencimento, a não posse e o vazio. Esse vazio de seu interior, no entanto, ao mesmo tempo demanda ser preenchido e habitado. Além disso, passei a reconhecer as caixas de papelão como objetos transeuntes, sujeitos em constante deslocamento, como estando sempre de passagem. Levando em consideração a efemeridade desse material, o trabalho se deu na superfície da caixa como sendo a fronteira entre o dentro e o fora de um corpo, como uma pele e suas possíveis camadas.

Nesse jogo de agências, surpreendeu-me a caixa de papelão existir ao mesmo tempo como revestimento de um organismo por-vir, como a carcaça de um corpo que já foi e, ainda, como um suporte-casa-cobertor. Foi assim que o papelão se tornou um abrigo que
acolhia um estranho e valioso organismo: um pedaço de asfalto decomposto do solo. No interior dessa estrutura feita de restos de caixas de papelão, que contam sua narrativa de degradação, agora reside e se cultiva tal organismo de um mundo por-vir, que repousa em um travesseiro muito branco e macio. Uma luz laboratorial a envolve. Não se sabe ao certo se essa espécie de incubadora ciborgue o arrefece ou o aflige, mas o certo é que agora ele é parte de um ser híbrido, espécies companheiras, em infinita hibernação, no fim da qual não se sabe se renascerá ou perecerá.

 


FICHA TÉCNICA

Artista: Cau Silva

Ano: 2019

País: Brasil

Fotografia digital

 


 

Cau Silva (São Paulo, 1990) vive e trabalha em São Paulo/SP. Seus trabalhos investigam a presença e a materialidade do corpo humano e social no cotidiano. Através de instalações, vídeos e performances, sua produção explora as noções de vestígio, precariedade, utilidade, deslocamento e território. É graduada em Ciências Sociais pela UNESP e tem especialização em Artes Visuais pela UNICAMP.

E-mail: cautemoutroemail@gmail.com

Site: http://cargocollective.com/causilva

 

 

 

SILVA, Cau. 24/7. ClimaCom – Fabulações Miceliais[online]Campinasano. 6n. 14. Abr2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=10842


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SEÇÃO ARTE | FABULAÇÕES MICELIAIS | Ano 6, n. 14, 2019

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