O que mais a vida poderia ser?* | Fernanda Carla de Moraes Augusto, Flávia Liberman e Marina Guzzo


Fernanda Carla de Moraes Augusto[1]

Flávia Liberman[2]

Marina Guzzo [3]

“Uma vida define-se pelo fluxo vital que atravessa a experiência ilimitada. A conjunção entre o gesto menor e o viver-uma-vida é uma ecologia política que opera no nível do in-act e que pergunta a cada junção o que mais a vida poderia ser.” (MANNING, 2019, p. 15).

Meu primeiro encontro com a lagoa foi no horizonte. Era tanto azul, que se incorporava com o céu. Devir-céu, devir-lagoa. De longe, meus olhos fascinados desconfiavam da miragem, precisavam de toque, de imersão, de corpo. Lembrei dos acasos que me atravessaram e que me levaram até ali, das sutilezas que provocaram meu desvio de rota, de planos que já eram um tanto incertos. A poeira pairava lenta no ar, nas mesmas velocidades que acompanhavam aquele povoado. A Laguna de los Siete Colores em seu Pueblo Mágico.

Fui me aproximando e descobri que o lago não tinha margens, não tinha bordas, e isso não era nada poético. Era concreto. A concretude do capitalismo já roubava os ares, lançava seus tentáculos, seus consumismos, suas durezas e explorações turísticas. Indignante, mas não surpreendente. Com isso meus olhos já estavam calejados. A Laguna de infinitas cores estava sufocada em suas bordas, dividida em propriedades privadas, que cobravam para quem quisesse se aproximar. Experimentar tinha um preço. Alguém me disse que somente a quilômetros de distância talvez seria possível achar um pedaço de margem livre de grades ou construções. Lá onde talvez ainda não seria de interesse do capital.

Entre conversas, soube também que havia sim, ali no meio, no entre, um acesso público para o lago. Fui conhecer. Era nada mais nada menos do que o espaço de um píer. Uma plataforma de cerca de dois metros de largura, feita de madeira sobre a água, levava para essa área, de alguns metros quadrados, coberta, de onde era possível mergulhar. Com horário restrito de funcionamento. O sol que se pusesse logo, ou seria perdido seu espetáculo. A parte menos colorida para quem não pode pagar, para o povo menos colorido de cores capitalísticas. Capitalismo devorador de montanhas (KRENAK, 2020), de ouro, de diamante, de rios, de lagos, de cores, de existências.

* Este texto foi elaborado a partir da disciplina “Ecologias Menores: Corpo, Arte e Cuidado diante do Plantationoceno”, ministrada pela Profa. Dra. Marina Souza Lobo Guzzo, no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde da Unifesp.

[1] Graduada em Psicologia pela Unesp, pós-graduada em Saúde Mental, mestranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde da Unifesp. E-mail: fernandacarlama@gmail.com

[2] Professora Associada do Curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp – Campus Baixada Santista e no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde e no Programa de Pós-Graduação Ensino em Ciências da Saúde da Unifesp. Email: f.liberman@unifesp.br

[3] Professora no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde da Unifesp. Email: marina.guzzo@unifesp.br

 

(Leia o ensaio completo em PDF).

 

Recebido em: 30/03/2022

Aceito em: 30/04/2022

 

 

O que mais a vida poderia ser?

 

RESUMO: A partir de um ponto de vida para observar o mundo, em cultivo situado de experiências e palavras, entre lagoas, bruxas e paisagens multiespécies, um convite à narratividade e ao encantamento da vida. Visões e poéticas sobre a existência produzindo refúgios, processos de subjetivação, resistência. Um movimento de pensamento atento à lógica colonial capitalista e seu sufocamento de modos de viver, suas manchas pluridimensionais, estéticas e políticas; com olhares ao Antropoceno e à mutação climática, atmosférica, geológica, vital. A problematização da Ciência como campo de poder, de hierarquia, sexismo, racismo, com partes desiguais de privilégio e opressão. As formas de narrar envolvem uma posição em relação ao mundo e a si mesmo, os sistemas de percepção são ativos, traduzem, criam modos parciais de ver e de organizar mundos, o que implica politicamente a produção de conhecimentos. A invenção de outros horizontes e perspectivas de produção de saberes potentes na desconstrução de eixos de dominação e na ampliação da vida. Saberes localizados, redes de conexão e aberturas, interseccionalidade, micropolítica ativa. Devir-decolonial.

PALAVRAS-CHAVE: Modos de existência. Produção de conhecimentos. Resistência.

 


What else could life be?

ABSTRACT: Starting from a life point of view to the world, in situated cultivation of experiences and words, between lagoons, witches and multispecies landscapes, an invitation to narrativity and to enchantment of life. Visions and poetics about existence producing refuges, processes of subjectification, resistance. A mindful thought movement to the colonial capitalist logic and its suffocation of living ways, its multidimensional, aesthetic and political marks; looking at the Anthropocene and the climatic, atmospheric, geological, vital mutation. The problematization of Science as a power field, of hierarchy, sexism, racism, with unequal parts of privilege and oppression. The ways of narrating involve a position in relation to the world and yourself, perception systems are active, they translate, they create partial ways of seeing and organizing worlds, what politically implies the knowledge production. The invention of other horizons and perspectives for the production of potent knowledge in the deconstruction of axis of domination and in the expansion of life. Situated knowledge, networks of connection and openings, intersectionality, active micropolitics. Becoming-decolonial.

KEYWORDS: Modes of existence. Knowledge production. Resistance.


AUGUSTO, Fernanda Carla de Moraes; LIBERMAN, Flávia. O que mais a vida poderia ser? ClimaCom – Esse lugar, que não é meu? [online], Campinas, ano 9, n. 22., mai. 2022. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/o-que-mais-a-vida/