Vinícius Honesko | Nas dobras das palavras: ensaio em vinte parágrafos


Vinícius Nicastro Honesko[1]

 

I

a Paulo Leminski  

“a poesia é a realidade.

o campo da poesia são os homens.

se fossem as palavras, estaríamos feitos.”  

Oscar Conde 

 

Às voltas com uma espécie de realismo visceral, toco palavras como toco a carne. Espúria ilusão dos jogos de braços e abraços, caro Leminski. Não há toque no campo da poesia, a encarnação é o feitiço do per-fazer-se. Estaríamos feitos, mesmo se o abismo das palavras nos engolisse; estaríamos feitos, mesmo se as palavras fossem o sopro que falta nos momentos em que a realidade – o doce insulto da palavra à vida – esboça seus desenhos opacos na carne dos homens: um passo sem solução. O mistério da vida profana é o indulto que as palavras se permitem nos dar – a nós, pobres e tolos palavrórios soltos em carne pelos abismos e pelos campos floridos de um verão quase invernal. 

 

II 

As palavras me vêm como pedregulhos atirados por esses insolentes moleques da vizinhança. Armo-me com uma tesoura para cortá-las, melhor, para dissecá-las e colocá-las à luz. Insuspeitado, como o velho Murilo Mendes, vejo-as como elementos que se assanham e querem me ajudar a organização do meu lúcido delírio. Moleques travessos! Não tenho mais forças e sucumbo com a primeira pedrada em minha cabeça. Tento, mais uma vez, apanhar os resquícios de sentido que elas poderiam me trazer. Um petardo, e nada mais. Dominam-me impressões avassaladoras do bom inconveniente de ter nascido. Batalho em vão. São as imagens das Highlands que minam o Canal Grande de Veneza e, como as pedras, derrubam-me. Se um livro é um suicídio diferido, Cioran, sua matéria, as palavras, é a morte a conta gotas. 

 

III 

A realidade é inegável. Não por um suposto caráter evidente, pois não há dar-se a ver. Não por uma impossibilidade de dela escapar, pois o que são as palavras senão adendos fugidios à realidade? Não, a realidade não é uma conta das idades do Real – isso que não cessa de não se escrever –, mas apenas uma das pontas de um dos icebergs da possibilidade. Supor um inexorável, supor um tempo composto de coisas, supor, su-pôr, é sobrepor realidades: eis as falácias da inegabilidade da realidade. Mas nada diz o caráter inegável da realidade. Não por sua proximidade com a morte (que só sabemos por sermos compostos pelas potencialidades falsas chamadas palavras), não por sua aparente intransigência em relação às consciências (aparência e consciência, mais uma vez, apenas nosso toque Real na realidade). Não. A realidade é inegável porque não se nega o que nunca se afirma. 

 

IV 

“A comunidade não é o simples colocar em comum, nos limites que ela se traçaria, uma vontade partilhada de ser em muitos, seja para nada fazer, isto é, fazer nada mais do que manter a partilha de ‘algo’ que precisamente parece ser já sempre subtraído à possibilidade de ser considerado como uma parte para uma partilha: palavra, silêncio.”  

Maurice Blanchot 

 

Corneando as plásticas noites de domingo, o touro aquático – que outrora poderia ter sido o enviado de Poseidon a Minos – desfaz-se do rebanho para saborear o ardor da conquista. No mesmo outrora, assola uma ilha e, talvez, é a peça chave dos embustes de um sequestro. Porém, nas noites em que o presencio, desfere seus golpes em silêncio. É um chiste, a própria imagem dos homens solitários que golpeiam seus corpos, numa espécie de ritual masoquista infinito, em busca da parte que lhes falta. Tolos homens, tolo touro, não sabem que a parte sempre lhes falta, não importa quão hábeis sejam na arte dos golpes. Em seus quase loquazes movimentos, os cornos do touro fazem faísca ao raspar o chão e resplandecem o céu da noite dominical, tal qual seus reflexos, os perdidos e silenciosos homens, faziam ao sair das cavernas atemporais ao frio e descoberto céu das eras glaciais. Sombras e luzes são os espasmos dos corpos em silêncio; metáforas vazias (e qual não o é?) do périplo dos homens na busca por seu “algo”. O touro e o silêncio tentam rebater firmes meus delírios – e qual a tolice de se contar os delírios? São sempre incontáveis. Há somente um espectro: o in-comunicável – que, aqui, em meio ao vazio dissimulado da moça que uma vez fora raptada, faz-se ainda audível. A partilha é desde sempre interdita e a palavra, ou o silêncio, soltam-se em riso incontrolável diante da patética e, por isso, deliciosa existência. 

 

V 

Se a serpente destila veneno por suas presas, o escritor o faz por meio de seus dedos no teclado. A vontade inóspita de desfazer-se dos sentimentos em letras, em sons suscitados no ato da escrita, na voz que lhe falta a todo instante – que, no entanto, a serpente possui desde seus primeiros movimentos; desfaçatez é a escrita – é o delírio do animal de voz articulada. É com raiva que rompo meu silêncio e tento lançar essas vexatórias palavras ao tempo, ao relento. Descobertas, palavras perdidas, é a vida que crepita junto com o som seco dos dedos no teclado. É o veneno que, aos poucos, conduz à morte.  

 

VI 

A Roberto Bolaño  

“así pasa la gloria del mundo

sin pena                              

               sin gloria                

                             sin mundo

 sin un miserable sandwich de mortadela.”  

Nicanor Parra                                            

Banal, a vida escorre por um ralo sujo, sem chances de que nenhum pano entumecido com restos, desinfetantes e migalhas possa apanhá-la. Não há desfrutar, pois não há nenhum fruto, não há árvore que dê sentidos ao inconveniente de ter nascido. Passamos pelo mundo que criamos, e talvez essa cria seja a única possibilidade de suportar o caminho irreversível para o ralo. Sem espera pelos deuses-faxineiros, que viriam portentosos significar nossa descida ao ralo; tampouco gloriando nossa cria, o mundo, como quintessência daquilo que pateticamente chamamos “nosso ser”. Nessas turvas águas que desembocam no ralo, não nos resta nem um farelo do maldito sanduíche de mortadela… 

 

VII 

Uma obsessão pelos recônditos lugares onde se inventam biografias. Não há propriamente uma voz capaz de dizer a vida. E o que dizer da letra morta, do deslizar da pena pela folha em branco? O livro da vida é escrito numa língua sonhada (e já me lembrava Giorgio: “Não é o sonho, sempre, uma dimensão não além das línguas, mas entre as línguas e que, como tal, precisa de uma interpretação e de uma Deutung?”), porém, sempre a partir de um relance obsceno entre a vigília e o sono. Incomodar-se até a morte com a própria obsessão; despertar e levantar tentando deitar as letras no seu leito branco que é a página. E, como Proust, deleitar-se, como se a sensação nessas estâncias obscenas fosse um frêmito interminável: “(…) assim, quando acordava no meio da noite, e como ignorasse onde me achava, no primeiro instante nem mesmo sabia quem era; tinha apenas, em sua singeleza primitiva, o sentimento da existência, tal como pode fremir do fundo de um animal; estava mais despercebido que o homem das cavernas.” 

 

VIII 

As palavras não nos abandonam. Voltam-se para nós como canhões carregados e prontos para lançar sua onda de destruição. Elas, as palavras, aparecem como em sonhos, em acessos que nos tomam sem que possamos delas tomar posse. Vazias, como alforjes, nos aprisionam num regime impossível, num plano de espectros em que memórias e expectativas não são mais do que nosso reflexo arredio num espelho convexo qualquer. Deturpamo-nos e elas, nossos vazios mais plenos de sentido, acabam por nos deglutir sem nenhuma piedade. Embebidos de palavras soltamos nossos corpos nas impossíveis formas que criamos com os vazios. Nada, nada resta dos empreendimentos do homem. E a certeira mira nos alvos da imortalidade faz-se vaidade, vanidade. Às faces vazias, contornos suaves; aos contornos suaves, palavras vazias, e não há retorno. Abandonados à sorte das palavras, aos nomes que nomeiam sem piedade, vemos vir a próxima onda a apagar nossos reles traços, nossa tola história. 

 

IX 

Certa vez, disse Borges: “A certeza de que tudo está escrito nos anula e nos transforma em fantasmas”. O nada, a anulação, da vida está numa certeza, na certeza da inscrição. Quase como epigramas ambulantes, somos portadores de uma vida que se abisma, que se afunda, portanto, em medíocres certezas portadoras de sentido: as palavras. Passamos a vida tentando decifrar tais escrituras, mas já não sabemos ler. Nossos olhos, mais que janelas de algo com sentido, uma suposta alma, são um inócuo ponto esvaziado, um simples corredor de passagem ávido por luz, pela possibilidade de ler. Estamos perdidos em meio à catalogação da nossa espécie. Somos espécie, mercadoria, especiarias. Não nos resta outra saída, nem outra entrada. Somos o extravio do que chamamos nossos rostos, do que, à luz, dá-se a ver, dá-se a ler. Mas já não sabemos ler! E nenhuma luz é capaz de iluminar a escrivaninha-mundo. Somos livros abertos sem leitores; somos os fantasmas que não somos; somos e não somos: nada. 

 

X 

Às vezes sabemos que a carta que acaba de nos ser entregue já tinha sido aberta muito antes, num tempo em que nem mesmo sabíamos ler. É como se nenhuma novidade possa surgir; é como se tudo já tivesse sido escrito e, a despeito disso, ainda insistíssemos em querer escrever e ler, ainda tentássemos ter a ousadia de fracassar em cada movimento de olhos diante dessas manchas sobre a alva celulose. Destilamos as palavras como se as pudéssemos tocar, como se fossem as únicas coisas certas desta parca e efêmera existência. Não nos livramos disso. Giorgio Caproni pensava em escrever com uma única palavra, ou, quiçá, para além da palavra, para além da simulação dessa suposta coisa que chamamos realidade. A coisa chamada palavra e a coisa chamada realidade: e não saímos disso, dessa luta entre os universos paralelos da linguagem e da suposta realidade. Esses alforjes que embaralham as pistas da nossa existência, as palavras, jogam-nos contra nós mesmos, e não saímos disso. Recebemos cartas e as escrevemos, mas nenhuma delas jamais poderá ser real e, quiçá, lida. 

 

XI 

A Murilo Mendes 

 

“A poesia somos todos nós”: assim Murilo Mendes termina suas Metamorfoses, diante do abismo da iniciação. A arte do tempo, os ciclones de flores e o sorriso da musa. O poeta parte pela vida, parte a vida, desdobra-se à beira-mar. Imberbe, matreiro, joga raciocínios ao léu e planta a vida no poema. Todo mundo é enigma e a eternidade deve ser historiada por quem frequenta o labirinto onde se representa diariamente a pantomima cósmica. Já estamos livres da metáfora e dos mitos: não restam senão bibliotecas ambulantes já esvaziadas de livros. Mas ainda somos poetas e isso nos dá acesso à linguagem dos deuses, para além do espaço e do tempo, essas categorias anacrônicas que o homem deverá abstrair se quiser conquistar a poesia da vida. E continuamos vagando – com o pensamento em férias nos sonhos – pelo vasto signo concreto que se move e é apenas medido pelo espírito: o universo. A lira continua soando, o espaço-tempo se prostra diante das palavras, um indubitável som que preenche a vida numa imagem plural desenhada na cidade eterna: Orfeu Orftu Orfele Orfnós Orfvós Orfeles. 

 

XII 

Perdido em minha demência caminho por entre galáxias absortas. Sinto o cheiro das palavras que há pouco saíram das bocas maledicentes. Esfrego os olhos e tento ver claramente aquilo que nem ao menos se dá a ver. Volto ao caminho. Perdido, demente, deparo-me com aquelas palavras soltas, como estrelas sem constelação, planando sobre minha mesa de trabalho. Tento percorrer as sombras que essas palavras deixavam como rastros sobre a escrivaninha. E, desesperado, escrevo com elas; tento deixar a tinta da caneta sobre essas sombras, como que a marcar a fórmica cinza-hospital. Mas é impossível, elas deslizam sem que nenhuma marca, nenhum traço, possa ser por mim fixada. Volto às galáxias, tento desmentir a demência. Em vão, elas vão, as palavras, elas que absorvem as galáxias.   

 

XIII 

“Qualquer que seja o Deus a ter entre suas incumbências velar pela correspondência dos terrestres, parece que os fios da nossa escaparam das suas mãos e caíram no poder de algum demônio do silêncio. Naturalmente, admito que o poderio desse diabo não me é de todo estranho, à medida que o meu próprio mundo interior lhe serve de cenário.” Essas palavras de Walter Benjamin, dirigidas ao amigo Gershom Scholem numa carta de 29 de março de 1936, ressoam pelo tempo e, ainda que destinadas ao amigo, hoje se abrem a este leitor qualquer que agora as cita. Mas essa intimidade – e toda intimidade é, tal como Agostinho em suas interpelações a deus, interior intimo meo, o mais profundo de mim que é atravessado por esse fora, pelo completamente outro – da amizade encontra, em cada carta que escrevemos, seu ponto de máxima combustão. Assim, quando em nosso cenário interior demônios-atores – e, para os gregos, o demoníaco (daimonion) estava sempre em relação com a felicidade (eudaimonia); ou seja, feliz é quem está na companhia de um “bom demônio” – atuam numa peça que a nós é sempre desconhecida, começamos a escrever um mapa, uma carta, a alguém que jamais o compreenderá de todo. Qualquer carta, portanto, não é senão um fragmento para dominar esses demônios silenciosos, uma tentativa de atribuir papeis a esses seres que nos fazem lançar palavras a outrem, e, desse modo, com as folhas preenchidas e com o mundo interior esvaziado, permanecemos, com a caneta em mãos, no recôndito de nosso silêncio. 

 

XIV 

Todas as vozes do mundo parecem entrar em minha cabeça a cada movimento raivoso dos braços de Jacqueline du Pré. O cello canta com uma voz que me diz coisas que eu talvez jamais poderia ter dito. É tudo muito claro, como nas cartas que, por vezes, um filho, confuso pelas respostas desajeitadas da mãe demente, tentava esclarecer do seu passado esquecido. Ou seja, nada brilha na memória, apenas um espaço em branco como que a ser preenchido por este cello, e apenas por este. A tensão do som, a harmonia e a melodia, o instante em que soa, esse irrepetível e, ao mesmo tempo, inesquecível que assola qualquer possibilidade de coerência deste parágrafo. Um susto, e nada mais. O espanto das letras que saltam como que a desenhar partituras ilegíveis que, com insistência, tento exprimir nestas malditas linhas. Minha condenação é a palavra percebida, e qualquer reduto de paz, o tão sonhado apanágio destes tempos sombrios, não é senão o viver a condenação sem a perceber. Procuro, em vão, neste inóspito quarto – como que numa leitura sem esperanças de didascálias que me indicam como encenar –, a matéria da vida, a razão do som que do cello de Jacqueline escuto sair incólume. Delírio, perdição na palavra, desgostos por ver o sol que se vai mais uma vez. Sem poder dizê-lo, ele, o sol, cubro-me das sombras da noite produzidas por estas palavras que me fazem calar, e, em silêncio, apenas ouço minha respiração ofegante. Mas, desafortunado, percebo que não há escapatória à pena da língua e mesmo essa brisa noturna é ensurdecedora. 

 

XV 

E no princípio era o sonho, logo transformado nas asas de um abutre que pairava então sobre minha cabeça. Tangendo toda forma de realidade, soavam em mim, como ecos, os ruídos quase guturais daquele abutre-sonho. A ave da minha vida, sonhada e esperada, desnudada agora na sua real figura. Olhava para cima, atônito, tentando enquadrá-la num plano-sequência, como se aquilo tudo fosse um filme no qual eu figurava como um qualquer, um sórdido personagem secundário da própria vida. Era o vazio que preenchia a cena, o vasto e noturno céu, que, agora, depois das asas do abutre, ocupava minha lente. Aos sons obscuros da ave agora misturava-se o noturno, a vasta escuridão do sonho que, de início, era o próprio abutre. Tudo, tudo não era senão a fantasia de achar-me em um filme-abutre-sonho que agora era eu mesmo. Todo o tempo, todos os anos, todos os desejos, todos os quaisquer, absorvidos pelos hifens que hoje me condenam às conexões mais disparatadas e à submissão ao filme-abutre-sonho-eu, ou, melhor dizendo, ao meu fantasma. 

 

XVI 

A la hora de la partida 

llevadme fuera, 

para que sienta, 

las mañanas de seda 

y las noches de terciopelo. 

 

Esas mañanas y esas noches 

que eran cuando nací, 

que seguirán cuando yo muera. 

Mario Rivero. 

 

Uma mísera dose de um suposto realismo parece querer fazer as vezes de anfitriã. Mas nada menos palatável do que essa balela do real. Insuportáveis mulheres com seus perfumes sintéticos, seus cheiros de morte, às voltas, sem saber como, com a vida, que dança sob formas opacas e desfiguram qualquer real. Desgastado pelo vazio dos números, sinto, cheio de impropérios, o irreal que se descortina por trás de todo sonho, de toda esperança. Esse vazio atômico de uma explosão que se dera antes que nossa infame espécie, esse milésimo de segundo do mundo mineral, tivesse visto a luz. Que luz? Uma suposta luz real? Sonhamos nosso desterro, imaginamos os muros do paraíso e o sondamos desejosos por derrubá-lo com nossas forças reais. A anfitriã da noite ganha força: como superar a imobilidade? Como saltar para além dos muros desse jardim que ansiamos como um abutre à espera da carniça? Queria poder descansar, como diz o poeta, cada um de meus poros, cada vil milímetro deste corpo que apodrece na boca de Cronos. 

 

XVII 

A que se presta alguém destinado a circular como um dicionário ambulante? Insuflado de palavras, sinto o peito bombardeado por nefastos significados que querem como que se colar às palavras. Rodopio dezenas de vezes na minha cadeira giratória, no espaço deste escritório em que, mais do que livros, é povoado pelos rastros perdidos da grande Obra dos falantes. Espero, em vão, que esses giros me atordoem e, talvez, façam com que a gravidade descole de mim as palavras. Desejo novamente a folha branca, a folha em branco! Folheio ao léu as correspondências entre Scholem e Benjamin. Quanto da vida cruzada de amigos está aqui, agora, nestes meus olhos que recebem, tal qual um cadáver inerme nas mãos do legista recebe pontadas do bisturi, palavras que não eram dirigidas a ninguém senão ao amigo Scholem ou ao amigo Benjamin? Nada. Apenas palavras soltas, com as quais brinco em meus rodopios e que, no mesmo instante, espero poder senti-las se desprendendo de mim. Entretanto, ao deixá-las ir, outras tantas se colam em meu peito, e o jogo é interminável. Giro com mais força e velocidade: quero a tontura, uma ebriedade sem palavras. Mas o martírio desse Ahsverus é o erro, errar pelos caminhos das palavras, pelos caminhos nas palavras, pelas palavras que caminham, pelo ensurdecedor silêncio que as palavras carregam.   

 

XVIII 

Lanço fogo em uma pilha de velhas cartas, tentando queimar mais a memória do que os papeis que agora viravam cinzas. Vulnerável em face de minhas próprias figuras e imagens que, em brasa, subiam com a fumaça e, tal qual a voz de Billie Holiday bêbada em Newport, declamavam as cartas como se elas fossem poemas perdidos. Sorrio com a vitória do fogo sobre o papel, mas incendiar a memória é o que mais desejo. Paul Auster e seu inventor da solidão ainda queimam meus dedos: Por que não abandonei a leitura desse doente por memória? Por que não queimei esse livro junto com as cartas? Não bastaria; e parece que estou sobre a mesa de ferozes algozes que examinam o melhor modo de cortar-me em pedaços para me dar uma lição (e não é a pedagogia produto de algozes?): “você queimará com suas memórias, sejam elas inventadas ou não; só resta a você, tolo e ingênuo que tenta apagar o que é você mesmo, o martírio por tamanho disparate: sua memória é sua culpa.” Solto um grito de exasperação – e Deleuze, sufocado sem possíveis, é alento –, deixo a meus assassinos minha carne em prantos e tento me entregar a um presente que arde em chamas sem cartas, sem mapas, sem outros caminhos senão os delírios de um esquecimento tão difícil quanto inevitável. 

 

XIX 

Brincando com sonhos aprendi a inventar o universo. Nada escapava às mãos da criança que ainda sorria ao acordar e perceber que deixara um imenso mundo para trás. Era uma perda, mas, ainda assim, havia um outro mundo por desbravar. O silêncio da manhã ocupava todo o espaço desse grande nada demasiado cheio que era o dia que se iniciava. Como podia estar há pouco num campo de imagens descontroladas e, de repente, às luzes e cheiros do dia, tudo era trespassado por um nada de imaginação? O mundo do dia era muito complexo na sua falta de sentido; restava-me, portanto, apenas o desejo da próxima noite e, assim, as novas brincadeiras com a imensidão da imaginação (os jogos, que Huizinga pensara ser um elemento fundamental à constituição dessa abstração chamada “homem”). Enquanto isso, a ânsia de tentar, neste mundo aniquilado que ainda assim devia ser descoberto, constituir sentidos. A literatura, ao postular o universo (a complexidade, diria Borges), podia ser alento às luzes da vigília. Os primeiros poemas que tentavam dizer um sentimento, o desconforto com as sensações intransmissíveis, a ausência (de tudo e do nada que lhe fazia companhia) como primeiro motor da angústia; perceber que o mundo do dia era, segundo a convenção dos adultos, inequívoco, exato, coerente. Hoje, sob os ventos da memória ou do esquecimento (ambos inventivos), talvez pense que a falha persista – e, é possível, há nesse pensamento uma dose amarga de vitalidade. Qualquer mundo por desbravar se mostra fraudulento; todo sonho não é senão a porta de ingresso nos jogos da invenção; e os dias, submetidos às práticas da memória e do esquecimento, passam, e só me resta continuar a invenção do meu universo. 

 

XX 

Fecho os olhos e vejo, com o fundo preto, esboços de rosas vermelhas. Suas pétalas aveludadas como que tocam a escuridão das imagens. Meu estômago se agita triturando palavras não ditas. É a doce ilusão dos sonhos, é a voracidade feita pedra. Absorto com as rosas, sinto a escuridão que me invade. Tomado de cólera, regurgito as palavras e dou mostras da ausência que tudo preenche. Nem mesmo Drummond seria capaz de dizer palavra. A ideia da rosa? Palavra vã, poema torto, e o toque de veludo apaga-se na escuridão. O elixir açucarado que há pouco ingeria dissolve-se em palavras vazias. Não há senão palavrório saltitando aos borbotões. Nenhuma ideia da rosa, apenas um sopro nos olhos desavisados. No poema faz-se a vida. Torta, enviesada, mas que resplandece em um sorriso. 

 

Recebido em: 30/06/2019

Aceito em: 30/07/2019


 

[1] Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde é coordenador do bacharelado em História, Memória e Imagem e da linha de pesquisa Arte, Memória e Narrativa, do Programa de Pós-Graduação em História.

Nas dobras das palavras: ensaio emm vinte parágrafos 

 

RESUMO: Este ensaio compõe-se de vinte pequenos parágrafos – independentes, porém conexos – com reflexões sobre a linguagem e a escritura. Propõe-se a pensar, de forma livre, os modos da escrita, da leitura e do pensamento inspirando-se, para isso, em filósofos e poetas. Partindo de uma hipótese obscena: “o que se faz quando se escreve, quando se lê e quando se pensa?”, o ensaio – o ex agioo deixar-se tomar pelo excesso – procura levar o leitor ao mesmo exercício que empreende, isto é, de forma torvelinha, a uma reflexão sobre a linguagem mesma. 

PALAVRAS-CHAVE: linguagem, escritura, pensamento. 


In the folds of words: an essay in twenty paragraphs 

 

ABSTRACT: This essay consists of twenty small paragraphs – independents, although connected – which reflects on language and writing. In a free form, it intents to think the modes of writing, reading and thinking. In order to do so, it uses the work of philosophers and poets. The essay – the ex agiothis kind of “been possessed by the excess” – starts from an obscene hypothesis: “what are done when one writs, when one read and when one thinks?”, and intents to take the reader to the same exercise that it undertakes, that is, in a spiraling movement, toward a reflection about language itself. 

KEYWORDS: language, writing, thinking.

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HONESKO, Vinícius Nicastro. Nas dobras das palavras: ensaio em vinte parágrafos. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [Online], Campinas, ano 6,  n. 15,  set.  2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/nas-dobras-das…nte-paragrafos/