Mirs | Todo peso do mundo!

Título | Todo peso do mundo!

 

O que carregamos como Atlas, o que escondemos como Obaluaiyê, o que protegemos como pessoas em situação de rua ou Beuys, o que guardamos como Bispo do Rosário, o que cobrimos como os Kalankó ou os Javaés? Por que – e do quê – queremos falar e proteger em nosso cotidiano? Estas são questões, que vão além de uma simples reflexão, são o ponto de partida para uma ação e, porque não, de muitas ações e reflexões.

Desta ação performática – “Todo peso do mundo” – criada em 2014, para dois momentos  e lugares distintos: em Limeira numa praça e Hortolândia, no Sarau Jacuba. Utilizando tecidos diversos, rosas secas, sacos de lixo, sacolas plásticas e “patuás urbanos”, pequena trouxa de retalhos contendo objetos encontrados na rua, como porcas e parafusos, lacres, etiquetas entre outros, interligados por fios e arames, embrulhados e entregues como presentes, em agradecimento a atenção dispensada.

Com camadas de tecidos cobrindo o corpo todo, como algumas figuras citadas acima, saio pelas ruas, pelo espaço, com os sacos e sacolas cheio de tecidos, roupas próprias, plásticos e os patuás urbanos, numa mistura de “louco” e “guia espiritual”. A ação consiste fazer movimentos repetitivos e falar em voz baixa, até  abordar alguma pessoa e iniciar uma conversa quase que ao pé do ouvido, estimulando a pessoa a dar pistas de de sua vida, sonhos, cotidiano, um diálogo de escuta, deixando a pessoa a vontade para direcionar a conversa, como um guia espiritual que não aconselha apenas ouve. Ao final presenteio com um patuá urbano, dizendo que é apenas um presente, “se quiser pode abrir ou não, pode mostrar a outra pessoa ou não, pode usar ou não”.

Sarau Jacuba, Junho de 2014.

Uma senhora no canto, me aproximo dizendo baixinho:

– Na vida temos caminhos e que às vezes têm pedras, e depende da cada um o que vai fazer com as pedras e qual caminho seguir.

Ela responde:

– Você está certo, na vida, às vezes fazemos coisas certas e erradas, bonitas e feias.

– A senhora faz coisas belas!

– Sim, mas não tenho coragem de mostrar.

– Por que não mostrar se são coisas belas? O mundo precisa de coisas belas!

– Ela responde que precisava ouvir isso e que eu sabia de tudo da vida dela.

Agradeço a conversa e a atenção, ofereço um “patuá urbano” dizendo que era um presente, dou as recomendações e saio, continuando a andar e abordar outras pessoas.

Momentos mais tarde, já terminada a ação, sem os tecidos que me cobriam, a senhora se dirige a mim dizendo que me reconheceu, que tudo que falei era verdade e confirmando que eu sabia tudo sobre ela, que ela escrevia, mas não tinha coragem de ler seus textos e poemas, sempre eram lidos por outras pessoas, que eu havia dito pra ela ler e que naquele dia ia tomar coragem e ler, mesmo que fosse errado. Fiquei sem saber o que fazer ou falar, apenas a abracei, depois fui ouvi-la ler seus poemas.

(Senhora, 75 anos aproximadamente, dona de casa)

Limeira, outubro 2014.

Após algumas abordagens na praça, estou a caminhar repetindo frases e palavras como um mantra, até que uma pessoa se aproxima, pergunta:

– Hey, você já comeu, tá com fome? Oferecendo uma marmitex.

– Muito obrigado!

Ele insiste.

– Come, tem mais!

– Obrigado, já comi!

– Você é novo aqui, tá tudo bem? Ele pergunta.

– Tá tudo bem, sou de Campinas.

– Conheço Campinas, já passei por lá.

– E você de onde é?

– Sou daqui de perto, de XXXXXXXXXX

– E o que você tá fazendo?

– Tô me arrumando pra voltar pra casa.

Alguém chama, antes dele sair agradeço a conversa, ofereço um patuá urbano, ele pega, agradece e sai.

Saio, continuo minha caminhada. Paro, observo com certa limitação pelos tecidos no meu rosto. Continuo a caminhar e repetir meus “mantras”, até que sou abordado bruscamente por duas motos, ali no meio da praça, eram dois policiais, um mais a frente outro atrás:

– O que é isso? Pergunta ele.

– É o meu trabalho! Respondo.

Ele estica o braço, pega o tecido, num golpe o levanta. Percebendo que por baixo eu tinha outras faixas e tecidos no rosto, diz:

– Cês são tudo louco, mesmo!

E saem acelerando as motos. Eu continuo ali parado, tentando entender realmente o que havia acontecido. Rapidamente vem o rapaz que conversava comigo, pergunta se estava tudo bem, se fui agredido, me oferece um copo d’água, diz algo reclamando da atitude policial com pessoas em situação de rua e logo sai. Volto a fazer minha ação.

(Rapaz, 30 anos aproximadamente, em situação de rua.)

Hoje, algum tempo depois, faço uma reflexão sobre este peso que nos é colocado: todos “falam”, mas poucos dialogam, apenas uma enxurrada de informações e desabafos, que não é preciso olho no olho, o receber é apenas um acúmulo, assim como o consumismo.

Com isto o artista se coloca apenas como um receptor, escondido, protegido, como um padre no confessionário, conversa, mas sem um diálogo real, acobertado recebe informações que se vão. Penso o que fica para o público e o que fica para o artista, quais reflexões estas pessoas fariam, qual relevância tem esta ação, ou será que um tempo depois isto também se vai, cai numa vaga lembrança.

Este pequeno momento fez algum sentido? Fez mudar sutilmente um comportamento? Como pra senhora que começou a ler seus poemas e textos, ultrapassou a fronteira da vergonha, não dá pra saber, assim como não sabemos de muita coisa da vida. É como olhar a foto antiga, que vai nos revelando coisas já encobertas pela poeira do tempo. É rever o recorte de jornal e entender porque ele está guardado há muito tempo. Acredito que da mesma forma que esta ação fica pra algumas pessoas, há pessoas e reações que ficam para o artista, mesmo que seja preciso registrá-las.

Como diminuir o peso do que carregamos? Como ser um diálogo realmente para quem ouve, para quem fala? Quais patuás nos protegem no cotidiano? Quando cobrir e quando descobrir?

Acredito que cada vez mais nos distanciamos dos ritos, assim como nos distanciamos das pessoas. Isso aumenta o peso do que carregamos, pois não temos com quem dividir. Nos cobrimos com mídias sociais, nos escondemos em carinhas felizes o tempo todo, falamos, falamos, falamos coisas que muitas vezes não leva a nada.

Criamos proteções que não sabemos para que servem e nem como usá-las, carregamos peso morto, nem sabemos o que é ou porque carregamos. Tudo isso nos fragiliza, nos vulnerabiliza, manipulamos e somos manipulados, cada um no seu grau de poder, porém há quem dialogue, quem queira apenas brincar, quem te questiona num sentido de cuidado, quem agradece por um presente subjetivo, há quem compartilhe dessa loucura, diminuindo este peso da coluna de Atlas, da vergonha e beleza de Obaluaiyê, do manto do Bispo, da sintonia dos Javaés e de Oiticica, que protege como o feltro de Beuys e os cobertores das pessoas da rua.

 

 


FICHA TÉCNICA

Artista:  Mirs

País: Brasil

Ano: 2014

 

 


Mirs

E-mail: monstrengomirs@yahoo.com.br

 

 

 

 

 

 

MIRS. Todo peso do mundo. ClimaCom – Povos ouvir – a coragem da vergonha [online],  Campinas,  ano 6, n. 16. Dez. 2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/mirs-todo-peso-do-mundo/

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SEÇÃO ARTE | POVOS OUVIR – A CORAGEM DA VERGONHA | Ano 6, n. 16, 2019

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