Paulo Nobre – Climatologista

Modelar o clima é um modo de pensar o clima, de pensar o próprio pensamento com o clima que as ciências climáticas podem criar.

Por: Equipe ClimaCom

Imaginar ligações entre o futuro e o presente do planeta Terra. Criar relações e aprender processos da natureza. Elaborar modelos que tornem visíveis tais ligações-relações. Comunicar os desafios encontrados. Gestos que fazem parte das atividades de um modelador climático. Nesta entrevista, Paulo Nobre – climatologista e coordenador da Rede CLIMA – apresenta aspectos de sua prática como cientista que envolve modelos, ferramentas, algoritmos, chuvas, ventos, conceitos científicos e filosóficos…  Um conjunto de “materiais” que permitem aos climatologistas lidar com a vida e dizer do futuro. A vida compreendida como feita desses sistemas caóticos, não lineares, mecanismos regulatórios com múltiplas variáveis, escalas de tempos diversas, dinâmicas imprevisíveis, movimentos anômalos. A vida como um mistério que não pode ser encapsulado num conhecimento já dado, totalizante, completo e previsível. Modelar o clima é fazer uso de ferramentas imperfeitas, resoluções grosseiras, é produzir modelos móveis e provisórios, é lidar com as incertezas, leis desconhecidas e a impossibilidade de conhecimentos completos, é reconhecer a importância de enfrentar as fronteiras. Modelar o clima é um modo de pensar o clima, de pensar o próprio pensamento com o clima que as ciências climáticas podem criar.

 

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Como comunicar a ameaça global?

É muito difícil comunicar a morte. É mais difícil comunicar a extinção. Médicos têm sempre essa questão quando eles têm que notificar uma pessoa de que ela tem uma doença terminal. As pessoas às vezes aceitam, às vezes não. Eu fui notificado de que tinha uma doença terminal (artrite) em 1985, faz muito tempo. Mas não era terminal, parecia ser. Porque havia um caminho longo de recuperação. E acho que tenho um caso interessante: poderia ter, também, desistido. Seria uma profecia auto-realizante: ela se realiza porque você está na direção do poste, não tira o pé do acelerador e o carro vai bater. Se não se faz nada, o carro bate. Mas não sempre. Pode-se brecar, desviar, amassar um pouco a lateral. Então esse é o nosso papel: nos modelos climáticos nós temos que noticiar, notificar as pessoas, nossos colegas, vizinhos, o presidente da república, os donos das firmas, de que existe uma ameaça global. Essa ameaça não é para as próximas gerações, essa ameaça é para esta geração.

Modelar: lidar com sistemas caóticos, criar relações, aprender processos

O modelo perfeito é o modelo global. Não tem uma particularidade americana ou alemã. A nossa contribuição é saber de que forma a América do Sul, os biomas tropicais – principalmente a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica um pouco – contribuem para o clima mundial. Essa é a contribuição brasileira. Então, a ferramenta é uma ferramenta que você pode desenvolver em qualquer parte do mundo e rodar, integrar, em qualquer computador do mundo. Mas as equações que descrevem a relação entre a floresta amazônica e o clima mundial – aí é uma coisa que nós estamos desenvolvendo, é a nossa contribuição.  É um desenvolvimento em que nós recebemos muitas ferramentas do mundo todo – ferramentas de modelagem do clima, que são os modelos – e especializamos algumas delas. Aumentamos o corte ou fazemos outro tipo de encaixe na ferramenta, que os demais modelos não têm. Nós estamos aprimorando os modelos para contemplar, no funcionamento do sistema terrestre, o efeito da floresta amazônica, da descarga fluvial do rio Amazonas, no clima. Quando tem seca, a quantidade de água doce que entra no oceano é menor. E daí? De que forma isso altera secas no Nordeste ou furacões nos Estados Unidos? Tudo é interconectado.

Acho que uma imagem muito potente disto é o efeito borboleta, do Edward Lorenz. Em que o bater das asas de uma borboleta no Brasil pode causar um furacão nos EUA, no Golfo do México, na Indonésia… Pode? A resposta é “pode”. Porque o nosso sistema é um sistema caótico. Um sistema matematicamente não-linear, onde pequenas perturbações somam energia… Um exemplo disso num filme do Chaplin – Tempos modernos – é quando ele tira aquele calço do navio e todo o navio afunda. Porque estava num trilho, preso por um calço. Esse calço, no clima, é um assunto de pesquisa efervescente hoje chamado tipping points, ou pontos de transição, de mudança de um sistema para outro. A pergunta é: a atmosfera tem tipping points? A atmosfera tem pontos nos quais não há retorno? Não é tão simples como no caso do Chaplin, que era um navio, com um toquinho que, se tirasse, a consequência era previsível. Na atmosfera existem muitos “toquinhos”. Existem muitos processos que, quando começam a atuar, outro processo age no sentido de conter, o que é chamado de homeostase planetária. Fotossíntese, no fundo, é um processo regulatório planetário. Existem muitos mecanismos de homeostase no planeta e o nosso desafio é representar matematicamente esses mecanismos no modelo climático, com o ferramental que se tem à disposição. Entre o tipo de produto que se consegue gerar com esse ferramental e o tipo de produto que se almeja atingir existe uma diferença: eu quero fabricar uma peça muito delicada, mas eu só tenho uma enxada e um alicate. Eu continuo querendo produzir aquela peça, que incorpora o efeito da vida, e tenho a realidade na qual minha matéria é só uma pequena maquete, em que eu viro uma rodinha e o cavalo levanta a cabeça e abaixa. Eu olho para aquilo e vejo um cavalo, e depois vou gradualmente ampliando o conhecimento da representação matemática dos processos. Para apreender os processos nós contamos com atividades de campo, ferramentas, navios, balões… Estamos construindo uma torre de 300 metros na Amazônia.

Nós coletamos dados, geramos algoritmos matemáticos, equações, que representam – procuram representar – a física dos processos. Incorporamos a matemática no modelo e vemos qual o efeito dela, como efeito de retroalimentação, no modelo. Com isso, os modelos vão ficando cada vez mais complexos. De modo que fica muito difícil mexer numa parte e dizer exatamente qual foi a parcela dessa parte nas consequências, porque existem consequências indiretas. Por exemplo, se você mexe o tamanho da gota da chuva, no meio de um processo, essa alteração muda a radiação solar, a temperatura de superfície, e com isso, muda a chuva. Muda a posição da chuva não porque você mudou o tamanho da gota, mas porque uma cadeia de processos indiretos são alterados, daí a convergência dos ventos – e então a chuva fica bem representada. É um grande desafio, nosso e mundial, desenvolver esses modelos e conseguir encantar os jovens, as novas gerações de cientistas, pessoas que se interessem pelas ciências, por compreender como a natureza funciona e representar nos modelos para sermos capazes de predizer o futuro. Responder às perguntas: uma ação presente tem quais consequências? Ela ameaça de alguma forma a nossa disponibilidade de água para beber, por exemplo?

Obra Marmetria de Fernanda Pestana

Obra Marmetria de Fernanda Pestana. Confira o ensaio completo na seção de arte.

Múltiplas causas, escalas de tempo diversas

Hoje nós vivemos uma grande crise hídrica no estado de São Paulo… Ela está associada a um processo longo de desflorestamento, tanto de São Paulo quanto da Amazônia. Mas também há emissões de poluentes globais. Então, quando ocorre um grande evento, a sociedade acorda para aquilo e pergunta a causa. E a causa nem sempre é simples de apontar porque é fruto de múltiplas causas que atuam em escalas de tempo diversas. A pergunta que normalmente se faz para nós, climatologistas, é: “e daí, qual é o futuro?”. E o futuro que hoje nós representamos nos modelos indicam aquecimento, aumento de eventos extremos. Perguntam-nos se, em 2100, no final do século, as taxas de aumento de CO2, de gases de efeito estufa, continuarem aumentando, como será o mundo em termos de temperatura? E nós fazemos estimativas, criando modelos distintos. Mas independente das variáveis, se mais ou se menos, os nossos modelos indicam que vai ficar mais quente. Mas quanto mais quente? O Hadley Centre diz que entre 5 e 6ºC mais quente que o presente. E isso é uma enormidade. Uma enormidade não porque vai ficar mais quente. Uma enormidade porque o que está associado com esse aquecimento – o nosso modelo indica de 3 a 4ºC, os outros modelos também – a quantidade e a frequência de eventos extremos, de precipitações intensas, ondas de calor, períodos de estiagem, aumenta proporcionalmente. Então, conforme se tem uma temperatura maior, uma média, significa que a atmosfera tem uma maior octanagem, como o combustível, potência, para desenvolver chuvas episódicas, muito intensas, com granizo, enchentes, ou um longo período sem água, como temos agora. Nós podemos esperar que se torne mais provável grandes períodos sem chover, e, depois, chuvas concentradas, muito intensas.

 

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Imaginar ligações entre o futuro e o presente. E se…? E se…? E se…?

A homeostase é um desejo, e ela está presente em certa quantidade no modelo atual. Como eu digo isso? Quando ocorre um abaixamento de pressão na superfície, há uma convergência de ar, formação de nuvens e chuva. Então, a formação de nuvens é uma resposta ao abaixamento de pressão. E, com o tempo, esse abaixamento de pressão se equaliza e desaparecem as nuvens. São processos decorrentes um do outro e, quando um atua, o outro atua no sentido contrário, desfazendo o anterior. Isso é a homeostase. Os modelos têm um certo grau de homeostase, no sentido de que as leis da hidrodinâmica já representam isso para balanço de energia, água… Como utilizamos os dados que nós coletamos? Nós coletamos dados de superfície, temperatura, correntes, ventos, chuva e verificamos se as equações que utilizamos geram campos que são correspondentes, ou seja, se o clima do planeta do meu modelo é o mesmo clima do planeta Terra. Assim avaliamos o quanto o nosso modelo representa uma certa aproximação com o clima deste planeta. E porque nós usamos equações e relações que representam processos, nós imaginamos – daí a previsão – que, quando aumentar o CO2, as consequências serão estas. É como nós fazemos a previsão de tempo, essencialmente. Existem algumas equações que são conservativas. Se nós sabemos o que aconteceu hoje, nós podemos saber se amanhã vai chover ou não, e se depois de amanhã também. Numa outra escala, como estas equações são conservativas para, por exemplo, a quantidade de radiação que temos armazenada no planeta, nós podemos dizer que, com o aumento desses gases de efeito estufa, as consequências serão estas. Em que nós estamos nos fiando? Que o conjunto de equações que nós utilizamos é válido para essa nova condição de gases de efeito estufa. E aí é uma longa conversa, mas isso é o pressuposto para se olhar para um mapa global de variação de temperatura e dizer que existe uma razão para imaginarmos que, de fato, no futuro, a Terra possa estar mais aquecida e todas as decorrências desse aquecimento.

Agora, a homeostase na natureza é muito mais complexa porque envolve o processo da fotossíntese e da vida. Então esse mistério chamado “vida” não está encapsulado nos modelos climáticos. Esse é um desafio fenomenal. Em Matrix, eles fazem todas aquelas evoluções, uma epopeia muito grande para tentar descobrir o sentido da vida. No fundo é um assunto ainda muito mais filosófico e profundo, mas o nosso objetivo então é, com o tempo, conseguirmos representar matematicamente esse processos. Os modelos são uma Matrix, porque rodam num computador e geram uma função, uma matriz de números, e desses números nós produzimos imagens, e de imagens nós inferimos consequências, e daí avaliamos como será a nossa vida naquelas consequências. No limite, o que o artista fez com o Matrix é uma projeção acelerada do nosso trabalho muitas vezes. E se? E se? E se?

E se os modelos fossem tão bons e tão perfeitos que você tivesse uma tela em que visse a cidade para a qual você quer ir e sentisse os cheiros e o vento…? Você não precisaria ir. Você poderia ficar aqui e ter as mesmas sensações. Para imaginar o futuro, nós temos que ter alguma coisa que ligue o futuro ao presente, que são as equações que descrevem os processos da natureza, a matemática. A modelagem do futuro é tão mais próxima do que o futuro provavelmente será quanto melhor estiverem representados os processos que ocasionam o futuro. Assim é nas nossas vidas, assim é na previsão de tempo e assim aqui também. Então, a coleta global de dados – de satélites, navios, balões, superfícies, milhares e milhares de estações coletando dados a toda hora pelo mundo todo, no Ártico, na Amazônia… – nos permite ter esse “check de realidade”, se essas equações que nós temos conseguem representar o sistema Terra. Nós sabemos que, para o modelador, elas sempre são insuficientes. Sempre existe um próximo nível. Os supercomputadores são cada vez maiores. Cada vez mais velozes. A cada vez eles conseguem fazer um número astronomicamente maior de operações matemáticas que, no final das contas, geram a figura que nós olhamos. E essa capacidade aumentada de fazer o processamento dos números, de colocar as equações e reduzir a escala. Essa redução reproduz um paradoxo, da astronomia: se você olhar a distribuição de um elétron em torno do átomo, ela é muito similar à distribuição dos planetas em torno das estrelas.

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Leis, limites e incertezas

O espelhamento das estruturas das moléculas com os astros é que nos dá a esperança de que tudo o que está acontecendo é fruto de leis, e é por termos esta esperança que continuamos no encalço delas. O algoritmo máximo da alquimia moderna é: temos um conhecimento tão completo que podemos dizer do futuro. Isso porque o paradigma básico da ciência é que o futuro nada mais é do que a consequência da atuação do presente através de leis. Se não houver leis, no final, não saberemos falar do futuro.

Esse é o paradigma. Nós desconhecemos a lei, e porque desconhecemos, parte de determinados comportamentos não conseguimos explicar, e daí vem a incerteza. E esta incerteza foi brilhantemente enunciada por Edward Lorenz, quando disse que “a partir de uma mudança infinitesimal na posição inicial de uma partícula, esta pode mudar de direção”. Ele definiu, assim, o conceito do “atrator”. Esse conceito é uma forma ainda simples dos processos particulares, dado o pouco conhecimento, na época (década de 1960), desses processos. Eu tive a oportunidade de perguntar ao próprio Lorenz, certa vez, se não poderíamos usar a matemática dele pra fazermos o nosso modelo, e ele foi muito bondoso ao dizer não, justificando que ainda não sabemos a matemática necessária para representar, de uma maneira caótica, a atmosfera.

O que se pode dizer do futuro?

O fato, então, de ignorarmos certas leis, não faz com que elas não atuem: elas continuam atuando. Daí vem a incerteza. Para mim, na estatística, a incerteza está no ponto de que existe um limite onde não temos o conhecimento da atuação de determinadas leis e, portanto, o movimento parece algo que não se explica, e de fato ainda não se explica. O caso das drosófilas é um exemplo. Acreditava-se que elas se multiplicavam por geração espontânea até que, em 1615, alguém mostrou o contrário. O que aconteceu neste caso é que adquirimos o conhecimento do processo, e passamos a explicá-lo. Esse é, na minha opinião, o paradigma fundamental dentro da alquimia e da ciência moderna: não conhecemos todas as leis, mas conhecemos algumas o suficiente para nos permitir falar alguma coisa inteligente sobre o futuro.

Nosso trabalho é esse: usando ferramentas imperfeitas, usando modelos de resoluções ainda grosseiras, podemos nos aventurar a dizer sobre o futuro. Poderíamos ter outra postura, de não dizer nada, posto que não temos um conhecimento completo sobre todos os processos. Mas olhando a história da ciência, essa seria uma postura para sempre, pois nunca teremos um conhecimento completo. Numa palestra sobre mudanças climáticas, fiz uma comparação interessante, quando falava aos físicos sobre o principio da incerteza de Heisenberg (que diz que não é possível prever a posição e velocidade do elétron em torno do átomo, ao mesmo tempo).  Uma mesa, por exemplo, nunca saberemos o tamanho exato dela, pois, dependendo da posição que os elétrons estão a cada momento, ela terá um tamanho diferente. Não obstante, qualquer pessoa poderá medir a mesa e dizer o tamanho desta, que será sempre aproximado. E, ainda assim, esse conhecimento será suficiente para se ter um jantar sobre a mesa. Não é preciso, portanto, saber do principio da incerteza para jantar sobre a mesa. Da mesma forma, existe um conhecimento para nós, cientistas, que já nos permite fazer uso das equações e dos dados dos supercomputadores e inferir o futuro. É claro que existe uma margem de incerteza, mas os detalhes só saberemos ao longo do tempo.

O impossível e o não saber

O ponto mais problemático das ciências da terra é comunicar a imprecisão, ou a incerteza. Isso não significa que eu não sei. Eu sei, mas também não sei. É uma dualidade. Sabemos e ao mesmo tempo não sabemos. Sabemos o suficiente para dizer que a mesa tem dois metros. Mas não sabemos dizer onde está o ultimo elétron. Algum dia, eventualmente, saberemos. Esse não saber, entretanto, não nos impede de dizer, com as devidas ressalvas, que a Terra, por exemplo, não só vai aquecer como já está aquecendo.

Já aconteceu, segundo os dados de aquecimento para o Brasil. E mais que saber o quê, temos a capacidade de dizer por que aconteceu e ainda acontece. Temos um conhecimento que já nos permite ligar causa e efeito. Não se trata, portanto, somente da quantidade de carbono que colocamos na atmosfera. Trata-se, também, da quantidade de crianças que estão indo à escola, da qualidade da água que estamos bebendo, das violências do cotidiano: da violência doméstica, das ruas, dos ônibus abarrotados. Acostumamo-nos com esse tipo de violência. Acostumamo-nos com a ideia de que a vida “é assim”. Mas, será que ela “é” mesmo assim? Será que cem anos depois da invenção do carro, da combustão interna, ainda necessitamos usá-lo, sendo que  já temos a tecnologia do carro elétrico?

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Pensar o futuro, agir futuramente: a dimensão humana dos números

O que as modelagens nos trazem, sua metafísica, é a nossa condição de elementos alavancadores de um mundo onde um dos indicadores de que alguma coisa saiu dos eixos é a temperatura. Mas ela é só a somatória de uma porção de pressuposições de que é assim mesmo: o mundo tem ricos e pobres. Onde está escrita essa decisão, essa condição de mundo? Temos que sair dessa condição técnica, para que não venhamos com soluções não convincentes como, por exemplo, injetar o excesso de carbono da atmosfera nos oceanos.

Qual seria, então, o paradigma a alcançar na modelagem? Na minha opinião, seria conseguirmos introduzir o elemento “nós” como agentes: o humano como modo de estudar, falar, comer, se transportar, reproduzir, enfim, a sociedade humana como último objetivo. Ainda estamos tentando entender como os peixes e plantas atuam no sistema terrestre, porque ainda não nos consideramos parte deste sistema. Achamos, ainda, que estes elementos estão a nosso dispor, que existe o “sistema terrestre” e existe “nós”. A questão, talvez, seja mais filosófica, e é possível que no meu período de vida eu ainda não consiga visualizar isso: um modelo que contemple de que forma nossos pensamentos afetam o planeta terrestre. E não podemos ter medo do conceito, porque, senão, fazemos uma proposta de um teorema que já é morto de nascença. Como é que meu pensamento afeta o sistema terrestre? Como considero o peso do meu pensamento e a energia dele nas modelagens? Naturalmente, é uma pergunta conceitual que me permitiria encadear uma série de processos até chegar ao meu pensamento, o qual me leva então a um tipo de ação, que acarreta diversas outras e assim por diante. Ou seja, existe uma cadeia que, novamente, se une na questão de olhar para nós e o mundo como o fruto de leis. E olha que gente bem mais esperta que eu já chegou a essa conclusão, Einstein e Hawking, por exemplo. Essa é uma ligação muito bonita, muito poderosa e produtiva, das ciências humanas com as exatas, que é entendermos que nós também somos frutos das leis.

Observar, compreender, interferir

Francis Bacon, quando enunciou a ciência, disse que uma coisa era científica se qualquer pessoa conseguisse reproduzir o experimento, não dependendo, portanto, do experimentador. Com isso ele colocou de lado os filósofos, pois que seu pensamento não é passível de reprodução. O filósofo postula um pensamento, mas este não é reprodutível, pois é fruto unicamente do filósofo. A partir disso, o filósofo passou a não ser categorizado como um cientista strictu sensu. Até que veio a física quântica e demonstrou que o resultado de alguns experimentos depende de haver ou não um observador. O simples fato de haver um observador na estrutura quântica da matéria altera o resultado. O que Bacon falou era correto numa determinada dimensão, e permitiu o avanço da ciência até um ponto. Porém, na física quântica, não conseguimos avançar se mantivermos esse mesmo paradigma, porque ela mesma demonstrou que o observador interfere no experimento. Isso significa que nós interferimos quanticamente no experimento, e, portanto, interferimos homeostaticamente no experimento do planeta Terra.

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Conhecer o que (ainda) é desconhecido

Uma vez, um professor de Princeton, ao tentar contextualizar a questão de prevermos as mudanças climáticas, me disse: coloque um grupo de jovens pesquisadores numa sala e ofereça a eles uma pergunta, mas não diga que para ela não há uma resposta. Possivelmente, desta interação em que ninguém se julga incapaz a priori, surgirá a resposta. Nossa pressuposição de nossa incapacidade, portanto, nos incapacita. Essa é uma questão na qual a ciência precisa do filósofo, pois o cientista aprende na academia uma série de inverdades, que são na realidade nossas incapacidades, porém as apreendemos como sendo impossibilidades.

Eu acredito, embora não conviva dentro da física quântica, que tratar desse realismo medieval das coisas que “existem”, é uma necessidade pungente pra avançarmos nesta ciência. Existem muitas dificuldades e às vezes nos entretemos com elas imaginando-as como a razão de existirmos. Mas elas, na verdade, são meras consequências do nosso desconhecimento, das limitações inerentes ao tempo que estamos hoje, 2014. Daqui a dez anos, elas provavelmente nem existirão. Algumas dificuldades, na verdade, não “são”, elas simplesmente “estão”, como decorrência do amadurecimento natural do conhecimento e da tecnologia.

Dentre tudo isso, o que as mudanças climáticas nos oferecem é uma grande oportunidade, de nos perguntarmos se as perguntas que estamos fazendo são as certas. Ou estamos nos contentando com as dificuldades que são inerentes ao tempo? Porque, na realidade, elas passam, e aí, acabamos ficando com nada nas mãos. Nós conseguimos utilizar o desafio que a ciência das mudanças climáticas nos traz para fazer essa aproximação e temos a coragem, a boa vontade, a disposição, de fazermos as perguntas, muitas das quais não têm respostas, e estas, sem respostas, colocam-nas no campo da filosofia. Pelo menos há um campo para colocá-las. A filosofia, entretanto, em alguma hora, terá que cruzar com a engenharia e gerar o conhecimento que consigamos utilizar para outras coisas.

 

Ficha Técnica:

Entrevista
Carolina Cantarino
Daniela Klebis

Direção
Susana Dias

Imagens
Obra Marmetria, de Fernanda Pestana

Roteiro e Captação
Susana Dias
Cristiane Delfina

Montagem
Cristiane Delfina

Realização

Projeto “Mudanças climáticas em experimentos interativos de comunicação e cultura científica” (Processo No. 458257/2013-3)

Projeto “A dimensão humana das mudanças climáticas em experimentações interativas” (Faepex-Unicamp)

Sub-rede de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas

Rede CLIMA

Inpe

Faepex

Labjor — Unicamp

Apoio

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico — CNPq

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação