Cultivar floresta: entre as florestas antropogênicas da indigeneidade e o impulso da agricultura agroflorestal | Gabriel de Araujo Silva


Gabriel de Araujo Silva[1]

 

Florestas antropogênicas: a emergência pela retomada dos saberes dos povos da floresta.

 

Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos (Caminha, 2003).

 

O trecho acima foi retirado da Carta de Pero Vaz Caminha, um dos documentos pioneiros da colonização portuguesa, é datado de 01 de maio de 1500. Ele expressa com clareza a visão do colonizador português sobre a agricultura dos povos originários, que se tornaria hegemônica. Segundo essa, os povos indígenas não teriam técnicas agrícolas, sendo primitivos e ignorantes, contando apenas com a sorte de terem nascido em uma terra especialmente fértil. A realidade é que os povos descritos plantavam levando em consideração o bem estar de toda a vida, incluindo os animais que criavam em liberdade e dos quais se alimentavam. Porém, suas práticas agropecuárias eram tão mais integradas aos processos naturais do que a dos portugueses, que estes não foram sequer capazes de perceber que o que os indígenas faziam era agricultura, assim quando Caminha fala deste “inhame” que a “a terra de si lança”, se refere na realidade a uma planta domesticada em práticas indígenas seculares, que sequer poderia ser consumida sem ser adequadamente cultivada.

Os territórios colonizados foram considerados pelos europeus como terra nullius e domicilium vacuum (Balée, 2008), isto é, como territórios nominalmente inabilitados ou habitados apenas por povos que eram vistos como incapazes de utilizar o território de maneira efetiva. Esses territórios eram vistos como vazios, desprovidos de obra humana significativa, sendo ocupados apenas por “paisagens naturais” que supostamente não seriam produzidas em relação com a cultura humana. Essa visão sobrevive até a contemporaneidade e é historicamente compartilhada inclusive pela esquerda radical. Em seu livro de 1942, Formação do Brasil Contemporâneo, o comunista Caio Prado Jr. afirma que o continente americano antes dos “descobrimentos” seria uma terra “primitiva e vazia” (Prado Jr., 2011, p. 19-21). (Leia o artigo completo em PDF).

 

Recebido em: 15/09/2022

Aceito em: 15/10/2022

 

[1] Graduando em filosofia pelo IFCH-Unicamp. Endereço eletrônico: g235604@dac.unicamp.br

 

Cultivar floresta: entre as florestas antropogênicas da indigeneidade e o impulso da agricultura agroflorestal

 

RESUMO: Este ensaio trata das consequências do avanço do debate em torno das chamadas florestas antropogênicas – a ideia de que florestas como a Amazônia foram e são promovidas também com o cultivo humano dos povos que as habitam. As práticas agrícolas tradicionais indígenas vêm conquistando crescente reconhecimento em relação a cultivar a floresta e promover biodiversidade e melhores condições ecológicas. Trataremos da agricultura agroflorestal, em especial a partir da sistematização técnica de Ernst Götsch como uma das principais consequências da revalorização de práticas agrícolas indígenas tradicionais no Brasil. Neste sentido, serão relatados brevemente os principais empreendimentos empresariais e de assentamentos dos Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na realização de plantios agroflorestais no Brasil contemporâneo que reivindicam a sistematização de Götsch. Por fim, serão feitas considerações sobre as especificidades do cultivar floresta indígena, procurando pensar o campo atual do devir floresta. Devido ao seu caráter profundamente multi especista, o cultivar floresta não pode ser reduzido a práticas estritamente produtivas pois essas pertencem a uma ontologia capitalista onde somente o ser explorador é admitido, gerando uma relação de conflito e guerra com as ontologias ameríndias e com toda outra forma de ser.

PALAVRAS-CHAVE: Floresta. Floresta antropogênica. Indígena. Agrofloresta.

 


Cultivating forest: between the anthropogenic forests of indigeneity and the impulse of agroforestry agriculture

 

ABSTRACT: This essay discusses the consequences of the advance of the debate around the so-called anthropogenic forests – the idea that forests like the Amazon were and are also cultivated by the peoples that inhabit them. Traditional indigenous agricultural practices are gaining increasing recognition in terms of cultivating forests and promoting biodiversity and better ecological conditions. We will deal with agroforestry agriculture, especially from the technical systematization of Ernst Götsch as one of the main consequences of the revaluation of traditional indigenous agricultural practices in Brazil. In this sense, there will be a brief report of the main business ventures and settlements of the Landless Workers’ Movements (MST) in carrying out agroforestry plantations in contemporary Brazil that claim Götsch’s systematization. Finally, considerations will be made about the specificities of the indigenous way of cultivating forest, trying to think about the current field of becoming forest. Due to its profoundly multi-species character, forest cultivation cannot be reduced to strictly productive practices, as these belong to a capitalist ontology where only the exploiter is admitted, generating a dynamic of conflict and war with Amerindian ontologies and with all other forms of being.

KEY-WORDS: Forest. Anthropogenic forest. Indigenous. Agroforestry.

 

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SILVA, Gabriel de Araujo. Cultivar floresta: entre as florestas antropogênicas da indigeneidade e o impulso da agricultura agroflorestal. ClimaCom – Políticas vegetais [Online], Campinas, ano 9,  n. 23,  Dez.  2022. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/susana-dias-florestas/cultivar-floresta/