Carta para X | ClimaCom


Carta para X


Breno Filo Creão de Sousa Garcia[1]

 

 

Imagem Cartas para X

Figura 1 – Banquinho, de Breno Filo. 2017. Acervo pessoal do artista.

Belém, 07 de novembro de 2016

X,

Falo contigo do deserto que um dia foi nossa morada. Aqui, caminhamos em trilhas de sonho e devaneio que, pacientemente, alegremente, tecíamos, enquanto nos amávamos e trocávamos confidências, em claras ações de fuga da cotidianidade, embebidas de um amor inexplicável. Distante e, no entanto, intenso. A paisagem de nosso afeto era rica, e se transmutava a cada alteração de humor nossa, com a influência de alguma viagem recente, e mesmo alguma referência literária… como esquecer de quando ficamos sós, desnudos, cobertos somente por uma pesada manta vermelha, sobre aquela árvore ressecada, em neve? Um afeto tão complexo quanto a imaginação de quem nunca viu neve na vida, mas eu certamente faria questão de compartilhar essa experiência contigo, mesmo hoje. Hoje encontro uma árvore indiscernível, as matas ricas, as tartarugas e as encantarias de seu entorno também estão secas, mortas, causticadas. Cobertas de areia. Sol escaldante.

 

Como vai?

 

Sabe, tenho ido bem, apesar dos rodeios e solavancos que a vida dá. Recentemente, me surpreendi agindo feito um tonto, me enclausurando à toa, como quem nunca tivesse enfrentado mundos e fundos em nome do amor. Da liberdade de se permitir ser quem se é. Esse discurso pode parecer esquisito para ti. Um fantasma emocional estava a me rondar, talvez por ter largado de mão alguns hábitos que me são de muito valor: não tenho mais jogado jogos interpretativos, e há muito tempo não viajo com meus amigos para a praia. Mau-mau está por aí, inclusive. Lis, volta e meia, também floreia pelas bandas daí. Tens visto eles? Ando isolado. Isolado em solidões povoadas, outras solidões. Um novo amor que me dói de tão grande e misterioso. Novas presenças, encarnadas e oníricas, também têm me encontrado, e trocado muitos afetos. Poéticos inclusive. Uma festa de sonhos, regados a cerveja às vezes, outras ilicitudes também, nas quais me sinto esquisito, em fastio.

 

Daí venho caminhar por aqui.

Me pergunto se tens vindo também.

Talvez já estejas em outro ponto,

de tão inóspitos que nos encontramos. Esse lugar.

Já foi banco de praça, cascatinha. Fomos.

Era bem pequeno, era suficiente.

 

As vezes esbarro com a circunstâncias, tomo chá com elas. Elas imperam neste lugar, e delas nos deixamos escravizar em certo momento. Tu recordas? Lidávamos com elas como que numa farsa muito bem montada. A elas dirigíamos toda a dor e repulsa por não estarmos juntos, e por darmos nomes e formas a elas, achávamos que tínhamos certo domínio sobre elas. Inocentes que éramos! Hoje as reverencio, e finalmente entendi a força delas. Eu precisava ultrapassá-las, assim como você certa vez o fez, e quebrou o tabu imposto por elas, me encontrando, finalmente. Antes disso, flertávamos com a distância e com a espera, artigos raros hoje em dia, trocando mimos, cartas e bilhetes via correio. Você sempre mais decidido, no limite do possível. Eu, rarefeito, me perguntando, me questionando, necessitado de carnalidades. Tolo que fui, devastei-te. Devastei nossa rica El Dorado. Esvaziei-me.

 

Terminei, terminamos.

Amei-te, e sou eternamente grato pelo teu amor.

Estou aqui para semear este lugar de novo, espero que não se importe.

Desse nosso amor, acredito que tivemos grandes aprendizados.

Com as coisas da vida, construindo uma vida de sonho.

Quero muito transmutar essa memória,

Esse sentimento grandioso.

Com o poder agir no mundo.

Construir mundos.

 

Hoje me permito dizer, sempre que eu encontrar um novo lugar, e pessoas com quem compartilhar, amar, curar… para cá estarei trazendo ela, e com esta carta, lhe convido a fazê-lo também. Ou que venha visitar, ao menos, poxa. Quero cultivar outras formas de viver nesse lugar, que não somente pelos fantasmas do passado, mas pelas ações do presente e os projetos para o futuro. Os tais porvires, tão misteriosos!

Varrer a estradinha, limpar o banco da praça, mergulhar na cascatinha. Se falei, existe de novo. Ainda há deserto, ainda há neve também, as terras se dobram, desdobram. Praias, areia branca, bancos de argila branca, roxa, vermelha, falésias, raízes que sobem mais alto que os bancos de areia, mangueiras, percevejos, pés de maracujá, aranhas caranguejeiras com patas azuis, espadas de São Jorge, tatus atravessando o caminho de piçarra, árvores altas, copas entrelaçadas, escadarias que vão do nada ao nada, pontes, casebres vazios, barcos cheios de gente, pizza, salsicha, pescada frita, mapará na brasa, limãozinho, cheiro de umidade, amanhecer em neblina, frio matinal, porcos encantados que encaram e reverenciam.

 

Um lugar grande, mas pequeno a ponto de caber num envelope, numa fibra vegetal.

Que esta carta seja o marco dos nossos encontros.

E dos muitos importantes encontros a atravessar nossas vidas.

Te saúdo, meu querido.

 

 

Breno Filo

 

 

Recebido em: 30/01/2017

Aceito em: 15/02/2017

 


 

[1]Mestrando em Artes no Programa de Pós-Graduação em Artes ( PPGARTES), da Universidade Federal do Pará (UFPA). Contato: brenofilo@gmail.com

 Carta para X

 

 

RESUMO: Um e-mail recebido, há muitos anos, me falava de um amor excruciante de tão intenso. Algo que havia se tornado impossível, de minha parte. Foram signos dolorosos, tramados virtualmente, sob os auspícios de uma relação distante, e recebidos covardemente. Signos amorosos que ficaram sem resposta, até certo tempo atrás. Sem uma resposta que, ao menos mencionasse, o grandioso mundo que inventamos para nos amarmos perdidamente. De uma engenhosa paisagem do passado, restou o pó. Grãos perduraram, materializando uma esperança e fazendo do amor uma relação com o escorrer do tempo. Com o envio desta carta, num exercício de coragem, tento dar outra vida para este lugar. Lugar reinventado para experimentar outras formas de cultivo do bem querer e do estar junto.

PALAVRAS-CHAVE: Tempo. Afeto. Estar junto.


Letter to X

 

ABSTRACT: An email I received many years ago told me about an excruciating love so intense. Something that had become impossible on my part. They were painful signs, virtually hatched, under the auspices of a distant relationship, and received cowardly. Signs of love that went unanswered, until some time ago. Without an answer that, at least mention, the great world we invented to love ourselves hopelessly. From an ingenious landscape of the past, the dust remained. Grains lasted, materializing a hope and making love a relationship with the flow of time. By sending this letter, in an exercise of courage, I try to give another life to this place. Place reinvented to try other ways of cultivating good will and being together.

KEYWORDS: Time. Affect. Being together.