Entre imagens, corpos e terra: transformações do MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin


Amilton Pelegrino de Mattos [1]

 

 

Cosmopolítica

Em A proposição cosmopolítica, Isabelle Stengers escreve que esse termo, cosmopolítica, apareceu-lhe em um momento em que ela precisava desacelerar. Penso que a compreensão do termo e da proposição, junto com o que ela chama de desacelerar, deva se dar necessariamente num movimento de contextualização da obra da autora que não me vejo (ainda) capaz de fazer. Porém, como a chamada nos convoca a confrontar uma cosmopolítica da imagem, enfrentemos o desafio, ainda que com algumas breves e iniciais considerações.

Em No tempo das catástrofes, Stengers descreve e tece considerações sobre uma série de práticas de conhecimentos não científicas que resistem em nossa sociedade tecnocrática, bastante hostil à participação de não especialistas na solução de problemas comuns. Referindo-se a seus trabalhos anteriores, escreve a autora:

Escrevi muito sobre as ciências, e, notadamente, contra sua identificação com uma abordagem neutra, objetiva, racional, enfim. Não se tratava de atacar as práticas científicas, mas de defendê-las contra uma imagem de autoridade alheia ao que constitui sua fecundidade e sua relativa confiabilidade (STENGERS, 2015, p. 63).

Se bem compreendo o trecho citado, para Stengers o movimento dos saberes e das práticas minoritárias de conhecimento devem redefinir o que entendemos por ciências. Porém, diante da variedade ou multiplicidade de saberes minoritários que tensionam e redefinem constantemente as práticas científicas, uma mesma noção de política parece não ser suficiente.

The word cosmopolitical came to me in a moment when, gripped by worry, I needed to slow down. I was facing the possibility that, in all good faith, I was in danger of reproducing that which I’d learned – since I’d started thinking – was one of the weaknesses of the tradition to which I belong: transforming a type of practice of which we are particularly proud into a universal neutral key, valid for all. I had already devoted many pages to “putting science into politics”. The so-called modern sciences appeared to be a way of answering the political question par excellence: Who can talk of what, be the spokesperson of what, represent what? But there was a risk of me forgetting that the political category with which I was working was part of our tradition and drew on the inventive resources peculiar to that tradition (STENGERS, 2005, p. 995).

 

Mesmo experiências como as de “ciência cidadã”, de pouca relação com a antropologia, ainda que assentadas em práticas, parecem padecer da perspectiva de tal cosmopolítica, de um mesmo horizonte cosmopolita que a autora denuncia ainda nessa disciplina: anthropology is also us. Desde um olhar de fora da disciplina, vê-se a antropologia como parte do esforço político de reduzir o caosmos a um cosmos ordenado e consensual, perigo que, aliás, ainda segundo Stengers, assombra qualquer proposição cosmopolítica.

Seja falando de feitiçaria, de práticas de conhecimento de pessoas comuns, de animismo, de cosmopolítica, Stengers nos oferece uma perspectiva que não é a antropológica, mas a de uma filosofia das práticas científicas menores, uma ecologia dos saberes minoritários. Saberes minoritários que são a pedra de toque do pensamento anti-epistemológico de Michel Foucault e que Deleuze e Guattari inscrevem no Tratado de nomadologia, em Mil platôs (2012). É nesse sentido que entendo, conforme Marcio Goldman[2], a cosmopolítica de Stengers como um princípio de precaução, um problema para desacelerar nossa vontade de política e consenso.

Diante de um cenário de limite em relação às condições ambientais do planeta que eclode concomitante ao globalismo financeiro e que ganha novo sentido ao tornar-se um “saber comum” (STENGERS, 2015, p. 9), é de se esperar que o Capitalismo faça disso também uma oportunidade de negócios. Assim, os índios, antes (e ainda) condenados ao desaparecimento junto com a floresta, tornam-se os novos parceiros na solução dos problemas que nós criamos. A isso na Amazônia se dá hoje o nome de pagamento por serviços ambientais.

E não é preciso grande esforço para ver essa mais valia em muito da cosmopolítica que circula no mercado discursivo, antropológico ou não. Daí, talvez, a necessidade de um princípio de precaução que desacelere um cosmopolitismo inclusive interespecífico. Afinal, como testemunha Eduardo Viveiros de Castro, o perspectivismo ameríndio também pode virar esquema actancial para propaganda da Petrobrás[3].

 

 

Imagem

Ao falar de cosmopolítica da imagem, portanto, refiro-me, no que diz respeito ao primeiro termo, a esse princípio de precaução, isto é, enquanto tratamos os problemas da diferença nos termos restritos da “política” vamos continuar a reconduzi-la à identidade, a reduzi-la ao mesmo. Ao articulá-lo com o segundo, cosmopolítica da imagem, entendo que o processo de transformação das imagens que se inscreve adiante não pode ser definido senão como uma escrita que seja a sua própria. Definir uma imagem se coloca aqui como um problema estético, de um paradigma estético no sentido que dá Guattari (1992) à expressão, o qual não se define a não ser numa prática.

Ao inscrever-me nas práticas de invenção e transformação das imagens do Movimento dos Artistas Huni Kuin, penso poder falar de uma escrita, uma escrita que se transforma e se articula em três escritas: escrita das imagens, escrita dos corpos, escrita da terra.

A escrita de que se trata não é uma escrita significante, mas uma escrita maquínica. Uma escrita que opera pela transformação e desdobramento das imagens.

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Figura 1 – Desenho de huni meka de de Isaka Huni Kuin (Menegildo Paulino)

A escrita das imagens

Em 2009, no âmbito da Licenciatura indígena da UFAC – Floresta (Cruzeiro do Sul, Acre), passei a orientar as pesquisas de Ibã Huni Kuin que ingressava como acadêmico, trazendo então para a universidade um longo trabalho de pesquisa desenvolvido principalmente junto a seu pai, Tuin Huni Kuin.

Tendo por base essas atividades de orientação, demos início ao projeto de pesquisa “Espírito da floresta”, que se concentra nos problemas colocados pela articulação dessa pesquisa dos cantos huni meka, cantos de ayahuasca, com os saberes da pesquisa acadêmica.

Nesse mesmo ano, viajando pelas aldeias huni kuin com seu filho Bane, passei a dar-me conta da importância do desenho para ele em seu dia a dia. Lembro que na ocasião participamos de uma assembleia na qual Bane, enquanto falava aos presentes, ia mostrando um caderno com desenhos que ilustravam seu discurso.

Enquanto amadurecíamos e buscávamos meios de pesquisar que não fossem aqueles que Ibã já lançara mão em sua formação no magistério, tais como a compilação de cantos na escrita e a gravação de áudios, passamos a utilizar o vídeo para gravar os seus relatos de pesquisa. Uma das questões que se colocava então era como criar um procedimento que envolvesse os jovens, que envolvesse um coletivo na pesquisa.

Desse modo, quando Ibã me apresenta os primeiros desenhos de Bane dos cantos huni meka, ele já traça linha de fuga própria a um pensamento e uma pesquisa huni kuin. Passamos a fazer então pequenos vídeos em que Ibã canta e “explica” ou “põe no sentido” os desenhos, enquanto eles podem ser vistos na tela, vídeos que passam a circular na web[5].

Pensando em envolver outros pesquisadores huni kuin na atividade, passamos a projetar um encontro de jovens desenhistas para, entre outras coisas, desenhar os cantos e podermos fazer novos vídeos. Escrevi o projeto em 2010 e em 2011 estávamos realizando o I Encontro de Artistas Desenhistas Huni Kuin, realizado na Terra Indígena Seringal Independência e coordenado por Bane e Ibã.

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Figura 2 – Txana Kixtin durante I Encontro de Artistas Desenhistas Huni Kuin, 2011.

 

O material produzido no Encontro foi exposto alguns meses depois na cidade de Rio Branco, na exposição Desenhando os cantos do Nixi Pae. Os desenhos, fotos e vídeos da exposição foram divulgados em nosso site[5]. Pouco tempo depois recebemos o contato do antropólogo Bruce Albert, propondo uma visita aos artistas huni kuin em sua aldeia acompanhado de Hervé Chandés, diretor da Fundação Cartier para a arte contemporânea. A visita tratava do convite aos artistas para a exposição coletiva Histoires de Voir, que aconteceria em maio de 2012.

Realizamos então para a exposição em Paris um filme que foi intitulado O espírito da floresta[6] e que era exibido na sala ao lado do espaço em que se encontravam os desenhos huni kuin.

Foi a partir dessa experiência de exposição dos desenhos e exibição do vídeo que, ainda em Paris, Ibã e eu passamos a trabalhar com a artista Naziha Mestaoui para que o trabalho pudesse ir além dos desenhos, envolvendo o público e os artistas em experiências sinestésicas e interativas.

No Brasil, de volta de Paris, reunimo-nos ainda em 2012 com os demais artistas que, junto com Ibã, propuseram a criação de uma associação de artistas huni kuin, que passou a se chamar MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin.

Com Naziha e o MAHKU, escrevemos projetos em 2012 e 2013, mas foi apenas em 2014 que pudemos realizar a instalação Sounds of Light em São Paulo na exposição Feito por brasileiros, na Cidade Matarazzo.

Na ocasião os artistas do coletivo compuseram a instalação com murais que cobriram as altas paredes de uma das entradas do antigo hospital. A instalação se completava com um espelho d’água projetado numa tela cuja água vibrava ao som da voz de Ibã ecoando um huni meka em um som ambiente.

Finalizada essa experiência de pintura mural, realizei entre 2014 e 2015 o filme O sonho do nixi pae[7], que acompanha toda a trajetória de pesquisa do coletivo e a constituição do MAHKU até aquele momento.

A partir de 2014, o trabalho de pintura mural vai se estabelecer como importante meio de expressão visual do movimento, sempre realizado de maneira coletiva. Em 2015 foi realizado um mural na UFAC, Campus de Rio Branco. Em 2016 o grupo realizou um mural na USACH, Universidade de Santiago do Chile. Em 2017, foram dois Projetos Parede. O primeiro foi realizado no SESC Palladium, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Outro Projeto Parede foi o do MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo, projeto que acontece paralelamente ao Panorama da Arte Brasileira.

 

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Se desde 2012, após a exposição na Fundação Cartier, passamos a buscar formas de colocar a interagirem público e artistas, guiados inicialmente pela experiência de exibição dos filmes, mas principalmente por aquela experiência seminal do encontro de artistas huni kuin na aldeia, pelas apresentações musicais com exibição de desenhos e pelas apresentações acadêmicas da pesquisa, foi em 2013 que tivemos um grande momento.

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Figura 3 – LAP no MASP – Exposição Histórias da Infância, 2016. Foto: Fernanda Lenz.

 

Trata-se de nosso encontro com as crianças da Escola de Música de Rio Branco. Na verdade, nosso encontro poderia ser chamado de desencontro, pois não estávamos preparados para tal. Levamos nosso filme, desenhos, conversa e cantos e nada disso impressionou nossos anfitriões. Porém, ao final, quando tudo parecia perdido, Ibã nos convidou para uma dança no pátio da escola e aqueles pequenos corpos que pareciam tão mal acomodados nas cadeiras enormes da sala de aula passaram a correr e brincar pelo espaço do pátio, aquecendo-se para a dança. Foi com a dança que falamos a mesma língua: cantos, risos, gritos, brincadeira, corpos conectados em movimento.

Em 2016, o MAHKU foi convidado para ministrar uma oficina de desenhos no MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, por ocasião da exposição Histórias da Infância. Como parceiro do coletivo, fui consultado a respeito da metodologia e lembrei a experiência da Escola de música, três anos antes. Decidimos que trabalharíamos a dança do katxa nawa, apresentando a cultura huni kuin para os jovens através do ritual da fertilidade em que o povo invoca os espíritos dos legumes. Foi a partir dessa experiência de cantar-chamar, vestir-se, ver, dançar, transformar-se e desenhar os espíritos dos legumes que passamos a denominar nossas oficinas de Laboratórios de Arte e Percepção.

O nome LAP se explica devido aos laboratórios estarem voltados para práticas de percepção mediadas pela arte. A música, a dança, o desenho são atividades que transformam os corpos e as percepções, seja no cotidiano, seja nos ritos de passagem coletivos do povo huni kuin. A ideia de enfocar processos de transformação e percepção nos Laboratórios, que eram inicialmente essas atividades propostas pelo MAHKU aos públicos de museus, espaços culturais e universidades, deu-se pela origem da pesquisa e expressão artística ter como fonte os cantos visionários do nixi pae, termo com que os huni kuin chamam a ayahuasca.

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Figura 4 – Laboratório de Arte e Percepção no MAM – SP. Foto: Karina Bacci.

 

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Os Laboratórios de Arte e Percepção tiveram origem ainda como desdobramento das apresentações das pesquisas do projeto Espírito da floresta em espaços acadêmicos. Foi assim que, em 2015, propusemos um laboratório de canto no Simpósio de Pós-Graduação em Linguagens e Identidades da UFAC, que nesse ano era dedicado às línguas e literaturas indígenas. Como parte da proposta, firmamos uma parceria com o Coral da UFAC, coordenado pelo professor Domingos Bueno Silva. Durante uma semana os cursistas e o Coral aprenderam e ensaiaram dois cantos huni meka no mesmo auditório em que os artistas do MAHKU, Bane (Cleber Sales), Maná (Pedro Macário) e Isaká (Menegildo Paulino), realizava um mural de mais de 20 metros. Os cantos foram executados pelos cursistas e pelo Coral da UFAC diante do mural como parte da mesa de encerramento do Simpósio que foi composta ainda de apresentação do filme O sonho do nixi pae (2015) e conferência de encerramento com os integrantes do MAHKU.

Essa experiência de fazer arte e pesquisa “com pessoas dentro” foi bastante estimulante para o grupo e abriu toda uma nova perspectiva de trabalho, incluindo uma nova perspectiva para o trabalho com as imagens.

O Laboratório de canto de 2015 foi ministrado por Ibã. No Laboratório de desenho realizado no MASP, em 2016, participaram como orientadores Ibã, Bane e Maná. Ainda em 2016, o projeto Espírito da floresta realizou em parceria com o PPGLI – UFAC o Seminário de linguagens e culturas indígenas, onde o MAHKU ministrou três Laboratórios de Arte e Percepção: tecelagem, canto e pinturas corporais. O Laboratório de tecelagem foi ministrado por Nasheani (Rosália Sales), o de canto por Tuin (Cleudo Sales) e o de pinturas corporais por Yaka (Edilene Sales) e Dani (Rita Sales).

Figura 5 – Laboratório de Arte e Percepção no MAM – SP. Fotos: Karina Bacci.

 

Em 2017, o coletivo ocupou o SESC Palladium em Belo Horizonte com o projeto Movimento. Além de realizar o Projeto Parede, pintando um mural de 10 metros, os artistas do MAHKU, Ibã, Maná (Pedro Macário) e Tuin (Acelino Sales), ministraram quatro Laboratórios de Arte e Percepção voltados para públicos diversos: crianças e jovens, professores e artistas. Além dos LAP ministrados pelos artistas, foi oferecido um Laboratório de molas (arte têxtil) ministrado por Nasheani (Rosália Sales) em parceria com a professora, antropóloga e artista Célia Collet.

Ainda em 2017, ministramos dois LAP no MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo, com jovens e artistas/professores, ocasião em que o MAHKU fora convidado a executar o Projeto Parede no 35º Panorama da Arte brasileira, com um mural de 18 metros.

Para finalizar, numa parceria do MAHKU com o LADA – Laboratório de Design e Antropologia (ESDI) e o LABI – Laboratório de Imagem e Som (UFAC) realizamos em outubro de 2017 na ESDI – Escola de Desenho Industrial da UERJ dois Laboratórios de Arte e Percepção: um LAP de Canto e outro de Experimentação visual. No curso livre de canto foram estudados por meio de pronúncia, cantos e traduções dois huni meka. No último dia o grupo de cursistas fez uma participação num concerto musical dado por Ibã e banda. O curso de experimentação gráfica contou com a participação dos pesquisadores da Escola. Junto com a professora Zoy Anastassakis, diretora da ESDI e coordenadora do LADA, Ilana Paterman, animadora e designer, e Beta, responsável pelo Colaboratório de Artes gráficas da ESDI, estendemos o LAP de canto-dança e desenho com os yuxin dos legumes para a composição de livros animados (flip books).

 

A escrita da terra

Em 2014, por ocasião da exposição Feito por brasileiros, foi vendida uma tela do coletivo. O recurso levantado com apoio da artista Naziha Mestaoui foi destinado por Ibã à compra de uma terra nas proximidades do município de Jordão. Nas palavras de Ibã: vende a tela, compra a terra.

Adquirida a terra em 2015, o coletivo, que já vinha num árduo exercício de definição de si, isto é, do que consiste um coletivo de artistas huni kuin num contexto bastante complexo como o que estão inseridos, passa a pensar também no sentido de uma terra que foi denominada por Ibã de Centro MAHKU Independente.

O que será o Centro MAHKU Independente? Trata-se de uma escola de artes? De um centro de pesquisas e intercâmbio de saberes?

Desde 2015, no papel de parceiro institucional do coletivo via universidade, fui convidado pelo grupo a pensar conjuntamente aquilo a que Ibã tem dado diversos nomes, fiquemos com o de pedagogia huni kuin.

Os Laboratórios de Arte e Percepção tem sido assim uma dimensão do Centro MAHKU Independente. Em grande parte, o objetivo dos LAP é que o coletivo possa desenvolver projetos de intercâmbios com outras escolas, universidades e centros de pesquisa.

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Figura 6 – Centro MAHKU Independente.

 

Dadas as tensões que passamos no município nos últimos anos, principalmente depois da aquisição da terra, em 2016 entendemos que se tratava do momento do trabalho do MAHKU ser mais conhecido no município de Jordão. Foi então que planejamos a primeira ação do Centro MAHKU Independente (CMI) na região. O curso foi voltado para jovens não-indígenas estudantes da escola estadual de ensino médio. Aproveitamos para casar essa ação com a primeira residência artística promovida pelo CMI, dos artistas Bruno Novelli e Luísa Brandelli. Em 2017, então, aconteceu o primeiro curso de pintura mural realizado pelo Centro MAHKU Independente em parceria com o projeto Espírito da floresta da UFAC – Floresta no município de Jordão.

 

O problema da escrita

A construção de um problema é a construção de uma escrita, uma escrita é um problema. Problema do escritor: fabricar para si sua língua[8].

Nosso trabalho começa com a definição de um problema. Esse problema pode ter muitos nomes e ser entoado em idiomas distintos: o que é uma pesquisa? O que é uma pesquisa huni kuin? Como pesquisar os huni meka (cantos de ayahuasca) na universidade? O que são afinal os huni meka? Para que serve uma pesquisa? Que tipo de aliança pode ser feita? Como se dá um encontro? O que é um diálogo de conhecimentos?

Comecemos por esse último com a intercessão do filósofo Gilles Deleuze – o que é uma conversa, para que serve? – que articula as questões da conversa e do problema com as questões da escrita e do devir que nos interessam desenvolver adiante.

É difícil “se explicar” – uma entrevista, um diálogo, uma conversa. A maior parte do tempo, quando me colocam uma questão, mesmo que ela me interesse, percebo que não tenho estritamente nada a dizer. As questões são fabricadas, como outra coisa qualquer. Se não deixam que você fabrique suas questões, com elementos vindos de toda parte, de qualquer lugar, se as colocam a você, não tem muito o que dizer. A arte de construir um problema é muito importante: inventa-se um problema, uma posição de problema, antes de se encontrar a solução. Nada disso acontece em uma entrevista, em uma conversa, em uma discussão (DELEUZE, 1998, p. 9).

Deleuze articula duas questões que nos interessam: a conversa e o problema. A conversa versus o problema. Não se constrói um problema numa conversa ou diálogo, pode-se dizer. Diferentemente, um problema, como veremos, é uma questão de devir.

O diálogo, noção duvidosa, como imagem de nossa metafísica da conversão, do consenso, da política, da diplomacia, em suma da colonização, do monoteísmo e do mononaturalismo. É essa imagem da conversa que o autor parece evocar no texto citado, o qual abre o livro intitulado justamente Diálogos.

Contra essa imagem, como se sabe, interpõe-se outra, uma outra imagem da relação de alteridade e da relação de conhecimento: aquela mediada pela relação de afinidade, afinidade como ponto de articulação com a alteridade.

Como nos contou Ibã na ESDI/UERJ ao relatar, durante um dos laboratórios, o mito de origem do nixi pae e dos cantos huni meka, a relação ou aquisição de conhecimento está quase sempre associada à relação de afinidade. Ainda que não envolva a afinidade, a relação de conhecimento se associa também outros elementos que acompanham a relação de afinidade, como a traição, o roubo, o canibalismo, a predação. O mito do kape tawã, o jacaré ponte, outra narrativa contada por Ibã, confirma isso.

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Figura 7 – Kape tawã – Desenho de Isaka Huni Kuin (Menegildo Paulino), 2014.

 

“Toda a música de dentro da floresta tudo é oração, tudo ligado … tudo ligado nós recebemos. Uma [música] traz só legumes, uma outra traz só sabedoria dos animais. Quando vai viajar para outro lugar, já tem outra música. Então a ponte do jacaré, tem o desenho do jacaré, é o mito dos animais, o mito que nós estamos encontrando dentro dos animais, nós falamos com os animais, começa seguindo, viajando, falando na floresta, encontramos os animais falando mesmo língua que nós estamos falando. O jacaré… tem muitos povos atravessando outro continente, rabo no outro continente, ligado com outro continente, como diz, Estreito de Bering. Então essa história. Essa história o jacaré no meio, ponte. Todo povo atravessando, não tem como atravessar para o outro continente. O animal falando: Quer atravessar nas minhas costas? Vamos trocar? Pedindo isso: Mata caça grande, joga na boca, você pode atravessar. Então tem música que deixou. Cantando. Ah tá… senão não vai passar não. Mataram o que ele está pedindo, atravessando. Essa oração muito muito (antiga) por isso é muito forte essa oração que nós temos. Hoje não é mais animal que canta, hoje nós que canta. A força ficou, nós misturamos com esses animais” (IBÃ, aula para alunos da Escola Superior de Desenho Industrial, outubro de 2017).

Seja no mito-canto do kape tawã, o jacaré ponte, seja em outra narrativa contada por Ibã nos LAPs que ministrou na ESDI em outubro de 2017, o mito de origem do nixi pae, temos relações de alteridade e aquisição de conhecimentos e troca de favores com animais marcados por histórias de traição, roubo, mistura e casamento, afinidade, canibalismo. Definitivamente para os huni kuin, a aquisição do saber não está ligada ao diálogo, a uma relação cosmopolita. Também não consiste numa relação que se dá entre si na forma da identidade, ela está diretamente associada à alteridade e não a qualquer alteridade, mas a alteridade interespecífica.

Os estudos etnológicos da alteridade extraíram da noção de afinidade o que ficou conhecido como uma metafísica da predação, metafísica canibal se preferirmos. Nessa outra imagem do encontro – que não uma entrevista, um diálogo, uma conversa – poder-se ia dizer, com Foucault que em lugar da guerra ser a política com outros meios, trata-se aqui da política ser a guerra com outros meios. Essa imagem condiz seja com o devir, alternativa deleuziana ao diálogo, seja com a descrição que o autor de sua dinâmica de composição com Félix Guattari.

Meu encontro com Félix Guattari mudou muitas coisas. Félix já tinha um longo passado político e de trabalho psiquiátrico. Ele não era “filósofo de formação”, mas tinha, por isso mesmo, um devir-filósofo, e muitos outros devires. Ele não parava. Poucas pessoas me deram a impressão de se mover a cada momento, não de mudar, mas de se mover todo por meio de um gesto que ele fazia, de uma palavra que dizia, de um som de voz, como um caleidoscópio que a cada vez faz uma nova combinação. Sempre o mesmo Félix, mas cujo nome próprio designava alguma coisa que se passava e não um sujeito. Félix era um homem de grupo, de bandos ou de tribos, e, no entanto, é um homem sozinho, deserto povoado de todos esses grupos e de todos seus amigos, de todos seus devires. Trabalhar a dois, muitos trabalharam, os Goncourt, Erckmann-Chatrian, o Gordo e o Magro. Mas não há regras, fórmula geral. Eu tentei em meus livros precedentes escrever um certo exercício do pensamento; mas descrevê-lo ainda não era exercer o pensamento daquele modo. (Do mesmo modo, gritar “viva o múltiplo”, ainda não é fazê-lo, é preciso fazer o múltiplo. E tampouco basta dizer: “abaixo os gêneros”, é preciso escrever, efetivamente, de tal maneira que não haja mais “gêneros” etc.) Eis que, com Félix, tudo isso se tornava possível, até mesmo se fracassássemos. Éramos apenas dois, mas o que contava para nós era menos trabalhar juntos do que esse fato estranho de trabalhar entre os dois. Deixávamos de ser “autor”. E esse entre-os-dois remetia a outras pessoas, diferentes tanto de um lado quanto do outro. O deserto crescia, mas povoando-se ainda mais. Não tinha nada a ver com uma escola, com processos de recognição, mas muito a ver com encontros. E todas essas histórias de devires, de núpcias contra natureza, de evolução a-paralela, de bilinguismo e de roubo de pensamentos, foi o que tive com Félix. Roubei Félix, e espero que ele tenha feito o mesmo comigo. Você sabe como trabalhamos; digo novamente porque me parece importante: não trabalhamos juntos, trabalhamos entre os dois. Nessas condições, a partir do momento em que há esse tipo de multiplicidade, é política, micropolítica. Como diz Félix, antes do Ser há a política. Não trabalhamos, negociamos (DELEUZE, 1998, p. 24-5, grifo nosso).

 

Assim como Eduardo Viveiros de Castro comparou a afinidade virtual ao que Deleuze chamou de “estrutura outrem” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 34 e cap. 12), penso que é possível aproximar o que o autor chama na passagem acima de trabalhar entre, com as práticas de transformação das imagens que pretendo apresentar aqui ao problematizar uma cosmopolítica da imagem.

Como vemos na citação, a construção de uma escrita coloca de saída um problema político (o que aqui, como veremos, se desdobrará num problema antropológico): quem é quem? Trata-se, antes do problema de quem fala, do problema de quem é quem, isto é, o que é um autor. Se já tínhamos um problema – o que é uma escrita –, agora são dois – o que é um autor. Ou, segundo Deleuze, deixar de ser autor.

O problema da autoria é também um problema de autoridade. Lembro que Stengers coloca esse problema como chave da sua virada cosmopolítica, como momento central da sua problematização da noção de política em seu trabalho com a ecologia das práticas de conhecimento. Volto a citar a autora:

I had already devoted many pages to “putting science into politics”. The so-called modern sciences appeared to be a way of answering the political question par excellence: Who can talk of what, be the spokesperson of what, represent what? But there was a risk of me forgetting that the political category with which I was working was part of our tradition and drew on the inventive resources peculiar to that tradition (STENGERS, 2005, p. 995, grifo nosso).

E, para isso, segundo ela, mesmo a antropologia (anthropology is also us) não lhe oferecia uma outra imaginação, figuração ou escrita.

Portanto, não se trata de simplesmente problematizar a política nos limites de nossa tradição, é preciso ir além, ou aquém, ou por entre. E o problema político da autoridade torna-se então um problema cosmopolítico de autoria.

Para escapar do risco de uma conjugação política democratizante do diálogo, da conversa, do fazer-com, em que as questões e problemas já estão dados de antemão, entendo ainda que o que se coloca como alternativa não seria uma inversão, isto é, um fazer-contra, uma resposta ou uma reação. Se não se trata de trabalhar junto, de fazer-com, também não se resolve a questão, como poderíamos pensar dialeticamente, com um fazer-contra. Como dizem os autores do Rizoma: “Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 1995, p. 17).

Nem escrever-com, nem escrever-contra. O que parece atravessar as escritas da imagem, dos corpos e da terra, suas práticas e suas transformações, é um escrever-entre. Aqui, escrever entre dois é escrever entre muitos. “Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados multiplicados.”(p. 17) Escrever entre dois ou três não importa, ou melhor, escrever-entre ganha um novo sentido: cada qual escreve entre os seus.

Quando escrevemos somos matilhas. Como diz Foucault:

[…] não é a mesma relação que existe entre o nome de Nietzsche por um lado e, por outro, as autobiografias de juventude, as dissertações escolares, os artigos filológicos, Zaratustra, Ecce Homo, as cartas, os últimos cartões postais assinados por ‘Dionysos’ ou ‘Kaiser Nietzsche’, as inumeráveis cadernetas em que se misturam notas de lavanderia e projetos de aforismos (FOUCAULT, 2002, p. 27).

 

A transformação das imagens

Uma escrita das imagens, como vimos, emerge do confronto com um problema: Ibã chega à universidade com sua pesquisa e seus conhecimentos nativos em torno do nixi pae e dos cantos da ayahuasca huni kuin. O que pode acontecer nesse encontro entre a universidade e o conhecimento huni kuin? De que modo o saber huni kuin se pode deixar conhecer? Como esse conhecimento pode afetar a universidade e seus modos de pesquisar? Que método e que escrita podem criar plano de expressão para esse saber visionário?

A escrita das imagens sonhada por Ibã e Bane, e mais tarde por muitos outros, consistiu num primeiro momento na transformação da poética dos cantos em desenhos. Essa escrita se estende a todas as atividades que o coletivo realiza com as imagens. As práticas de conhecer e pesquisar, que entre os huni kuin não se desvinculam de uma estética da percepção apta a captar a fluidez da forma, passam a se dar então no MAHKU não só pela imagem como também pela transformação da imagem.

Mas a imagem também se transforma a revelia dos artistas huni kuin. O desenho exposto na parede do museu, que justamente transformou os huni kuin em artistas, servirá para evidenciar a necessidade de se criar um caminho outro para a transformação da imagem. A imagem que, como vimos, emerge num movimento de problematização e criação, escrita de invenção e agenciamento maquínico foi capturada e congelada ao tornar-se objeto de arte.

Essa captura, cujo fim parece ser a codificação significante a ser lida e traduzida pelos antropólogos e especialistas na arte primitiva (ainda que sejam de Paris), consistirá então num ponto de partida, de problematização na transformação da escrita da imagem, da prática de invenção a partir da imagem que definirá o coletivo.

A escrita das imagens se articula à escrita dos corpos. Isso já estava dado desde o Encontro de artistas huni kuin que dá origem ao MAHKU: o coletivo reunido transformando cantos, poesia, hantxa kuin (idioma huni kuin), mas também sonhos, mirações, percepções e devires-imperceptíveis suscitados pelo universo visionário do nixi pae em imagens no papel.

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Figura 8 – Mural realizado pelo MAHKU na Universidade de Santiago do Chile, 2016.

 

Ensinar a “ver”, ou melhor, colocar os sentidos e percepções dos brancos a serviço de uma prática de invenção com imagens. É isso que se dá a partir dos murais e instalações e que culmina com os Laboratórios de Arte e Percepção (LAP). Aqui mais do que nunca se trata de escrever-entre.

A escrita dos corpos, que se inicia com as primeiras instalações em que o grupo colabora e que visam envolver os participantes na experiência visionária, consolida-se com os LAP, que consistem nas práticas de criação coletiva realizadas pelo MAHKU em universidades, museus e centro culturais. Articulando canto, dança, desenhos, pinturas, murais, design, entre outras, as práticas de conhecimento mediam o contato com os saberes visionários huni kuin.

Com a escrita dos corpos, trata-se agora de transformar a imagem em suporte para as experiências com os corpos, com os sentidos, com a percepção dos não indígenas interessados em conhecer o trabalho do MAHKU. O desenho-objeto, a imagem-objeto do mundo artístico interessa menos aos huni kuin do que seu projeto de pesquisa, de criação, de apropriação e travessia por entre os corpos dos brancos, em suma, suas práticas de transformação da imagem.

 

 

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Figura 9 – Retratos dos Yuxin. LAP no MAM – SP. Fotos: Karina Bacci.

 

Cantar-dançar entre os Yuxin, desenhar o que se entreviu. Corpos são suportes para a travessia de outros. A escrita dos corpos aqui se articula à escrita da terra. A experiência de ver, de sonhar é uma experiência de geobricolagem. O Centro MAHKU Independente (CMI) não é um lugar, não é lá e então. O CMI é aqui e agora, prática e experimentação. Não se trata de objeto, algo a ser conhecido. Onde você pisa é alguém em quem você pisa. A escrita da imagem atravessa e altera os corpos, a percepção, constituindo um esquema de causalidade própria frágil, mas consistente.

A escrita dos corpos, essa pedagogia huni kuin, não se dá desvinculada de uma escrita da terra. A escrita da terra trata do Centro MAHKU Independente, comunidade adquirida e constituída pelo coletivo, consiste numa área de floresta localizada nas proximidades da terra indígena huni kuin, no município de Jordão. O centro de pesquisas e intercâmbio tem recebido residências artísticas e promovido cursos no município e na sede entre outros projetos, tais como parcerias com Universidades e Museus que tem proporcionado a realização dos LAP.

Entendo, portanto, que as transformações da imagem se sucedem e se articulam num mesmo movimento. O desenho, a pintura e outras formas de imagem persistem, mas tem redefinidos seus papéis. Esse processo de transformação das imagens vai se dando por meio de um movimento de proliferação. Não se trata de uma multiplicação de autores que não seja a constituição de um autor múltiplo. O efeito disso é ainda uma inversão do culto da autoria, a marca que faz do nome dos artistas contemporâneos distinguir-se pouco de marcas de produtos ou corporações, aqui a autoria é apropriada de outra forma por Ibã e os artistas huni kuin. A transformação das imagens que se desdobra nas escritas que começamos a esboçar aqui a partir da descrição das práticas do MAHKU, operam na chave dessa concepção do trabalhar entre proposta por Deleuze.

Concluo sugerindo uma analogia entre a transformação das imagens e a transformação da droga. Em lugar de nos oferecer uma imagem da transcendência, não estará o artista-xamã nos embriagando de água pura?

A droga dá ao inconsciente a imanência e o plano que a psicanálise não parou de deixar escapar. [E] se é verdade que a droga remete a essa causalidade perceptiva molecular, imanente, resta toda a questão se ela consegue efetivamente traçar o plano que condiciona seu exercício. […] Seria o erro dos drogados o de partir do zero a cada vez, seja para tomar droga, seja para abandoná-la, quando se precisaria partir para outra coisa, partir ‘no meio’, bifurcar no meio? Conseguir embriagar-se, mas com água pura (Henry Miller). Conseguir drogar-se, mas por abstenção, ‘tomar e abster-se, sobretudo abster-se’, eu sou um bebedor de água (Michaux). Chegar ao ponto onde a questão não é mais ‘drogar-se ou não’, mas que a droga tenha mudado suficientemente as condições gerais da percepção do espaço e do tempo, de modo que os não-drogados consigam passar pelos buracos do mundo e sobre as linhas de fuga, exatamente no lugar onde é preciso outros meios que não a droga. Não é a droga que assegura a imanência, é a imanência da droga que permite ficar sem ela” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 81).

 

Conclusão

O interesse que move essas mal traçadas linhas é formular enquanto escrita as práticas huni kuin de produção de conhecimento do MAHKU por entre a academia e a arte. Enquanto atividade intelectual, essa tarefa tem como referência certa etnologia americanista voltada a repensar a ecologia das práticas no contexto da disciplina destacando a dimensão cosmopolítica das práticas antropológicas que, nos termos aqui propostos, em lugar de trabalhar junto ao nativo, optam por trabalhar entre, decidindo assim por trair sua definição original como ciência administrativa ou de Estado, isto é ciência de reformadores, na expressão de Edward Tylor citada por Viveiros de Castro[9].

Tal como vem ocorrendo em relação às práticas científicas, que têm sido redefinidas na pena de filósofas da ciência como Stengers desde uma perspectiva de fora, isto é, desde sua relação com o conjunto das práticas científicas menores ou minoritárias e, inclusive, das práticas não científicas de produção de conhecimentos, o que problematiza imediatamente as alianças da Ciência com o Estado e o Capitalismo, buscamos contribuir aqui com uma apresentação das práticas de pesquisa e produção de conhecimento e arte do coletivo MAHKU e parceiros problematizando em que medida elas afetam e compõem a ecologia das práticas nos meios em que se inserem, tais como a arte, a antropologia ou o design.

O objetivo com isso é apontar os limites de uma concepção tradicional de política orientada pela noção de um diálogo de conhecimentos, no sentido cosmopolita do termo. Falar de uma cosmopolítica da imagem no caso huni kuin e, mais especificamente, no caso do MAHKU, é levar em conta que suas práticas de transformação da imagem são atravessadas por uma metafísica da predação ou uma metafísica canibal, o que procurei demonstrar ao tratar dos processos de composição do coletivo a partir da prática de composição que Deleuze define como trabalhar entre.

Assim, enfim, espero ter chamado a atenção para o caráter autônomo das práticas de conhecimento e transformação de imagens huni kuin do MAHKU em relação às instituições entre as quais trabalha. Pois é arriscado, caso não compreendamos o alcance do jogo filosófico implícito e implicado nas práticas de conhecimento que os huni kuin estão trabalhando entre nós, continuarmos pensando, na esteira de nossa metafísica cristã, que os estamos “ajudando a preservar sua cultura”, enquanto o que eles podem estar propondo é transformar a nossa filosofia, a nossa arte e mesmo nossa ciência desde dentro da academia, templo tradicional do mononaturalismo.

 

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Recebido em: 17/10/2017

Aceito em: 15/11/2017


[1] Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor na Licenciatura Indígena, Centro de Educação e Letras da Universidade Federal do Acre – Campus Floresta, Cruzeiro do Sul, Acre. Laboratório de Imagem e Som – LABI – Floresta.

[2] Aula inaugural do Programa de Antropologia da Pontificia Universidad Católica de Chile em 8 de abril de 2015. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=f4or0NATqmg Acesso em: 10 de outubro de 2017.

[3] Conferência de Eduardo Viveiros de Castro no Instituto de Física de São Carlos. Disponível em www.youtube.com/watch?v=E7lOjgpql9Y&t=3709s Acesso em: 10 de outubro de 2017.

[4] Disponível em: www.youtube.com/watch?v=pIo90b2qGDI&t=13s Acesso em 10 de outubro de 2017.

[5] Disponível em: www.nixi-pae.blogspot.com Acesso em 10 de outubro de 2017.

[6] Disponível em: www.youtube.com/watch?v=zRlbRpoi0cQ&t=121s Acesso em 10 de outubro de 2017.

[7] Disponível em: www.youtube.com/watch?v=O_eEa3FBTec&t=53s Acesso em: 10 de outubro de 2017.

[8] “A única maneira de defender a língua é atacá-la… Cada escritor é obrigado a fabricar para si sua língua…” (PROUST apud DELEUZE, 2011, p. 16).

[9] Conferência no Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=ry1ykrRVqYk Acesso em: 10 de outubro de 2017.

Entre imagens, corpos e terra: transformações do MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin

 

 

RESUMO: O presente artigo parte da noção de cosmopolítica, no sentido que lhe dá Isabelle Stengers, para descrever e comentar os processos de transformação das imagens no trabalho do coletivo MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin. Tal como nas práticas de conhecimento descritas por Stengers, no contexto apresentado a noção de política também parece insuficiente. Visando apontar uma saída para o impasse, apropria-se da prática da escrita de Gilles Deleuze, especificamente o conceito de entre, para tratar das transformações das imagens como transformações daqueles entre os quais as imagens se escrevem e, finalmente, voltando à cosmopolítica, apontar para a experiência MAHKU como uma prática própria a uma metafísica canibal.

PALAVRAS-CHAVE: Escrever-entre. Movimento dos Artistas Huni Kuin. Metafísica canibal.

 


Between images, bodies and earth: transformations of MAHKU – Huni Kuin Artists Movement

 

 

ABSTRACT: This article begins with the notion of cosmopolitics, in the sense given by Isabelle Stengers, to describe and comment on the processes of transformation of images in the work of the collective MAHKU – Huni Kuin Artists Movement. As in the practices of knowledge described by Stengers, in the context presented the notion of politics also seems insufficient. To get out of the impasse, we steal Gilles Deleuze’s writing practice, specifically the concept of between, to think of the transformations of the images as transformations of those among which the images are written and, finally, returning to cosmopolitics, to point to the MAHKU experience as a practice proper to a cannibal metaphysics.

KEY WORDS: Write-between. Huni Kuin Artists Movement. Cannibal metaphysics.

 


 

MATTOS, Amilton Pelegrino de. Entre imagens, corpos e terra: transformações do MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin. ClimaCom [Online], Campinas, ano 4,  n. 10,   Dez2017 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=7673