INTERVALAR – Linhas, letras e apagamentos

Título: INTERVALAR – Linhas, letras e apagamentos


Lerato Shadi usa de linhas de novelos e de barbantes para fazer crochês, invólucros para que seu corpo habite, mordaças internas de uma língua a ser silenciada, cordas e nós que permitem seu corpo se soltar e aprisionar. Considera que a criação na arte está essencialmente ligada com as capacidades do corpo, com o gesto do corpo em direção ao mundo, à sua transformação. Quando, pelas performances em vídeo ou ao vivo, esgota seu corpo de capacidades orgânicas previsíveis e possíveis, a criação artística irrompe em um processo em que o corpo – físico, mental, emocional, cultural – faz gerar como potência. As principais questões que movem seu fazer artístico estão atreladas ao colonialismo, à escravidão e às resistências em uma África historicamente subalternizada e explorada. Em uma breve conversa por Skype, a artista reforçou que seu trabalho é de performance e que os registros audiovisuais são uma outra experimentação das experiências que a performance lhe exige. Muitas de suas obras abordam o conceito de apagamento ou da escravidão como um tipo de ato que a sociedade global impinge para que o curso da história siga adiante. A principal função do racismo, nos dizeres de Lerato Shadi, é manter a destruição e a distração ao mesmo tempo – manter você ocupado com seus próprios interesses e trabalho. Como agir contra essa tendência perversa? Sua resposta vem em uma dimensão da representação: corpo, identidade. Somando o silêncio, o apagamento, a produção de resíduos e ruídos sonoros e visuais. Um pó vermelho que se deposita no chão, após seqüências de escrita e de rasura. Um zumbido de mosca que não aparece no vídeo, mas que indica a putrefação de um estado de coibição, censura e enovelamento da língua por um colonialismo devastador das diferenças. Um corpo que engasga, chora, entope-se de algo estrangeiro que o possui até a sua morte ou o seu regurgitar formatado em um corpo que as linhas enovelam e dão uma forma universal.

The physical act of creation | Lerato Shadi | TEDxJohannesburgSalon

Moremogolo (Go Betlwa Wa Taola) – password: moremogolo

“Shadis latest video work had its world premierein Grahamstown, South Africa, during the National Arts Festival 2016 and was made possible through the genero“s support of the National Arts Festival. MOREMOGOLO (GO BETLWA WA TAOLA) was shot on location in her home village of Lotlhakane, Mahikeng (South Africa) in June 2016. This two channel video work was conceptualised in three parts: the first deals with the extreme nature of individual resistance; the second deals with how Shadi experiences the impact of colonial language while the final part is of an ambiguous figure, that features dancer/choreographer Sello Pesa”.

O trabalho de Lerato Shadi permitiu algumas aproximações e conversas com duas das nossas produções do projeto ‘Intervalar o Currículo’. O vídeo AusênciaPresença é a proposta da rasura na lei sobre criminalização da pixação criada pela prefeitura de Campinas. O vídeo Ausência Presença (Bia Porto e Barbara Santos, 2016) é uma animação das fotografias da reconstrução, do apagamento, desvio ou enovelamento que fios de barbante faziam em um papel pardo sobre as linhas dos desenhos das cartolinas, produzidos por moradores de rua e ambulantes da cidade de Campinas, expressando sua relação com o espaço e as memórias da cidade. Já a rasura da lei municipal sobre pichação foi feita a partir das entrevistas com vários pichadores e grafiteiros de Campinas, coletando e criando um acervo de seu ‘alfabeto’ visual, a fim de que pudéssemos ter material para criação de uma exposição em especial, que é o intervalo, o gaguejar e o tropeço que tal alfabeto causaria na lei que pune os pichadores em Campinas.

SERITI SE

“Performance and installation – The performance, drawing and installation SERITI SE looks at the politics of historical erasure, specifically of Black females and their achievements and contributions within various fields. SERITI SE thematises everyday violence enacted within institutional structures and the different strategies employed within those systems. In SERITI SE names of historical women of colour, who have been excluded and erased from world history, are written on the white walls of the gallery. The performance consists of the audience being invited to choose a name and paint over the chosen name. In the act of erasing a name, the gallery space is turned back to white. No information is provided on who the women on the wall are; therefore it becomes the duty of the one who is erasing the name to take responsibility for the name by further informing themselves”.

Sobre os vídeos, note-se a relação entre a linha e o silêncio e a potencialidade de expressão de um corpo inerte, extraído de sua organicidade e aberto ao tempo do acontecimento, que se encontra no que as linhas tecem. Sobre a proposta da rasura com as letras criadas em um alfabeto e na linguagem dos pixadores, a relação com o apagamento e a resistência, no e pelo vazio, que emerge. Esses dois trabalhos de Lerato Shadi (MOREMOGOLO e SERITI SE) podem ser analisados à luz de discussões apresentadas por Marsha Meskimmon & Dorothy C. Rowe (2013, p. 6-7), no livro Women, the arts and globalization. Eccentric experience. Manchester University Press.

Se a localização é crucial para entender como os indivíduos encarnados percorrem o complexo terreno das geografias de transição e a geração transcultural do significado, é igualmente significativo na preconcepção da estética contemporânea. O papel da arte como um pivô ou trampolim para explorações críticas de idéias políticas, sociais e éticas tem uma longa história dentro da tradição cultural ocidental e do discurso. O nosso uso da noção de estética ultrapassa os confins da “filosofia da arte” para envolver os desafios oferecidos pelos conhecimentos produzidos através de nossos contadores encarnados com / no mundo. Ao nos voltarmos para a corporeidade e encarnação, entendemos “o corpo” para uma ficção social crucial, que precede os sujeitos individuais e os constitui, mesmo a partir de sua repetição contínua de uma “identidade” redefine seus contornos”. 

Suas obras audiovisuais, que não são muitas, efetuam o que o cinema em si faz como uma máquina para fabricar memórias – para dar forma ao que vamos nos lembrar e como nos lembraremos. E faz isso, apagando e substituindo memórias traumáricas, e até mesmo criando novas memórias. Discute-se que o cinema faz um processo de hipnose. A implementação de novas memórias é dada pela edição e montagem do cinema. Assim, novas imagens são implementadas. No vídeo Moremogolo de Lerato, como as imagens adentram na nossa mente? Tanto pelos close-ups quanto pela imersão nos cortes, sugere-se a entrada do espectador em uma posição de hipnotizado. O olhar do personagem, que é captado pelo espectador e o hipnotiza, é o olhar da câmera. Nesse sentido, criam-se novos passados e novas memórias. Como se fossem um emaranhado de linhas que um novelo que modula as sensações da impossibilidade da fala fora de um formato que é moldado, modelado a partir de uma língua que não consegue falar. As sensações moduladas em seus vídeos carrega pelo poder hipnótico das imagens cinematográficas outras políticas para a discussão multicultural e pós-colonial com que seu trabalho se identifica e está ‘afinado’. As memoriopolíticas que são transladadas pelo espectador e retornar às imagens agem por cisão, por duplicidade e por dispersão.


Projetos de Pesquisa

– Projeto Intervalar

Fapesp/Faepex-Unicamp/CNPq – Edital Universal N. 484908/2013-8

– Para além da representação conexões entre educação e estudos de cinema e vídeo experimentais

Financiamento: FAPESP (Processo n. 2015/25656-1)

Instituição

OLHO-FE-Unicamp

Coordenação

Prof. Dr. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim