Estudos sobre impacto das hidrelétricas em regiões tropicais úmidas desafiam consenso sobre energia limpa

Pesquisador aponta que IPCC precisa rever metodologias dos inventários nacionais, para que seja reportada a verdadeira extensão das emissões nas barragens

Por: Daniela Klebis

O papel das barragens hidrelétricas das regiões tropicais na emissão de gases de efeitos estufa (GEEs) vem sendo ignorado sistematicamente, especialmente nos inventários encomendados pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) ou nos relatórios publicados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). É o que aponta o biólogo Philip Fearnside, professor do Instituto Nacional de Pesquisas do Amazonas (INPA) e coordenador da Sub-rede Serviços Ambientais dos Ecossistemas, da Rede CLIMA, em artigo publicado no dia 30 de março no periódico Environmental and Science Policy.

O painel intergovernamental classifica a energia das hidrelétricas como a mais limpa ou que causa menos impacto ambiental, porém, como descreve o pesquisador, a base de dados utilizada pelo IPCC não está clara no relatório. As emissões provenientes das represas hidrelétricas em áreas tropicais, ao serem subestimadas nos inventários nacionais da UNFCCC ou omitidas no IPCC, minimizam sua influência na decisão sobre seus limites. No estudo, Fearnside pontua que, entre as razões para a subestimação das emissões, os argumentos sobre as baixas emissões são baseados em estudos feitos em zonas fora dos trópicos, mas as emissões são notadamente maiores nas áreas tropicais. Também, o impacto das turbinas e das árvores que emergem depois que o nível das águas dos reservatórios baixa são ignorados. Além disso, as concentrações de metano (CH4) e o impacto do fator tempo também são desvalorizados: as contagens de emissões, bem como o método utilizado é incompleto.

“A existência de incerteza tem sido usada repetidamente como justificativa para não levar as emissões de hidrelétricas em conta”, comenta o biólogo. Um exemplo está nas conclusões do Relatório Especial do IPCC, de 2012, sobre Fontes Renováveis de Energia e a Mitigação da Mudança Climática. O documento defende que atualmente não existe consenso a respeito das emissões de hidrelétricas no que diz respeito aos reservatórios, se eles são emissores ou sumidouros líquidos. Por esse motivo, o relatório acabou por classificar as hidrelétricas como a fonte de energia de menor impacto por kWh de eletricidade gerada. Em comparação a qualquer outra fonte, incluindo eólica e solar, o documento atesta que esse valor de emissões chega a ser a metade do que as outras fontes geram.

 

Imagens da instalação "Aquiescrituras", do grupo Humor Aquoso (FE-Unicamp)

Imagens da instalação “Aquiescrituras”, do grupo Humor Aquoso (FE-Unicamp)

 

O relatório especial analisou o ciclo de vida de onze hidrelétricas, entre elas, Itaipu, localizada na fronteira entre Brasil e Paraguai, única represa brasileira analisada no projeto. Segundo Fearnside, apenas quatro deles são estudos que passaram por avaliação por pares e nenhum parece dizer respeito a represas tropicais, como a própria Itaipu. A conclusão do relatório de que as hidrelétricas emitem baixas quantidades de GEEs pode ser explicada, dessa forma, pela preponderância de locais temperados e boreais entre as barragens existentes.

No entanto, a atual expansão de hidrelétricas concentra-se em regiões tropicais, como a Amazônia. De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia do país para 2013-2022, a previsão é de que até 2022, a região da Amazônia Legal contará com 18 grandes barragens (com mais de 30 MW de potência instalada). “Barragens tropicais, especialmente aquelas nos trópicos úmidos, emitem substancialmente mais gases de efeito estufa do que aquelas em outras zonas climáticas”, alerta o pesquisador.

As estimativas de gases de efeito estufa usadas no estudo da hidrelétrica brasileira enviadas ao IPCC são números oficiais. Antes de serem enviados ao painel, os estudos passam por uma análise dos governos, que escolhe os estudos a serem encaminhados. Com isso, dados como os que falam sobre a emissão a partir das turbinas, por exemplo, costumam ser obliterados. “Uma fonte de emissões explicitamente excluída pelos autores do relatório foi a mudança do uso da terra, mas barragens em áreas de floresta tropical, muitas vezes, provocam desmatamento com emissões significativas”, comenta.

Para poder entrar no relatório, os estudos precisavam incluir pelo menos duas fases do ciclo de vida de uma barragem, porém, tinham a possibilidade de omitir outras fases, sem necessidade de fazer ajustes para estas omissões. A desativação de uma barragem no fim da sua vida útil é um exemplo de fase frequentemente omitida. “As emissões de barragens tropicais representam uma lacuna significativa nos inventários nacionais de gases de efeito estufa compilados para a UNFCCC”, diz.

As diretrizes do IPCC sobre “boas práticas”, que estavam ainda em vigor em 2014, como um suplemento para países do Anexo I, trazem informações para comunicação voluntária, mas a parte sobre reservatórios é tratada simplesmente como uma “base para futuro desenvolvimento metodológico”. Fearnside observa que um apêndice do documento, publicado em 2003, afirma que existe uma ligação estreita entre as emissões de CO2, CH4 e N2O e as metodologias e, por isso, não faz nenhuma distinção para emissões de terras alagadas com base na idade do reservatório. “Como o metano foi relegado a um apêndice nas diretrizes, relatar essas emissões continuará sendo algo voluntário. O resultado será, provavelmente, que as emissões de hidrelétricas tropicais permaneçam praticamente ausentes das contas globais”, diz.

 

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Contabilizando emissões de gases

Conforme a contabilização de emissões da UNFCCC, ao multiplicar o número de toneladas emitido de cada gás de efeito estufa diferente do gás carbônico por um potencial de aquecimento global (GWP), tem-se a conversão desses gases em CO2-equivalentes (CO2e). Cada gás possui uma capacidade de bloquear a passagem de radiação infravermelha pela atmosfera de forma quase instantânea. Essa capacidade chama-se forçamento radiativo, o saldo do fluxo de energia que acontece na tropopausa (a divisão entre a troposfera e a estratosfera) que mostra quanto o sistema Terra-atmosfera se altera quando os fatores que afetam o clima sofrem algum tipo de mudança. O forçamento radiativo de cada tonelada de metano presente na atmosfera é 595 vezes o maior que o do CO2. No entanto, o metano tem uma vida média de 12,4 anos na atmosfera. Já o CO2, ainda que tenha um efeito muito mais fraco, cerca de 40% do gás permanece na atmosfera por mais de cem anos. O GWP calcula o forçamento radiativo de uma tonelada do gás emitida no início de um período em comparação com a mesma quantidade de CO2 emitida simultaneamente. E, assim, quanto mais longo for o horizonte de tempo para o GWP, o metano, por sua vez, se torna menos importante em relação ao CO2. Fearnside explica que o valor do GWP mais usado para converter o impacto das emissões de metano para CO2e é 21. Isso quer dizer que uma tonelada de CH4 tem o mesmo impacto sobre o aquecimento global que 21 toneladas de CO2.

Ainda assim, o IPCC opta por deixar de lado a discussão sobre as altas emissões de metano nas zonas tropicais úmidas, relegando o gás a apêndices e perdido em uma longa tabela, sem exigir revisões científicas. “Se inventários nacionais apresentados por cada país não refletem a verdadeira quantidade de emissão porque emissões tropicais de hidrelétricas foram omitidas ou subestimadas, consequentemente, as quantidades atribuídas negociadas no âmbito da UNFCCC serão insuficientes para conter a mudança climática e os impactos de ultrapassar o limite de 2º C se seguirá”, alerta.