Olhares sustentados e insustentabilidade ambiental pelas imagens


A imagem inaugural deste artigo vem da cultura escolar. Desde a primeira vez em que ela brotou na imaginação de deslocamentos entre modelos e estabilidades, sua força emerge da noção de redes e de entrelaçamentos. O deslocamento ou transição territorial da imagem de linhas de giz no chão de um pátio escolar, redesenhando ciclos biogeoquímicos que representam a natureza em sua transformação e mudança, pensa na negação de “a rede parece figurar como certo dispositivo, ‘centro de cálculo’, na medida em que o objeto passa por uma série de mediações e se produz através de práticas de relações” (SANTOS, 2014, p. 7)

Essa imagem-primeira é a experiência sensível travada com a lógica de uma rede de negação do fluido, do incerto e do instável. A imagem gera potentes aproximações com a definição de reticulação que Pedro P. Ferreira apresenta em seu blog[3]:

Reticulação — pontos privilegiados no espaço-tempo que favorecem a ação (i.e., criam assimetrias/irreversibilidades); o conceito de reticulação presente na teoria ator-rede e também na obra de filósofos como Bergson, Simondon e Deleuze-Guattari não é meramente espacial, e tampouco estritamente métrico (no sentido extensivo), envolvendo antes processos temporais-intensivos-rítmicos irredutíveis. Um ritmo-rede não é um objeto, mas uma maneira de encarar qualquer objeto.

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A redação deste artigo inunda-se pelas reticulações de uma pesquisa de mestrado em Divulgação Científica e Cultural[4] que se propôs a criar com as imagens que faz quem à terra retorna. A recolocação de símbolos e sentidos culturais produzida pelo deslocamento dessas pessoas, além de abalar certezas politicamente instituídas, nos movimentou, enquanto pesquisadores das imagens, a elaborar um olhar específico (audiovisual) sobre as instabilidades em jogo, ora observando-as a partir do campo dos estudos culturais das ciências, ora das virtualidades que as imagens permitem.

Nessa trajetória, faceamos alguns elementos que serão aqui discorridos, com o propósito de pensar a insustentável monotonia das representações visuais que hoje narram sociedade e produção, clima e ambiente, criando assimetrias irreversíveis.

À reticulação das imagens somam-se também os dispositivos dos saberes – que, em uma perspectiva deleuzeana, seguem direções, traçam processos sempre em desequilíbrio, às vezes se aproximam, às vezes se afastam umas das outras.

É uma aposta de que a vida camponesa, retratada textualmente desde o século XIX, nos preenche de multiplicidade no existir, pois são modos de vida que transmitem outras lidas com o saber acumulado, tornando-o um aliado na reprodução de sua cultura e na manutenção das bases ecológicas que garantem sua sobrevivência, e não fazendo do conhecimento associado a estes saberes instrumento de opressão e discriminação entre os diferentes grupos sociais (SEVILLA GUZMÁN; GONZÁLEZ DE MOLINA, 2005); ao ler os trabalhos publicados, constataremos que a antiga previsão do inevitável desaparecimento dos camponeses, diante do avanço da lógica capital e financeira no campo, vem sendo contrariada.

Que força é essa, fundada sobre este modo de vida que se reinventa na permanência? Que tessituras ele produz? O que, na vida destes sujeitos, marca sua persistência, seu sertão? – “sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar” (ROSA, 2006, p. 35). O que, em suas vidas, enreda o aprendizado/cuidado com a terra, marcada por atos como colher, plantar, semear, podar, arar, revolver, esperar?

Diante da subjetivação urbana, crescente no mundo todo, novas ruralidades apontam caminhos para a redistribuição demográfica e a descentralização econômica. Outras racionalidades e pensares não capitalistas ocorrem em várias regiões, protagonizados por famílias agricultoras e suas organizações. Efervescem, em todo o campo, agriculturas populares.

Que potência emerge dessa dimensão ética que insiste, há gerações, numa perspectiva solidária e cooperativa – mas constantemente marginalizada do “real”, invisibilizada? Se não está estabelecida no real, onde estaria? Uma entidade falsária que desgrilhoa nosso território sub judicie e desfaz a forma identitária estritamente urbana, invocando outras paisagens subjetivadoras… Melhor seria perguntarmo-nos: que potência esse falso discurso tem em abalar a identidade autocentrada do eu-eu (que iconiza o sistema dominante?) fazendo-nos cogitar que outro eu seríamos nós? O que emergiria se, abandonando o antagonismo ao outro, o eu transmutado em desenclausura abrisse espaço à imagem permissiva de um eu lírico, às vozes que expressam o imaginário camponês, de maneira que o mundo deste, antes exterior, se convertesse em vivência interiorizada?

Essa dinâmica impressa pelas comunidades rurais permanece gerando rupturas na ordem do que é visível, pensável e realizável no metabolismo social, oferecendo continuamente – por estar sempre excluso, ausentado – reconfigurações no mapa do sensível, fruto da força contida nos enunciados políticos a ela vinculados. Pela natureza do conhecimento associado, pela cosmovisão que nutre a integração a um modo sócio-produtivo específico é que essa escrita estimula-se, movimentando-se pelos sentidos que sobressaem da escuta às vozes camponesas, que rompe identidades e fixações, deformando a concepção do estático existir. Trincas e frestas, dilacerações políticas no campo da “agronegociata de massa”, e o som permanece entoado, dado a invocar ânimo poético que acolhe e oferece ao nobre desejo de humanidade, enferrujado de vida fabril, uma chance de madureza.

Que forma de agir e pensar é esta, camponesa, que resiste à morte da memória e com ela persistida (pois intrínseca a eles e a nós todos) reelabora o real, a práxis, a vida (não só a deles, mas a do conjunto)? Quais marcas nos fazem, quais são seus processos de aprendizagem? E que mundo é esse que se apresenta para nós? Que realidades nos são servidas, como prato principal, nas escolas, nas ruas, na TV, nas instituições públicas ou privadas, na igreja, no cinema? O mesmo fast-food como que embalado num jornal de letras mortas, descartável, desenriquecido, esterilizado da lanchonete da esquina? Se Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 237) nos propõe uma sociologia das ausências para “expandir o presente”, valorizando, assim, a experiência social em curso no mundo de hoje, e evitar seu desperdício, como pensar uma “imagem das ausências”?

Ausência sociológica e ausência filosófica, a que está e não é vista e a que foi mas ainda não é e que também expande o presente a partir da reificação desse passado; plano de contato com a virtualidade, atualização de referências para a expansão de ontologias possíveis e luta em estesia, política da percepção e das sensibilidades.

Das inúmeras imagens que do campesinato se sucedem, quais se querem fazer emergir? Aquelas que conotam ações contra hegemônicas? As que fazem propostas em face da crise? Que identificam novas subjetividades no perene conflito de reinventar-se? Que emergem das mutações existenciais derivadas deste processo de recampesinização? Que cristalizam conscientemente interpretações das novas ruralidades do campo ou ainda as que expõem a metamorfose da (nossa-minha) memória imortal? Imagens-tempo que condensam passado e presente campesino, inventando o lugar onde o pensamento toma contato com o impensado latente.

Pensar a imagem em movimento como artifício disparador de significações que cingem o campesinato e que dê e abra visibilidade ao acervo que reúne do mundo camponês aquilo que nos irrompe e aquilo que pode ser suas erupções – estas pautadas pela nucleação política que a movimentação social organizada no campo gera e coaduna. Jacques Rancière (2009, [s.p.]) subsidia aqui noções conceituais para pensarmos o movimento que gera, no campo cultural, os movimentos sociais do campo, já que, para ele, a política

é essencialmente estética, ou seja, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão artística. Por isso, um regime político só pode ser democrático se incentivar a multiplicidade de manifestações dentro da comunidade (Ibidem).

Neste universo, que semânticas (visuais) são translúcidas, ou pretende-se que sejam, e quais não se fixam, não são dadas nem estabelecem referência na gramática do real? Como realizar em vídeo uma linguagem que manifesta a instabilidade fronteiriça entre memória e imaginação, educação, arte e divulgação, estética e política?

São experimentações imagéticas pautadas nessa compreensão que formam margens reflexivas no fazer pesquisa em divulgação científica e cultural. A imagem, ao permitir conexões não lineares, oferece um artefato propositivo para lidar com as impermanências conceituais, as nossas próprias – efetivando o aspecto propositivo – e as dos campos científicos com os quais dialogamos.

Essa concepção imagética torna-se chave e oferece sentido à investigação que agrega agroecologia e movimentações cidade-campo: uma materialidade que, enfim, condiz; congruência com o fim a que se destina. Afinal, como tratar a vigorosa promiscuidade entre a centralidade político-popular da agroecologia e sua vertente acadêmica sem prefixá-la com “trans”?: transgressiva, transverberada, transluzida de enredo científico que exige outra abordagem teórico-metodológica, talvez uma particular existencialidade agroecológica que experimente o caos em jogo, misto de subjetividades, abordagens conceituais, dinâmicas sociais e forças políticas, ambiente e mundo natural.

Há realidades (e identidades) sendo reeditadas e há comuns: imagens desconcertantes, tanto quanto ocupação de terra são movimentos – enquadres ou sociais – que cartografam no real diferenciais concretos e simbólicos, rearranjam e singularizam num contexto de ideias massificadas, no exercício de torná-los imagens que sobrevivam “ao fluxo aniquilante, ao ‘esgoto público das imagens’ que nos atravessa” (BENTES, 2013, [s.p.]). Imagens desvinculantes e ação social transgressora atribuem interferência ao real postulado (oficial ficção). E elas assustam. A conjura dos falsários é vista como inimigo poderoso: à ruptura na ficção de Estado sobrevém a ideia de uma força subversiva, relativizadora da razão instrumental; à potência do falso sobrevém a vontade de verdade instaurando regimes de exclusão e supressão de discursividade desviante (PELLEJERO, 2009).

Nada de novo no front? É testemunha o escrivão da coroa portuguesa que lavra regulamentações no reino – contemporânea à decretação da capitania hereditária é a sumária determinação que garantia à metrópole exclusividade de impressão e publicação, reservando à colônia a severidade punitiva, mortal, para quem ousasse imprimir sentido dissonante à realeza. Há, portanto, dessintonias que podem ser videografadas quanto ao tema e quanto à linguagem. Esse embate colonial, hoje, permanece sob o signo de velho e novo latifúndio – agrário e aéreo –, vastidão territorial e restritivas ondas no ar, ao gosto de emissoras e suas “públicas” concessões.

Há uma percepção da importância estética / política deste contexto, e optamos pelo exercício de descortinar os temas eleitos neste emaranhado. Investe na abertura de novas regiões apreensivas onde não se diferenciam o pensar e o expressar, valorizando a ideia de que a percepção e a sensibilidade de indivíduos e grupos constroem os espaços. Ela permite-se dar vazão a reflexões pedagógicas acerca da imagem e do modo pelo qual ela remodela a comunidade e o mundo:

A imagem que no senso comum ainda é uma representação do mundo, a duplicação de algo, torna-se atuante, sujeito, “forma que pensa”, que afeta e é afetada. A imagem está carregada de todas as qualidades e potencialidades que definem o “humano”. É a potência da imagem experimentada como sujeito. A imagem nunca foi investida de tanto valor. Esse valor é real e simbólico: a imagem-publicitária, a imagem-capital, as imagens produzidas no campo da arte, que podem atingir valores irracionais, mas também o valor afetivo incomensurável de certas imagens com as quais nos relacionamos, que têm uma duração, que sobrevivem ao fluxo aniquilante, ao “esgoto público das imagens” que nos atravessa. Há uma potência das novas imagens, da imagem eletrônica, das imagens digitais, desterritorializadas, que também precisam ser pensadas do ponto de vista estético, econômico e como modo de produção de uma nova sociabilidade (BENTES, 2013, [s.p.]).

O interesse investigativo consiste na relação entre as sociabilidades que surgem pelos vetores analíticos da pesquisa, a sociabilidade da imagem atuante enquanto “forma que pensa” e que porta valor afetivo, e aquela forjada pelos povos do campo que fazem do outro um legítimo outro, e que conotam formas de convivência na partilha e na colaboração.

A “trajetória pedagógica” pela qual nos conduz a vida acadêmica nos apresenta distintas visões a respeito do que é educar. Na educação popular, por exemplo, estabelecer relações horizontais entre os envolvidos na relação ensino-aprendizagem é uma busca, uma intenção. Dialogicidade e respeito mútuo são princípios defendidos, onde os envolvidos na atividade educativa se rearranjam no binômio educador-educando. Por que as pessoas que intencionam essa prática intencionam essa prática? Elisa Gonsalves (2002), ao revisitar as práticas em educação popular, lembra-nos de que é a busca pela autonomia do indivíduo que caracteriza esta área.

Porém, mesmo a práxis da educação popular pode, paradoxalmente, levar os indivíduos não à emancipação, mas à dependência, como argumenta a pesquisadora. Portanto, o que se busca, aqui, é problematizar a forma como pensamos a produção do conhecimento; é revisitar essa intenção de autonomia que se move pela certeza de que as práticas educativas podem exercer outro papel que não o de oprimir e ma(n)ssificar, controlar e cercear. Transcender o tempo, discernir os fatos, dialogar com o mundo que se sente, comunicar e participar são ações que Paulo Freire (2006) destaca no ato de “existir”, imprescindível numa proposta libertadora de educação. Existir, assim, parece envolver a articulação ético-política de Guattari (1990) para um novo paradigma estético, no sentido de resignificar a experiência individual e coletiva a fim de construirmos outros territórios existenciais onde a humanização seja viável, percebida e vivenciada.

Se o deslocamento – conceitual ou identitário – tem sido regra, percebemos também um continuum no existir gestado pelo imaginário camponês, misterioso e fora do alcance da razão pura – palavras, gestos, entonações, timbres, tonalidades das trajetórias de vida de pessoas com distintas origens culturais, mas que têm na terra e no ato de interpretá-la uma característica única. Esta característica de inventar a terra e misturá-la com vida parece ser algo universal, mas só o é na sincronia com o local – uma “globalocalização” às avessas, que universaliza na diferença, e assim escapa a todo instante do normativo e da massificação política e subjetiva, ao discurso único.

Na tentativa de ir ao encontro dessa “essência” e colocá-la sob rasura, surge uma terceira camada da produção audiovisual – nem áudio nem vídeo, uma terceira margem que pulsa em nós todos. A experimentação dessa terceira margem em imagens e sons é, no campo da linguagem, a contribuição que esse artigo busca oferecer na discussão de conceitos como identidade, diferença e política.

A expressão destes sentidos em imagem exercita outras possibilidades, onde os fragmentos possuem autonomia para procurar brechas desassociativas e expandir a criação imagética, abertos ao sensível para dar ensejo às outras temporalidades do próprio universo camponês. O esforço de enredar essa terceira camada busca a força de alinhar, pela sensação e lembrança, um possível percurso, uma “verídica ficção” ainda não (vídeo)grafada, que se inscreve em cada pessoa, e é reescrita quando alguém a observa, desequilibrando a linearidade dogmática e alimentando a coerência com esse desmergulho da realidade intransigente que a práxis do “nós-eu” camponês vivencia. A pretensão é alcançar essa narrativa duplo-hemisférica, sem-definida pela montagem de quem produz e pela sensação do expectador que é produzida – apostando na memória camponesa culturalmente inscrita em todos nós.

As conexões não lineares que permitem o audiovisual parecem ter sua potência não exatamente no fato de não serem rigorosamente lineares, mas por acolherem elegantemente a autonomia: do pensamento, das inter-relações, da criatividade, do indivíduo e da coletividade – simultaneamente. O audiovisual assim possibilita à essa unidade “nós-eu” elaborar diferentes normas, compreender as conexões que se realizam no interior do próprio pensamento; em suma, ser autônomo.

Que elementos inventivos permitiriam compartilhar esses significados? Que experimentassem amalgamar, indistintamente, os atravessamentos que nos compõem, ciência, cidade, memória, arte, registro, pesquisa… provocar as fronteiras, nosso reducionismo introjetado, nossa capitania subserviente? E que, ainda assim, fossem política e esteticamente localizados?

Coloca-se em análise uma linguagem audiovisual que dê conta de abordar pedagogicamente (ação educativa, comunicação social) a vinculação entre a potência estética e disruptiva e a força de resistência e criação da imagem com o abalo no universo possível gerado pela terra popularmente ocupada; vasculha peculiaridades da relação entre linguagem audiovisual e a agroecologia.

As imagens que as chamadas agriculturas populares projetam – intencionalmente ou não –, seus signos talhados no fogo da lembrança, nas rotinas muito nossas, fagulhando desde dentro pelo miolo do íntimo sem que nos apercebamos, fazem proliferar memória recorrente, imorredoura. Resta qual sobriedade ou coragem para rever e re-esculpir o tempo, desvelando contramodernidades no risco de reincidir em arcaicas lavouras? O que o sonho claro desse amanhã forjaria na memória de futuro? É terno o retorno ao campo?

Buscamos então redigir “videograficamente” alguns discursos que possam desorganizar o pensamento cotidiano, formatado pelo bombardeio imagético da grande mídia, esgoto aéreo que, pela monotonia clichê, não sustenta o amadurecimento de qualquer debate público acerca dos assuntos que importam à sociedade.

Um desses discursos, chamado Videofonograma, parte de algumas experiências práticas, fruto de projetos de extensão, pesquisa e atividades políticas autônomas. Ocupação de monoculturas, cotidiano de assentamentos rurais, entrevistas com agricultores fizeram parte do “repositório” utilizado na edição deste videofonograma. São imagens e sons que localizam e dispersam, repetem-se de acordo com as referências trazidas. Se existe algum anseio em delimitar um encadeamento entre imagens e sons, ele só se expressa na polifonia dos atores ali presentes, cujas falas e dizeres são portadoras de memória e estória pessoais, contextos afetivos, mas que compõem, em conjunto, um único arco-íris sonoro – na intenção de terra, na política de broto que renasce e alimenta.

O processo de criação em Videofonograma pode ser entendido como uma experimentação de linguagem. A técnica utilizada, este “borrão de movimento”, integra os efeitos e filtros de um programa que reproduz vídeos e que traduz alguns elementos de interesse, como deslocamentos, (im)permanências e recriação. As imagens do vídeo procuram fugir da ideia de figuração, deslocando espaços e tempos em direção ao encontro com seus duplos – memória, história, truculências, miserabilidades e plantares, expectativa e renovação. Uma transfiguração que oferta à imagem um descolamento de sua base primeira, estímulo clichê. A essa abertura talvez se associe uma concepção pedagógica às imagens, que, abertas às suas próprias sujeições, permitem dialogar com quem observa.

Temos então um elemento de projeção, uma experimentação que tende a constituir o que Augusto Boal (1996, p. 64) chama de “espaço estético”, um espaço que se faz pela interpenetração de outros dois espaços, o da cena (para nós “tela”) e o da plateia (telespectador). Essa superposição de espaços surge da criação subjetiva de quem especta por sobre o que vê; um é a expressão do momento, contemporâneo, enquanto o outro viaja no tempo. Nessa convergência de atenção (onde se dá o espaço estético) se agita o potencial pedagógico da imagem, sua propriedade gnosiológica, que estimula o saber e o descobrir, o conhecimento e o reconhecimento – propriedades que induzem ao aprendizado e reforçam esta experimentação como algo que desestabiliza quem assiste, permitindo transformações.

A Rede, agora formada, é aquela que gravita pensamento, conhecimento prévio ainda não acontecido, intencionalidade adormecida, desejo latente, intuições que irrompem na razão domesticadora, tudo a prosperar materialidade na ação, na vida cotidiana, reabitando o espaço da existência.

O passado com o qual fazemos emergir coisas que não aconteceram mas que nem por isso deixaram de existir é o passado da virtualidade; o virtual é o domínio do qual é indissociável o atual – todas as imagens concretas que vivem entre nós e que nos constituem. É no virtual que repousa aquilo que não se efetuou mas que permanece latente e potente, acontecimento ainda não acontecido; o acontecimento que é o sentido que a virtualidade guarda.

Essa junção experimental em torno de uma relação com o acontecimento pode ser entendida como um propósito dessa experimentação audiovisual. A relevância do conceito de imagem-tempo se expõe nesse momento. A imagem-tempo é aquela que desfaz a distinção entre atual e virtual porque torna indiscernível a própria distinção entre presente e passado. Ela seria uma expressão do impensado, do que ainda não foi presentificado; o virtual existe também como reflexo do real, uma espécie de “vasto universo cristalino” de imagens virtuais, de memórias, sonhos e mesmo mundos – a imagem-tempo seria a germinação da semente cristal, um ponto de indiscernibilidade convergido por passado e presente, atual e virtual (MARKS, 2000).

O vídeo Seis dos Onze, outra experimentação audiovisual, igualmente exercita a criação das assimetrias e irreversibilidades. Inventam-se modos únicos para se encarar um dado objeto, uma pessoa, uma dada realidade – reticular Elizabeth Teixeira.

A Ocupação Elizabeth Teixeira tem sido o caminho de, tem estado transeunte entre a reforma e o agrário; vida em agrarianismo, gerúndio sem dicionário: agrariando… Sem-terras semi-instalados em terra que não tem papel, sem-terra e sem-papel, sem o estável da formalidade, genuína quasidade…

Quasidade é um modo específico de acontecer, nem qualidade nem quantidade. Trata-se de uma categoria ontológica: a intensidade ou a virtualidade puras. O que exatamente acontece, quando algo quase acontece? O quase-acontecer: a repetição do que não terá acontecido? (VIVEIROS DE CASTRO, 2008).

É neste intervalo que as imagens de Seis dos Onze ganham contorno.

O próprio processo de aproximação e captação das imagens insere-se nessa atmosfera da quasidade, quase-imagens, quase-filmagens. A ciranda do assentamento é uma atividade de extensão da universidade em consonância com a organicidade do movimento no local; as crianças são convidadas a participarem, em meio às suas cotidianidades; os espaços comunitários refletem a aspereza e a suavidade de tudo ao redor – a inserção subjetiva do que representa um movimento social para os que lá transitam; o pasto e seus matos-árvores que suportam o canto dos pássaros empoleirados, minúsculos sons de folha seca carreada de brisa que passeia também poeira, plásticos, rumores, mugidos; a inevitável concretude dos prédios da fundação Casa, logo ali…, a interrogação de vencido prazo: presídio cercando crianças ou infância dissuadindo arames?

Elizabeth, para além e aquém da personificação que sugere o próprio do nome. Um signo avesso, um marco-mártir que desterritorializa, pois não é fixo nem estático nem acabado, incandescência preta e branca que encarna pigmento dolor, saturação sul, amétrica intensidade que na engrenagem inventa a contra mola que resiste, variação color…

 

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A Elizabeth-corpo, película e pele, documentário rodado na Galileia de cá, pernambucana. Documentário de Eduardo Coutinho interrompido pela armada força (romana?) de 1964, ameaça campesina… terra-quase-dividida, filme-quase-rodado, interrompido, giro do tempo, finalizado 20 anos depois, aforada narrativa, semidocumental…

O Elizabeth-lugar, probidade distraída e informe, logradouro burla-credo, pagão da ordem, o fora, disforme… Espaço lacunar num ardiloso tecido de paisagem normatizada.

Quase gente, o não-lugar, quase mito, o que não se assenta, persona de palco sem cenário. Movediço território, insustentável e leve no agudo do momento presente, o mesmo outro. Espaço estético que se remonta pela afecção da memória e pela subjeção imaginativa; Elizabeth, nem gente nem lugar, sibila de sensível discursividade.

Flutuante é também o gregarismo itinerante daqueles que lá vão vivendo, à espera/des-espera (que se repete desde a favela) do que não terá acontecido, da truculenta reintegração que sempre quase-acontece.

Há, portanto, uma latente (e até aqui perene) liberdade da significação – quem é este outro que lá vive, assentado, ocupante, aprisionado, vivente, sertanista de dentro? Diabo tirante a cinza, um gris enculturante na terra parda. Ainda que pouca novidade exista na lida diária, são novos os universos de referência que ali se vão estabelecendo. É esta liberdade de significação que aloca/desloca outros territórios existenciais, ainda que a existência pareça ser a mesma… risco campesino – diferença e repetição.

Esse é o risco que interessa às conexões entre os estudos audiovisuais e a educação: desestabilizar a forma de ver as coisas, reticular o mundo para oferecer uma liberdade de significação; um dispositivo do saber que nos reterritorialize.

Seis dos Onze é um exercício de criação na repetição, exercício de criação de linguagem que capta um instante deste devir campesino. É a minuta da hora que permanece rascunho, sempre em obra.

Tijolos, fendas na palavra da palavra, decodificação frástica no objeto em si anunciando verdades secretas e ausentes. Parábola semântica e sintática, atualização constante do que já teria sido. Filme, documento, pele-película por sobre as texturas onde estas atualizações se projetam; pessoas e coisas tornadas signos de virtualidades atualizadas, tudo para poder escavar mais a largo o que tudo isso revolve e não se define, mas está: verdades atonais.

Um lugar chamado Elizabeth, sinonímia de vida(s) e desejos que atravessam as significações culturais que constituímos, como se a reforma agrária se tornasse um ente porque quase, e apenas quase, fenecesse, e este ente é quem atravessa: séculos, regimes, ideários, concepções, história, governos. E por apenas quase fenecer, vai-se permanecendo desviva de fixações, como se abandonasse quem é para deixar de ser transcendente, se tornar luto-luta-criação imanente…

Fala do garoto assentado, “aqui é os sem-terras Elizabeth Teixeira”, filho herdeiro de quasidade que impermanece na rigidez dos códigos, e a vida entre o cavalo e a moto é como alfabetizar o que ainda não tem letras e não se arranja em sentenças, ação do verbo recampesinizar. “Aqui é o nosso lugar que a gente mora e aqui nós não saímos mais”… o nunca sair agora não se trata da circunscrição da gleba sem escritura, o nunca sair é do território do sempre inventar. Regime que se autodetermina.

Inventar história, tornar racionalidades indiscerníveis, pensar o comum do pensamento e transcorrer por entre a grande parataxe do inconsciente coletivo… seria esse o campo de uma educação imagética do campo? Poderia o material audiovisual engajar afeições e deserções que retalhem o corpo das representações culturais que nos pertence, em particular naquelas envolvidas nas relações de produção, meio ambiente, clima, alimentação? É certo que estes símbolos massificados pelas estruturas dominantes precisam ser mutilados para que outros sentidos, múltiplos, surjam. Em que medida a subversão da lógica do esquema representativo na criação de linguagens audiovisuais responde às demandas que as mutações socioambientais nos impõem?

 


 

Referências
BENTES, Ivana. Pensar as imagens como modo de produção de uma nova sociabilidade. Entrevista concedida a Sonia Montano. 2013. Disponível em: <http://tecnoculturaaudiovisual.com.br/?p=13035>. Acesso em: 12 abr. 2014.
 
BOAL, Augusto. Arco-íris do desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
 
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
 
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990.
 
GONSALVES, Elisa Pereira. Desfazendo Nós: Educação e Autopoiése. In: ______. (org.). Educação e Grupos Populares: temas (re)correntes. Campinas: Alínea, 2002. p. 65-78.
 
MARKS, Laura U. Signs of the Time. Deleuze, Peirce, and the Documentary Image. In: FLAXMAN, Gregory (ed.). The Brain is the Screen. Minneapolis: Univesity of Minneapolis Press, 2000. p. 193-214.
 
PELLEJERO, Eduardo. A postulação da verdade. Trad. Susana Guerra. Lisboa: Vendaval, 2009..
 
RÀNCIERE, Jacques. A associação entre arte e política segundo o filósofo Jacques Rancière. Entrevista concedida a Gabriela Longman e Diego Viana. Cult, São Paulo, n. 139, 2009. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere/>. Acesso em: 9 nov. 2014.
 
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Edição comemorativa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
 
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por Uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das Emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 1, n. 63, p. 237-280, out. 2002.
 
SANTOS, Lionês Araújo dos. Redes: dispositivo por excelência das sociedades de controle. Comunicação, Cultura e Sociedade. n. 3, v. 3, jan./ago 2014. http://periodicos.unemat.br/index.php/ccs/article/view/65/53
 
SEVILLA GUZMÁN, Eduardo, GONZÁLEZ DE MOLINA, Manuel. Sobre a Evolução do Conceito de Campesinato. São Paulo: Expressão Popular, 2005.
 
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Uma boa política é aquela que multiplica os possíveis [2007]. Entrevista concedida a Renato Sztutman e Stelio Marras. In: SZTUTMAN, Renato (org). Encontros: Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. p. 228-259.
 
Vídeos
VIDEOFONOGRAMA. Produção e realização: Marcelo Vaz Pupo. Brasil. 2012. (3min 22s), son. color. Disponível em: <http://vimeo.com/55544080>. Acesso em: 11 jan. 2014.
SEIS das onze. Produção e realização: Marcelo Vaz Pupo. Brasil. 2013. (4min 55s), son. color. Disponível em: <http://vimeo.com/83585587>. Acesso em: 11 jan. 2014.

 
[1]           Doutorando no Programa de Pós-Graduação Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Estadual de Campinas (Pecim/Unicamp) e Mestre em Divulgação Científica e Cultural (Labjor/Unicamp). E-mail: celo@riseup.net
[2]           Professor Associado MS-5.2 da Faculdade de Educação da Unicamp. E-mail: acamorim@unicamp.br
[3]           Disponível em: <http://pedropeixotoferreira.wordpress.com/pesquisa/>.
[4]              Trata-se da pesquisa de Marcelo Vaz Pupo, intitulada Bem-te-vis imagéticos no encontro com o outro, olhares da movimentação cidade-campo. Disponível em: <http://terradesentidos.org/bem-te-vis/>.

Olhares sustentados e insustentabilidade ambiental pelas imagens


Marcelo Vaz Pupo[1]

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim[2]


Resumo: A partir de imagens e vídeos, esse artigo busca encontros conceituais que nos apoiem a desdobrar as convencionais formas de se olhar para os objetos que cotidianamente nos envolvem. Deslocamento, transição territorial pelas imagens, pontos privilegiados para a ação: são análises por onde a redação desse artigo transcorre, inundado por uma pesquisa de mestrado em divulgação científica e cultural. O conceito de reticulação é utilizado de forma que possamos dimensionar as imagens como dispositivos capazes de pensar a insustentabilidade das representações visuais que hoje narram sociedade e produção, clima e ambiente. Nessa rede cotidiana composta por objetos, discursos e sentidos, interessa-nos propor, como um campo problemático, que desequilíbrios as imagens podem promover quando o assunto gira em torno da identidade camponesa, acreditando que ela tenha implicações para o emaranhado que produz ressonâncias nos estudos audiovisuais e educação, nas relações entre sociedade e ambiente.

Palavras-chave: imagem; transição; educação; campesinato


Abstract: Using images and videos, this article aims to find conceptual meetings that support us to unfold conventional ways of looking at the objects that surround us daily. Displacement, territorial transition through images, privileged points for action: analyses where the writing of this study takes place, filled by a Master’s research in Scientific and Cultural Communication. The concept of reticulation is used so that we can scale images as devices capable of thinking the unsustainability of the visual representations that nowadays narrate society and production, climate and environment. In this everyday network of objects, speeches and senses, we are interested in proposing, as a problematic field, which kind of imbalances images can promote when they revolve around the peasant identity, believing that it has implications for the entanglement that produces resonances in audiovisual studies and education, in relationships between society and environment.

Keywords: image; transition; education; peasantry