XXIII – Natimorto


Renato Salgado de Melo Oliveira[1]

 

 

 

(“A menina comendo pássaro”, Renne Magritte, 1927.  Óleo sobre tela, 74x97 cm, Alemanha)

(“A menina comendo pássaro”, Renne Magritte, 1927.
Óleo sobre tela, 74×97 cm, Alemanha)

 

 

Tudo começa com um convite impossível: o Agente propõe à Voz para se trancarem em um quarto de hotel para sempre. Ele diz que tem algum recurso guardado que pode sustentá-los por quatro ou cinco anos naquele lugar. Não teriam com que se preocupar.

Essa proposta surge depois de um encontro (talvez um desencontro) frustrado no qual o Agente convidou a Voz para um jantar em sua própria casa, na presença da Esposa (cônjuge do Agente) que termina com uma discussão tensa motivada pelo ciúme da Esposa. O casamento acabou, de vez, naquele jantar. Ela o traía com o Maestro – denunciou o Agente para a Voz, já no quarto de hotel.

Depois de uma confusa e pouca acertada negociação eles determinam os seus termos. Ele, o Agente, ficará no quarto para sempre, não sairá para nada, enquanto que ela, a Voz, dividirá com ele o aposento, terá sua liberdade, sairá quando quiser, não suportaria ficar confinada, contrariando, assim, os avisos dele de como o mundo, lá fora, é perigoso, nocivo, e quer apenas destruí-la.

Voz diz o tempo todo se encantar com as histórias contadas pelo Agente. Sempre após uma pequena narrativa, ela retribui afirmando que ele deveria se tornar um escritor, ele nega. É interessante esse mecanismo de elogio e negação a partir do fato de que o autor que faz o papel do Agente é o escritor Lourenço Mutarelli, autor do livro O natimorto, um musical silencioso, obra da qual o filme Natimorto é uma adaptação.

Em uma dessas histórias o Agente conta à Voz que tinha uma tia cartomante, que lhe ensinou, em sua infância, a ler o Tarô. Depois, já adulto, o Agente se tornou um fumante, consumindo uma cartela de cigarros por dia. Foi quando passou a observar os avisos antitabagistas impressos no verso da embalagem dos maços e começou a associá-las com as cartas de Tarô. Como cada dia lhe trazia uma cartela de cigarros nova e, portanto, uma imagem, passou a interpretar a sorte (o destino) daquele dia através da imagem, aproximando-a de um arcano do Tarô. A forma que recebia cartela, posicionando a imagem corretamente ou de ponta cabeça também constituía um elemento da interpretação, como no Tarô tradicional. Seu objetivo era desenvolver essa relação, inventado, inclusive, novos arcanos. A Voz achou um tema fascinante para um livro, ele respondeu negativamente, simulando certo desdém, mas começou a mostrar como funcionavam suas leituras.

A Voz fica instigada com a história e quer saber como se faz essas leituras, pois as imagens são tão terríveis, serão sempre leituras negativas. O Agente diz que não necessariamente, que é preciso estar atento aos símbolos em cada imagem e faz a leitura do maço do dia: uma cena de um homem no leito hospitalar com dois profissionais de saúde, um de cada lado no plano da imagem, dando-lhe assistência. O Agente no papel de cartomante diz tratar-se do arcano maior Diabo, com o diabo ao centro e os dois monstrinhos aos seus lados. Essa carta não tinha em si um bom presságio, trazia o signo da corrupção e da destruição.

O cartomante passa da imagem para o contexto dos dois personagens. O Agente é um caçador de talentos e estava intermediando o encontro entre a Voz e o Maestro, promovendo, assim, a carreira de cantora dela, circunstância essa que fez com que a Voz se encontrasse na cidade e naquele quarto de hotel. Rapidamente o cartomante vincula o Diabo a esse contexto: maldiz o encontro da Voz com o Maestro, afirma que ele não tem a sensibilidade necessária para apreciar a beleza do canto dela e profetiza que essa parceria acabará levando-a a ruína e a destruição. A Voz contesta, diz ser falsa essa leitura, na verdade o Diabo diz respeito ao acordo entre ela e o Agente, a proposta de recolherem ao hotel para sempre. Justo no momento quando todos conhecerão a sua voz, que irá brilhar e terá a grandiosidade como destino, o Agente surge, como o Diabo, e propõe um pacto da ruína, de se fechar, de se prender e se isolar do mundo. Os dois discutem e ela sai do quarto, ele fica. Um mal estar e a sombra da ruína da instalam naquele quarto, a partir de então.

Quando do retorno da Voz ao quarto os dois personagens reatam o diálogo, ele quer se justificar. Admite seu erro de não ter percebido um pequeno detalhe na imagem que muda tudo. O médico da cena está tocando o peito do paciente com as mãos, a partir dessa constatação o cartomante desloca a maquinaria simbólica para esse negligenciado detalhe. Desse modo não se trata mais da temida carta do Diabo com os seus negativos augúrios, mas sim a carta dos Namorados (ou Enamorados), invocando um novo sentido simbólico para a nova relação que se estabelece no quarto. Com essa mudança de constatação o cartomante traz um conjunto novo de símbolos e sentidos que ressignificam o contexto e o destino. Se, na hora do Diabo, emergiu a dependência, as provações, a sedução, a luxúria; agora, na hora dos Namorados, é invocado o afetivo, o livre-arbítrio, a iniciação, a ligação e a castidade (o Agente se declarou assexuado para a Voz anteriormente, e esse tema retorna com a carta).

Esse movimento de interpretação da carta e depois sua releitura traz questões interessantes. Como se estabelece a relação entre os símbolos e o Destino? As cartas e os símbolos anunciam ou inventam o futuro? O Destino se manifesta através dos símbolos, ou os símbolos agenciam os encontros, os poderes, as potências, os afetos, os acontecimentos a partir de um sentido inventado? O Destino está no dia, na narrativa toda, no mundo exterior ao hotel? O que pode resistir às cartas que anunciam o Destino?

Existem na imagem do verso do maço de cigarro dois elementos interessantes apropriados pelo filme: a imagem e a mensagem escrita. As imagens são fortes e violentas, como sabemos, e o Agente as considera fora de seu contexto de propaganda antitabagista. Já a mensagem escrita (“O Ministério da Saúde adverte: fumar causa aborto espontâneo”, por exemplo) é ignorada nos dois momentos em que aparece. No primeiro é quando o personagem está diante do verso do maço, fazendo sua leitura de cartomancia, na qual considera apenas a imagem e descarta a mensagem escrita. Na segunda vez a mensagem escrita aparece na voz do narrador, neste momento, afirmando a indiferença diante dela: “Quem lhe dera ter a sorte do Natimorto. Como não pode trancar o peito dentro de si mesmo, e sabendo que em gestantes o cigarro provoca o nascimento de bebês com facilidade para contrair asma, ele acende o cigarro”. O nascimento de bebês com a facilidade para contrair asma é ignorado diante das ações dos personagens guiadas pelas construções simbólicas vinculadas ao Tarô e do ato fumar constante deles, em um quarto fechado com as sobras dos cigarros se acumulando, e o funcionário do hotel trazendo sempre mais cigarros e café, nunca comida ou outras bebidas.

Essa diferença, entre a palavra e a imagem, ajuda-nos a tentar esboçar um caminho entre as questões levantadas acima. A relação entre o Destino (o futuro) e o simbólico se dá pela incerteza, e não pela adivinhação precisa ou pela afirmação certa. A palavra escrita no maço traz um componente certeiro, institucional, científico e de poder, é mais um aviso do que uma profecia. O que está em funcionamento ali é o poder de uma política, de uma medicina e do consumo. Ele determina, através do medo, o destino, fumar causa a morte. É direto, e não tem espaço para negociação. Por isso que se torna uma frase desconexa, que não consegue se afirmar nem no interior absoluto do quarto (espécie de útero profano), nem na exterioridade máxima do “lá fora” (um tipo de realidade fora da caverna).

Já a imagem, como o Tarô, e talvez aí que esteja a grande aproximação entre esses dois, se faz pela incerteza, pela indeterminação. A característica do futuro é o porvir, o desconhecido. E talvez seja possível através dessa incerteza pensar uma História do tempo e do espaço. O espaço já foi marcado, para os europeus, com o signo da indeterminação, do indefinível. Os mapas da antiguidade e medievais tinham a sua Terra incógnita ou mesmo avisos fantásticos, fabulosos (DELEUZE, 1997), avisos de outra espécie, diferentes dos encontrados em maços de cigarros, onde se liam: hic sunt dracones (aqui há dragões) ou, ainda mais comum, hic sunt leones (aqui há leões). Mas sobre o espaço se estabeleceu uma Geografia da certeza, e das linhas descritivas. Contra essa Geografia o futuro resiste, mesmo diante da Meteorologia (HOBSBAWM, 1998). Desse modo, o que faz funcionar, dentro do filme, as imagens proféticas, não é a capacidade de anunciar o futuro, de afirmá-lo, mas sim de trazer a incerteza do futuro para os afetos, para os sentidos, para as imagens e para as palavras (diálogo entre os personagens). Por esse caminho, o afeto se torna uma resistência ao poder e é através dele que o narrador pode dizer: “[…] e sabendo que em gestantes o cigarro provoca o nascimento de bebês com facilidade para contrair asma, ele acende o cigarro”, pois passa existir uma possibilidade de vida para além da normatização do poder.

O Agente vai cada vez mais se afundando no isolacionismo do quarto, operando uma gestação diabólica (agora assim o Diabo da carta de tarô) dentro do útero profano que é o quarto do hotel. Em uma imagem forte, tomada de cima da cama, com o Agente deitado e o lençol enrolado em sua perna, faz com ele se converta na carta de tarô Enforcado (ou O Pendurado), um símbolo ligado à noção de gestação, de aceitação do Destino e do Sacrifício. Mas que começou sendo apresentada de ponta cabeça (trazendo também a inversão do sentido) e com o narrador dizendo: “Ninguém engana o jogo, no tarô sempre perdemos, no olhar de quem ele mais amava, ele viu o medo”, a sorte se torna um jogo de azar.

Ao longo do filme não vão aparecendo apenas os arcanos maiores tradicionais do tarô, mas os inventados pela própria narrativa. O Agente, a Voz, o Maestro e a Esposa, são eles também arcanos maiores, que entrelaçam o simbólico e o Destino. Porém, o que vai sendo criado no interior do útero profano é o arcano que significa o sentido dessa história: Natimorto. Aquele a quem foram poupadas as incertezas da vida, que foi do útero direto para a morte, e não precisou sofrer dos desejos e da materialidade da existência, que nunca sofreu do indefinido. Que pode se trancar no quarto e comer o passarinho vivo sem expressão no rosto. Fazendo da vida como se faz com as mensagens escritas antitabagistas: sendo indiferente a ela. Trata-se de um arcano doente, fruto de um útero profano, feito de sobras de cigarro, fumaça e avisos de morte. É interessante notar que o Natimorto, filho do útero profano e do cigarro, é o inverso do poema Tabacaria de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa).

Neste momento, torna-se impossível descobrir o que resiste ao Destino, à incerteza, ao indefinível. Pois o que emerge no limite entre o simbólico e o porvir é a loucura devastadora de uma fome sem expressão, sem “rosto”, sem um corpo se contorcendo. Será justamente o horror da loucura o que resiste ao Destino? Depois de todo o filme sem pedir comida, sem se alimentar, o Natimorto tem uma fome sem vida.

“Quanto você pesa?”

 

Referências

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.

HOBSBAWM, Eric. Sobre história. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

 

Recebido em: 1/011/2016

Aceito em: 1/011/2016

 


[1]Graduado em História, mestre em Divulgação Científica e Cultural, e doutor em Teoria e Crítica Literária, todos títulos pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: renatosmo@gmail.com

 

XXIII – Natimorto


Natimorto. Direção: Paulo Machline. Produção: Paulo Roberto Schmidt e Rodrigo Teixeira. Roteiro: Lourenço Mutarelli (autor original) e André Pinho. [S.l.]: Brasil, 2009. (92 min), color.