Tratado do ter a ver: notas a partir de motivos visuais Waiwai*


Evelyn Schuler[1]

Alfredo Zea[2]

 

 

De que se trata?

Essa é uma pergunta que sempre está rondando, não é?

Em torno de qualquer exposição, seja de um texto ou de um vídeo.

Mesmo se entendemos qualquer, em seu sentido quase despercebido, como algo querido, afetivo.

“De que se trata?” é talvez uma pergunta que cada um precisa responder novamente, sempre novamente.

Neste caso, é uma questão que não espero que outros respondam por mim, mesmo que eles eventualmente apareçam como contraparte.

No mais, por sua amplitude, ela só pode ser abordada parcialmente.

Aqui, eu entendo essa questão como uma pergunta pelo ter a ver, por essa fórmula que é, ao mesmo tempo, tão familiar e tão estranha: ter a ver

 

tudo a ver

algo a ver

nada a ver

– O que é que nos diz a fórmula? – pergunta o estrangeiro.

Parece-me que a fórmula diz algo que não se entende e, por sua vez, se entende algo que ela não diz.

O que se entende é uma relação, ter a ver um com outro.

Mas isso não é evidente, porque o que ela diz e não se entende é que o que há entre um e outro não é uma conexão direta, mas o fato de que ambos têm algo a ver conjuntamente.

– Algo, tudo ou nada, – diz o estrangeiro.

Sim, mas uma e outra vez no registro visual. O que me chama a atenção é que a fórmula não parece ter necessidade de ser mais explícita para funcionar. Ela é meramente alusiva a seu objeto.

– Então, o que há para ver? – diz o estrangeiro.

Na medida em que trata de um ver sem definição do visto, é possível que o que a fórmula coloca em primeiro plano seja a visualidade ela mesma.

Da luz e da visão se disse justamente que, embora ambas permitam a aparição das coisas, elas mesmas tendem frequentemente a ocultar-se.

Neste caso, no entanto, é através da subtração de seu objeto que a fórmula suspende o processo do ver, destacando-o, e, ao mesmo tempo, nos suspende na visualidade.

No ter a ver se pode entrever algo visualmente parecido ao que se disse da poesia de Celan, que ela é um dizer sem algo dito.

– Parece difícil capturar um ver sem nada visto – diz o estrangeiro.

Chegamos a um impasse apenas se pretendemos ver de modo direto a visão. Mas o ter a ver talvez nos ofereça algo diferente. É uma fórmula que busca rodear a visão, contorná-la, circunscrevê-la.

É um rastro da visão, mas sem a promessa de conduzir-nos até sua presença, mas de mostrar-nos, no rastro mesmo, parte da visão.

O que o ter a ver expõe é, de certa forma, um vazio constitutivo do ver.

 

Os não-vistos

Os Waiwai nos falam dos enîhni komo, dos não-vistos, em busca dos quais eles empreendem vastas expedições, o que chegou a dar-lhes o apelido de “argonautas da Amazônia”.

Mas o perturbador destas campanhas não é tanto a sua extensão, mas o fato de que sua busca, devido à definição de seu objeto, os não-vistos, não têm fim. O destino destas expedições não é chegar, mas – como efetivamente ocorre – reiniciar-se incessantemente.

À distância, o ter a ver aparece como uma contraparte do esquema waiwai.

Se o ter a ver é um ver sem definição do visto, há de outro lado uma definição do visto que mantém a visão em suspensão. E é justamente neste momento de flutuação, nesta forma de não ver, onde a visão aparece como um dispositivo antes imprevisível: a placeholder, que guarda o lugar de aparição das coisas.

 

Placeholder

Um placeholder não é simplesmente um contêiner a ser preenchido por um acontecimento indistinto. É uma zona de emergência, inclusive com o que há de urgente nesta formulação.

Ou é algo assim como um estacionamento, se também aí podemos assistir ao evento mínimo entre o acontecer de algo e de nada, ou seja, se também aí se decide o estado das coisas.

Um placeholder é um espaço passivo, sim, mas o é de um modo mais intenso que o de qualquer forma de agência. Enquanto placeholder, o ter a ver é uma fórmula expectante, pendente do aparecimento e também, do desaparecimento dos outros.

 

O clamor das imagens

No quadro de Arshile Gorky, The Artist and His Mother, assistimos a um deslocamento dramático do ter a ver, no qual a atenção provisória da fórmula aparece como resposta a uma demanda.

O ter a ver sabe que há uma demanda e um clamor do visto que não depende da faculdade de ver, mas que vêm da imagem, do que sobrevive em outra parte.

Essa receptividade é a contraparte do que podem as imagens, da sua potência inacabável.

Há uma cena perturbadora em Ararat, o filme de Egoyan, onde a biógrafa de Arshile Gorky invade e interrompe o set da filmagem para manifestar sua discordância com o modo em quem se conta o genocídio sofrido pelos Armênios.

Entre os mortos e feridos da filmagem, ela atravessa o set onde se encena o assédio turco ao vilarejo de Van.

Naquele momento acontece algo prodigioso: um dos personagens do filme, um médico norte-americano, lhe repreende sua intromissão no meio de uma situação de guerra e de desesperada urgência.

É o filme, é a ficção, é a vida das imagens da memória, da história, da invenção fazendo valer seus direitos sobre a realidade do presente e sobre o ver.

 

A paixão de ver

Mas, se há um ver e uma visão do ter a ver, há também uma irradiação da fórmula sobre quem vê.

A ênfase da fórmula na visualidade não tem apenas o efeito lateral de instalar as partes, tanto nós como os outros, num plano visual, mas também de interpelar-nos como entidades visuais.

Através do ter a ver emerge o que há de visual nas partes e, extrapolando este efeito, o que há de espectral nelas. Devir-espectro é uma função do ver e do não-ver, das alternâncias da visão.

O olhar enviesado, lateral, dos Waiwai quando cheguei na comunidade, tinha esse efeito dissolvente, espectral; um olhar que me obviava como se aí onde eu me encontrava não tivesse nada consistente ou, mais ainda, nada a ver.

Antes que uma faculdade, o ver é uma paixão. É a paixão de ver, da qual nos falam inúmeros relatos ameríndios, onde é quem vê quem sofre os impactos da visão.

O ter a ver é esse placeholder que aguarda, guarda e resguarda o que podem as imagens sobre quem vê. Em comparação, a relação aparece menos como a matriz que como uma modalidade nivelada, como uma redução clara e distinta do ter a ver.

 

Avoir à voir

Mas o que pode ser o ter a ver se não é uma relação?

Para quê este trabalho prévio ou suplementário da visão no ter a ver?

De que se trata com o ter a ver?

Para além da relação, a fórmula do ter a ver responde a essa pergunta no sentido de que ela é uma forma de tratar. O ter a ver é um trato. Trata-se disso.

Há um sentido ontológico com o qual o trato circula entre nós, aí onde nos perguntamos “de que se trata?” ou respondemos essa pergunta apelando à frase “trata-se disto ou daquilo”.

Mas aqui não apenas se diz que o trato é um modo de ser; no avesso desta formulação, se diz que o ser é um modo de tratar. Essa é a réplica radical do tratar.

É o ser que é uma tentativa de ser, uma forma de tratar.

Não há aqui mais um entrecruzamento com outra constelação waiwai? Penso na figura dos yesamarî, que talvez seja a resposta waiwai à pergunta de quê se trata. Do que se trata é sempre de um yesamarî, de um rodeio. De uma busca sem fim, de um olhar desfocado, de intercalar sempre mais uma história.

 

O contrato das partes

O ter a ver é o contrato das partes, que nasce da inquietude delas aí onde as partes podem mais que o todo. As partes vivem na impropriedade, na medida em que a emergência de uma parte é, para qualquer outra, um sinal de sua limitação. No entanto, esse desassossego não é outra coisa que a primeira condição do contrato.

Um belo título de Blumenberg nos diz que “a inquietude atravessa o rio”- Die Sorge geht über den Fluss –, o rio que separa as partes. O “sol encerrado” – le soleil enfermé –,  de Raymond Roussell, que se levanta entre a transparência e a opacidade, é sua resposta à incomensurabilidade das palavras e das coisas. Os yesamarî waiwai, por sua vez, discorrem entre o olhar enviesado e os não-vistos, como uma invenção eminente de sua arte de criar uma certeza a partir de duas ou mais incertezas.

Há um abismo de parte a parte, entre uns e outros, entre a realidade e a ficção, entre as palavras e as coisas, entre o ter e o ver. Enquanto fórmula do tratar, o ter a ver flutua sobre o duplo abismo do ter e do ver. Mas ela mesma, como o mostra Gorky, abre um novo abismo diante do qual é preciso deter-se.

 

A felicidade da imagem

No início de Sans Soleil, Chris Marker imagina outro filme feito apenas da imagem feliz e fugaz de três crianças na Islândia que é seguida até o fim – o fim do filme – pela fita negra. “If they don’t see happiness in the picture, at least they’ll see the black” é o melancólico balanço deste projeto de um filme que busca mostrar uma imagem da felicidade. Esse esplendor escuro e essa vida separada, esse lado recalcitrante, sua resistência à relação, me parecem distintivos se não da imagem da felicidade, então da felicidade da imagem. Há um fundo duplo por onde ela escapa uma e outra vez, enquanto nos sugere que em cada parte habita um novo ponto de partida.

 

Recebido em: 08/07/2017

Aceito em: 01/08/2017


* Agradecemos o apoio do Instituto Brasil Plural (IBP) para a realização do ensaio audiovisual Tratado do Ter a Ver (a partir de motivos visuais waiwai). Uma versão anterior deste projeto foi publicada em francês na Revista Multitudes. Ver: http://www.multitudes.net/traite-de-lavoir-a-voir-a-partir-de-motifs-visuels-waiwai/

[1] Evelyn Schuler Zea é Professora no Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde atua também no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) e no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET). Atualmente é membro do Advisory Board no International Centre Interweaving Performance Cultures na Universidade Livre de Berlim (FU-Berlin) e pesquisadora do INCT Brasil Plural (IBP).

[2] Alfredo Zea é jornalista, tradutor e editor independente. Estudou história e filosofia em Lima, Buenos Aires e Basel.

 

 

Tratado do ter a ver: notas a partir de motivos visuais Waiwai

 

RESUMO: Trata-se de um ensaio audiovisual a partir de motivos Waiwai, povo ameríndio que vive e circula entre as fronteiras do Brasil e da Guiana. Imagens e palavras são aqui rodeios em torno a potência das partes e da fórmula – tão familiar e tão estranha – do ter a ver.

KEYWORDS: Ter a ver. Rodeios. Waiwai.


Tratado del tener a ver: notas a partir de motivos visuales Waiwai

RESUMEN: Se trata de un ensayo audiovisual a partir de motivos Waiwai, pueblo amerindio que circula entre las fronteras de Brasil y Guyana. Imágenes y palabras son aquí rodeos al redor de la potencia de las partes y de la formula – tan familiar y tan extraña – del tener que ver.

PALAVRAS-CHAVE: Tener que ver. Rodeos. Waiwai.


SCHULER, Evelyn; ZEA, Alfredo. Tratado do ter a ver: notas a partir de motivos visuais Waiwai. ClimaCom [online], Campinas, ano.4, n.10, Nov. 2017. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=7795