Terrenos incultos e jardins emergentes: a vida das plantas em interstícios urbanos | Arthur Simões Caetano Cabral


Arthur Simões Caetano Cabral[1]

 

[…] se é comuníssimo sonhar com uma raiz que vai levar seu ato colorante à flor resplandecente, é possível, entretanto, encontrar belas e raras imagens que conferem uma espécie de força enraizante à flor contemplada. Florescer bem é então uma maneira segura de enraizar-se (Bachelard, 2003, p. 224).

 

As plantas ocupam um lugar ambivalente nas cidades contemporâneas. Via de regra, não se tolera o vegetal senão sob formas amansadas, enquadradas por ações de ordenamento e manutenção de espaços livres urbanos ou a demandas objetivas de arborização viária e do planejamento de parques e áreas verdes públicas. À parte dessas situações, em que é chamado a comparecer controladamente, o vegetal representa uma presença indesejada ao longo da história das cidades, um outro a ser combatido ou mantido do lado de fora, em silêncio. Os significados de sua alteridade, entretanto, sobrevivem em latência. Em meio às cidades, qualquer nesga de terra exposta ou terreno baldio basta ao porvir enraizante do vegetal.

A relação estabelecida entre plantas e pessoas, no meio urbano, encontra-se hegemonicamente embotada por certo desinteresse ou má vontade de uma das partes envolvidas, que parece ainda desconhecer, ou conhecer mal, os elos inextricáveis que estabelece com a outra. Aos seus olhos, qualquer planta que nasça, sem que se plante, seria entendida como mato ou sarça, um intruso, a cada broto fortuito, a denotar uma marca de desleixo ou descuido a ser evitada, carpida, expurgada. Referimo-nos, especialmente, aos modos pelos quais costuma orientar-se a gestão de espaços livres públicos, onde as práticas de manejo se limitam, em geral, a roçagens e podas periódicas, frequentemente alienadas da vida das plantas e dos consórcios, sempre novos, que sua existência nos propõe.

Em resposta, a outra parte dedica ramos em “verde novo, em folha, em graça, em vida, em força, em luz”, se recorrermos aos versos de Caetano Veloso (1985), voltando a ramificar depois de podas. As plantas bebem da terra pelas raízes e acenam à luz do sol. Nos avessos das cidades, escavam berços para o rebentar de sementes e esporos anônimos, viajantes fecundados ao sabor do vento, das chuvas e da mobilidade dos animais, gérmens da errância contínua das plantas. Invisível à desatenção cotidiana, a vida do vegetal se dissimula entre ruídos urbanos. Trata-se de plantas que, em geral, “são pouco apreciadas, não por não serem consideradas belas, mas porque elas sempre estão onde não se espera” (Clément, 2017, p. 103). Sob essa perspectiva, os imaginários hegemônicos deixam lacunas à emergência de outras imagens, nutridas pelos valores de persistência, vigor e inventividade dos seres vegetais. (Leia o ensaio completo em PDF).

[1] Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Docente na Universidade Federal de Goiás. E-mail:arthur.cabral@ufg.br

 

Recebido em: 15/09/2022

Aceito em: 15/10/2022

 

 

Terrenos incultos e jardins emergentes: a vida das plantas em interstícios urbanos

 

RESUMO: Este texto investiga feições e dinâmicas associadas aos modos de ser de plantas denominadas ruderais em espaços urbanos residuais. Em ciclos breves e disseminação ligeira, são pioneiras em ambientes inóspitos e os transformam em meios abertos ao estar e ao fazer de seres diversos. Seus deslocamentos se diluem no fluxo quase imperceptível de pólen, sementes e esporos; seu enraizamento se beneficia da ação das águas, do vento, da luz e da terra. Operando misturas e conferindo formas a substâncias elementares, rearranjam a realidade a ponto de transmutá-la em lugares onde se pode viver. Sob designações frequentemente depreciativas e tentativas de apagamento ou controle, a flora ruderal insiste em apresentar qualidades a serem aferidas e apreciadas, associadas aos valores de persistência, renovação e vigor pelos quais tramam táticas de sobrevivência. A diversidade de conjuntos que configuram em consórcio com outras plantas e outros seres, humanos e não humanos, vem à tona em espaços indestinados das cidades, faixas de servidão, refugos fundiários. A partir de estudos realizados ao longo de acostamentos da cidade de Goiás (GO), em áreas de expansão urbana, discute-se o repente do vegetal em brotações incontidas, fundos de quintais e jardins emergentes.

PALAVRAS-CHAVE: Flora ruderal. Espaços residuais. Percepção direta e imaginário.

 


 

Wasted lands and emerging gardens: the life of plants in urban interstices

 

ABSTRACT: This text investigates features and dynamics associated with the modes of being of plants called ruderals in residual urban spaces. In brief cycles and rapid dissemination, they are pioneers in inhospitable environments and transform them into means open to the presence and action of diverse beings. Their displacements are diluted in the almost imperceptible flow of pollen, seeds and spores; its rooting benefits from the action of waters, wind, light and earth. Operating mixtures and giving forms to elementary substances, they rearrange reality to the point of transforming it into places where one can live. Under frequently derogatory designations and attempts at erasure or control, the ruderal flora insists on presenting qualities to be measured and appreciated, associated with the values ​​of persistence, renewal and vigor for which they launch survival tactics. The diversity of sets that form a consortium with other plants and other beings, humans and non-humans, comes to the fore in unintended spaces in cities, servitude strips, land refuse. Based on studies carried out along the shoulders of the city of Goiás (GO), in areas of urban expansion, we discuss the suddenness of plants in uncontrolled germination, backyards and emerging gardens.

KEYWORDS: Ruderal flora. Residual spaces. Direct perception and imaginary.


CABRAL, Arthur Simões Caetano. Terrenos incultos e jardins emergentes: a vida das plantas em interstícios urbanos. ClimaCom – Políticas vegetais [online], Campinas, ano 9, n. 23., dez. 2022. Available from:https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/terrenos-incultos/