Setor sucroalcooleiro precisa se preparar para as mudanças climáticas, indica estudo

Riscos ambientais, econômicos, sociais e tecnológicos na produção de açúcar e álcool integram estudo que analisa possibilidades de adaptação do setor às mudanças do clima

Por: Meghie Rodrigues

A implantação do programa Proálcool no Brasil, na década de 1970, deu impulso ao setor sucroalcooleiro, que, atualmente, responde por cerca de 2% do PIB nacional e pelo suprimento de 5% da demanda energética do Brasil. É o maior setor do agronegócio e movimenta R$70 bilhões por ano – contra os R$50 bilhões do mercado da soja. Esta importância econômica vem atrelada à imagem do álcool como combustível verde: pesquisas atestam que o etanol de cana-de-açúcar emite menos dióxido de carbono que a gasolina. Um estudo da Embrapa Agroecologia, realizada em 2009, constata que essa diferença chega a 73%. No entanto, a sustentabilidade do etanol pode estar comprometida pelo seu processo de produção, que passa por uso de diesel nos caminhões agrícolas e pela queima de bagaço da cana, duas fontes de emissão de gases causadores de efeito estufa (GEEs), além dos impactos nos usos da terra e na saúde de pessoas que trabalham no ciclo da cana. Estes e outros aspectos foram problematizados no projeto “Geração de cenários de produção de álcool como apoio para a formulação de políticas públicas aplicadas à adaptação do setor sucroalcooleiro nacional às mudanças climáticas” (AlcScens), que teve por foco analisar os processos em torno do plantio e transformação da cana-de-açúcar – em especial na produção de etanol, entrecortada pela relação com mudanças climáticas e formulação de políticas públicas –, alguns deles, já em curso.

“Há uma política econômica no sentido de beneficiar o etanol no país, aliado à perspectiva de se reduzir os impactos das mudanças climáticas com a bioenergia – principalmente na busca de tecnologias para a produção de etanol de segunda geração” (feito a partir de bagaço e palha de cana), conta Luiz Gustavo de Souza, um dos pesquisadores em economia no projeto. Concluído no último dezembro, o AlcScens ressalta que sistemas de manejo mais sustentáveis são desejáveis e possíveis para o setor sucroalcooleiro – e podem trazer resultados interessantes para sua adaptação às mudanças climáticas. O projeto teve a participação de um grupo de 19 pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista (UNESP), além de 45 bolsistas e estagiários de vários níveis acadêmicos.

Os aspectos apontados pelos pesquisadores chamam atenção para os desafios a serem enfrentados pelo setor, principalmente no estado de São Paulo, que detém cerca de 60% das áreas de cultivo no Brasil, maior produtor de cana-de-açúcar do mundo. O país é responsável por gerar mais da metade do açúcar consumido no planeta e é também o maior produtor de etanol, com perspectiva de dobrar a produção em pouco mais de uma década. Números do Ministério da Agricultura indicam que a projeção para 2019 é de cerca de 60 bilhões de litros, duas vezes o que se registrou em 2008.

No entanto, “a cana-de-açúcar está se expandindo para regiões que vão continuar a ser áreas de risco climático, em especial em relação à água, pela necessidade de irrigação”, alerta Jurandir Zullo Jr., pesquisador do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp e coordenador geral do estudo. Ele conta que, no início do projeto, no fim de 2010, não se falava em irrigação de cana, mas hoje isto se tornou uma questão premente para o setor. “É necessário desenvolver novas técnicas de plantio e manejo, assim como variedades da planta que sejam mais resistentes às mudanças climáticas”.

Se o desenvolvimento de cana-de-açúcar geneticamente adaptada às mudanças do clima ainda é uma possibilidade distante (já que novas variedades demoram cerca de dez anos para entrar no mercado), há quem aponte para a utilização de esgoto doméstico como alternativa de irrigação dos canaviais. Duas pesquisas de doutorado defendidas na Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp, no ano passado, preveem o uso de um sistema de tubos semi-superficiais, que, instalados a 20 centímetros de profundidade, gotejam o efluente nas raízes da cana. A planta utilizaria a terra ao redor como filtro natural e teria um alto nível de aproveitamento dos nutrientes provindos desse esgoto. A ideia rendeu o Prêmio de Responsabilidade Ambiental a Eduardo Barbosa e Leonardo dos Santos, autores das teses.

 

Imagem produzida durante oficina do grupo multiTÃO (Labjor-Unicamp), que fez parte do projeto Vida e tempo em proliferação. Veja mais em: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=263.

Imagem produzida durante oficina do grupo multiTÃO (Labjor-Unicamp), que fez parte do projeto Vida e tempo em proliferação. Veja mais em: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=263.

Interdisciplinaridade e questões delicadas

O desenvolvimento de tecnologias de modificação genética para criação de novas variedades da cana foi um dos aspectos tratados pelo AlcScens. Interdisciplinar, o projeto agregou dez centros de estudo na Unicamp e observou o ciclo da cana a partir de várias perspectivas. Entre elas, as relações entre plantio, trabalho, saúde, migrações e segurança alimentar de cortadores de cana, bem como questões envolvendo a comunicação entre pesquisadores, produtores, formuladores de políticas públicas e trabalhadores das lavouras.

Comunicação esta que foi uma das questões pungentes para a pesquisa: por um lado, traçando uma ponte entre cientistas, produtores de cana e formuladores de políticas públicas através da criação de um website para o projeto. Por outro, analisando discursos e imagens que circulam pelas mídias sobre as mudanças climáticas em textos de jornais, instituições de pesquisa, agências de fomento, em políticas públicas, documentos intergovernamentais e livros sobre divulgação científica. Pesquisadores do Labjor, Labeurb e grupo MultiTÃO (que, coordenado pelo Labjor-Unicamp, conta também com a participação de pesquisadores e alunos de outras instituições) perceberam, nestes textos, uma relação moral entre homem e meio ambiente, que, apoiada pelo discurso científico, frisa uma necessidade de mudança de comportamento que individualiza as responsabilidades pelas mudanças ambientais. Este processo de individualização apaga as tensões e contradições provenientes das relações entre política, economia e meio ambiente, esvaziando o discurso sobre mudanças climáticas do seu potencial de intervenção na realidade. A incompletude e a incerteza foram consideradas instrumentos relevantes para uma reflexão que não leva em conta a ciência apenas como um processo fechado e estabelecido.

Ainda na comunicação, foram feitas investidas em criações que buscaram conectar arte e ciência, em busca de outros funcionamentos para as palavras, imagens e sons de divulgação das mudanças do clima. Deslocar imagens do seu contexto e experimentar técnicas de intervenção nelas – sobreposições, rasgos, colagens – se mostrou uma forma interessante de provocar a abertura para outros universos sensíveis; principalmente o imagético, povoado de noções pré-estabelecidas e estabilizadas.

Além da comunicação, aspectos como migrações e relações entre política e economia no setor canavieiro foram objeto de observação e estudo do projeto. Para a socióloga Rosana Baeninger, tal interdisciplinaridade foi fundamental para a pesquisa. Ela é pesquisadora do Núcleo de Estudos da População (NEPO), da Unicamp, e colaborou no núcleo temático de segurança alimentar e demografia do AlcScens. “Cruzar os dados do nosso grupo com os de outros – da economia, por exemplo, ao falar de questões do mercado de trabalho formal e informal envolvendo a cana – ajudou a ressignificar várias questões que estávamos trazendo”, conta.

Uma destas questões é a sazonalidade das correntes migratórias envolvendo o trabalho nos canaviais em Ribeirão Preto e Piracicaba. Para ela, entender o funcionamento destes fluxos requer também a compreensão de aspectos que afetam a saúde, as condições de trabalho e a segurança alimentar destes migrantes, e como este jogo se dá para além das fronteiras do Brasil. “Não se pode entender migração sem entender o que acontece no cenário internacional – de outra forma, não há como como entender porque as pessoas vêm para São Paulo cortar cana”, diz. Isto porque o que envolve as usinas é “o jogo do capital – e não do nacional, mas do internacional. Quantas usinas não têm capital internacional?”, observa.

Outras questões delicadas também emergiram no desenvolvimento da pesquisa. “Vai-se manter o trabalho, que é extenuante e, não raro, análogo à escravidão pelo fato de que se tem trabalho, ou se mecaniza todo o processo e deixa-se pessoas sem emprego?”, pergunta a demógrafa Tirza Aidar, pesquisadora do núcleo de segurança alimentar e demografia do AlcScens. “É preciso levar muitos aspectos em consideração nesse tipo de análise”.

Projeto temático da Fundação de Apoio à Pesquisa de São Paulo (FAPESP), o AlcScens resumiu a experiência em um relatório lançado no fim de fevereiro. O documento, que tem mais de 600 páginas, se encontra sob avaliação do órgão de fomento.