Réquiem para a ilha do Arapujá


 

 

Dhemersson Warly Santos Costa[1]

Carlos Augusto Silva e Silva[2]

Maria dos Remédios de Brito[3]

 

 

Para um breve proêmio

Walter Benjamin sempre dizia que “para se conhecer uma cidade é preciso se perder nela” (BENJAMIN, 2006, p. 167). Assim, convido você, caro leitor, a se perder nos versos dessa carta para conhecer a ilha do Arapujá.

A ilha do Arapujá também é conhecida como “ilha do capacete”, pois sua forma geométrica lembra o capacete de um soldado de guerra. Localizando-se defronte a orla da cidade de Altamira, a ilha é composta por uma rica biodiversidade de flora e fauna, inclusive hábitat único de diversas espécies de animais como o Plesiolebias altamira e Pituna xinguensis, peixes que vivem em pequenas poças temporárias formadas na ilha durante a estação chuvosa (MACHADO et, 2008).

A riqueza dessa biodiversidade está ameaçada pela construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte. O empreendimento está em construção desde o ano de 2011, e pretende barrar o Rio Xingu, um importante rio da Amazônia, para geração de energia elétrica.

Com o barramento do rio milhares de quilômetros de vegetação serão cataclismadas pelas águas do Xingu – entre as regiões que serão atingidas está a ilha do Arapujá. Uma das medidas para contenção dos impactos ambientais é a supressão vegetal da floresta para evitar a liberação de CO2 nas áreas inundadas.

A obra já está em processo de conclusão, boa parte da floresta já foi devastada, contudo muitas “promessas” não foram cumpridas: as florestas foram derrubadas e queimadas sem o devido aproveitamento da madeira, os animais não foram devidamente resgatados e, sem ter para onde correr, tornaram-se parte das cinzas que agora (de)compõe o solo.

Assim, esta carta-imagem trata-se de uma experimentação movimentada por prosa e verso, prosa ou verso, mais prosa que verso. Suplico-lhes desde já que essa carta seja narrada aos ouvidos delicados, ou explanada em praças públicas em alto e bom tom aos ouvidos delirantes, de forma que essas palavras sejam arrancadas desta materialidade e pulverizadas pelo vento para outros corpos, lares, escolas, assembleias e congressos.

 

 

Altamira, 02 de novembro de 2016

Saudações meu velho amigo…

Escrevo-lhe essa carta com a ingênua tarefa de tentar matar um pouco dessa saudade que já não cabe mais dentro de mim. Peço-lhe perdão pelas palavras manchadas e pela caligrafia disforme, não tem sido nada fácil conter as lágrimas que trasbordam esse papel, muito menos empunhar um lápis, quando a emoção toma conta deste corpo já calejado, cujas mãos tremem seguindo o ritmo deste saudoso coração que ainda bate acelerado no compasso da batucada que entoa as rodas de carimbó[4]

Infelizmente, a saudade não é a única razão que movimenta essa carta, trago-lhe notícias não tão boas de nossa pequenina Altamira, a princesa louçã da transamazônica, banhada pelo majestoso rio Xingu, que (re)corta e adentra a mata formando um excelso relevo, que mais parece um labirinto de águas profundas e serenas que alcançam um tom de verde tão verdejante que chega a se misturar com o verde da floresta, em uma harmoniosa composição de aquarelas que para mim mais parece um rio-floresta.

Recordo-me que passávamos horas, que mais pareciam minutos, correndo pelas margens do Xingu, banhando em suas misteriosas águas doces, sob um escaldante sol de verão… Ainda posso sentir o frescor das águas escorrendo pelo meu rosto, enquanto os raios solares estampavam o meu peito, êxtase puro de felicidade, que só era interrompido com o entardecer, quando parávamos para contemplar o esplendor do pôr-do-sol ali mesmo na beira, sentado em baixo das mangueiras que deveras vezes nos protegiam do calor e nos brindava com o seu fruto.

Revirando meu surrado baú, encontrei algumas fotografias antigas, estou colando algumas nessa carta, pois minhas humildes palavras jamais serão capazes de retratar em tamanho detalhe a beleza de minhas memórias e a dor que me aflige o peito.

Fonte: Página do Blog Loucos por Altamira

Fonte: Página do Blog Loucos por Altamira

Lembra-se desta foto? Deitávamos debaixo de um céu azul contemplando a ilha do Arapujá que fica defronte a cidade. Recordo-me que ela era sua queridinha, por justiça divina, herança de família já que teus antepassados por muitos séculos completaram com ela os ciclos da vida, nasceram, cresceram, reproduziram e morreram (com)(n)ela, a ilha do A-R-A-P-U-J-Á. O significado de seu nome? Não me lembro bem, quando cheguei já estava lá, antes do meu avô chegar há mais de cinquenta anos também já era Arapujá.

Fonte: Página da agência de reportagem e jornalismo investigativo

Fonte: Página da agência de reportagem e jornalismo investigativo

Esta foto foi tirada há três anos, o Arapujá agora em cores, desvelando sobre a branquitude desse papel a imponência da floresta esculpida e modelada pelo arquiteto rio Xingu. Quer um conselho meu amigo? Guarde bem estas lindas recordações contigo, esforça-te para não esquecê-las jamais. Faça de tudo para não deixar que o tempo enfraqueça a tinta que está impregnada nessa carta levando minhas palavras. Suplico-lhe que jamais permita que esse efêmero papel conclua seu processo natural de (de)composição, (de)compondo com ele meus versos, minhas fotografias, meus sentimentos, meu amor, nossa ilha, nosso Arapujá.

Sinto informar meu amigo, que o Arapujá de nossa infância já não existe mais… É meu caro, nem a deusa Iara, nem Tupã[5] foram capazes de proteger nosso pequeno (re)canto da ambição do homem. O Arapujá morreu!

Tudo começou com rumores da construção de uma hidrelétrica em nosso rio Xingu. Foram mais de vinte anos de luta e resistência dos cavaleiros da Amazônia. Verdadeiros heróis que defenderam bravamente o nosso rio, a floresta, o chão, a cultura, as memórias, até serem vencidos pelos “homens de preto”.

Já tem um tempo que eles começaram as obras do tal “empreendimento”, denominado de Hidrelétrica de Belo Monte, chamado por mim de “Belo Monstro”. Logo a cidade passou a ser povoada também por milhares de homens estranhos, vestidos de cinza, cujas roupas possuíam sinalizações brilhantes que podiam ser vistas a quilômetros de distancia e na cabeça um capacete, tão opaco quanto a vestimenta.

Pelas ruas da cidade circulavam máquinas, caminhões, tratores e muitos ônibus, na verdade centenas deles, levando trabalhadores para os canteiros de obra, onde o rio seria barrado. Olha que ironia do destino, o rio Xingu que por bilhões de anos moldou e modelou a ilha do Arapujá, agora será obrigado a cataclismar sua mais sublime obra. O que antes era uma harmoniosa relação de (co)existência, transformou-se em uma espécie de “competição interespecífica”, Xingu versus Arapujá, rio contra floresta, apenas um pode ficar.

É claro que essa não era uma luta justa para nossa menina dos olhos, diante do majestoso Xingu, o Arapujá estava condenado a torna-se rio. No intuito de “amenizar” os impactos ambientais, os ditos homens de preto decidiram derrubar a floresta, antes que as águas tom(b)assem o lugar.

Confesso que rezei todos os dias por um milagre, mas o fatídico dia chegou. Lembro-me com pesar esse dia. Era uma manhã de segunda-feira, caminhava lentamente pela orla, como de costume fui cumprimentar a ilha, eis que uma angústia atravessa o meu peito, o coração acelera, as lágrimas começam a cair, o sentimento de dor e desespero toma conta de mim, o céu escurece… Assassinaram o Arapujá!

Imagem 3 Ensaio Requiem

Tempos de angústia! Durante o dia as máquinas operavam a todo vapor, derrubando tudo que era verde, à noite o que resistia era tomado pelas chamas, cruéis e impiedosas. Em pouco tempo o verde que antes tomava conta da paisagem, deu lugar ao cinza e ao marrom do chão.

Fonte: Página do portal AquaA3

Fonte: Página do portal AquaA3

Perdão meu amigo, falhei nessa nobre missão de proteger a nossa ilha. Assisti ao espetáculo do lado de cá, impotente, de braços cruzados. Durante dias chorei às margens do Xingu, gritava ordens para que parassem. Logo, uma multidão de vozes se juntou a minha ecoando em um coro só “Salve Arapujá”. Infelizmente já era tarde demais.

Certo dia, o céu escureceu, eram as andorinhas, as araras, os azulões, os curiós… Voavam, batendo forte suas asas, fugiam da penumbra cinza que adentrava a floresta. Quão sortudas são as aves, foram agraciadas por Tupã com asas. Tamanha sorte não tiveram os guaribas, as tracajás, as jibóias, os tatus… Agora queimam junto com a floresta em um tom de vermelho vivo que logo dará lugar ao cinza mórbido da destruição.

Fonte: Blog do Oscar Brisolara

Fonte: Blog do Oscar Brisolara

O luto ainda vigora dentro de mim, mas pequenas fagulhas de esperança parecem brotar em meu coração. Terminada a obra e, já passada duas estações chuvosas, o rio Xingu resiste bravamente em não cataclismar a Ilha do Arapujá. Milagre? Erro matemático? Não sabemos ainda o desfecho final dessa estória, nesse momento o que nos cabe é somente esperar.

A ilha do Arapujá aos poucos está se reerguendo e, como uma fênix, ressurgindo das cinzas graças ao maravilhoso ciclo vital da natureza. Da orla já é possível ver pequenos arbustos tecendo novamente o chão de verde que o fogo transformou em cinza.

Imagino que nesse momento tu estejas em pranto, de fato a nossa ilha do Arapujá morreu. Um pouquinho de nós também morreu com ela. Infelizmente ela jamais voltará a ser como na nossa infância. Resta-nos guardar as doces lembranças na memória, nas fotografias, nas cartas.

Fonte: Dhemerson Santos

Fonte: Dhemerson Santos

Abraços afetuosos do teu eterno curumim dos cabelos vermelhos…

Curupira.

 

 

Bibliografia

BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo. Imprensa oficial do estado de São Paulo, 2006.

MACHADO, A. B. M; DRUMMOND, G. M; PAGLIA, A. P. Livro vermelho da fauna brasileira ameaçada de extinção. In: Livro vermelho da fauna brasileira ameaçada de extinção. MMA; Fundação Biodiversitas, 2008.

 

 

Imagens

Imagem 1: Fonte: Página do Blog Loucos por Altamira Disponível em: http://altamiraloucos.blogspot.com.br/p/blog-page.html. Acesso em Dez. 2016.

Imagem 2: Fonte: Página da agência de reportagem e jornalismo investigativo Disponível em: http://apublica.org/2014/08/em-busca-da-belo-sun/. Acesso em Dez. 2016.

Imagem 3: Fonte: Página da Assessoria Jurídica Popular Disponível em: http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com.br/2015/11/abracos-destruicoes-e-belo-monte-o.html. Acesso em Dez. 2016.

Imagem 4: Fonte: Página do portal AquaA3 Disponível em: https://www.aquaa3.com.br/2016/02/brasil-sanciona-a-extincao-de-peixes-na-regiao-do-rio-xingu.htmll. Acesso em Dez. 2016.

Imagem 5: Fonte: Blog do Oscar Brisolara Disponível em: http://oscarbrisolara.blogspot.com.br/2016/07/construcao-da-usina-de-belo-monte-no.html. Acesso em Dez. 2016.

Imagem 6: Fonte: Dhemerson Santos Arquivo pessoal do autor.

 

 
Recebido em: 30/01/2017

Aceito em: 15/02/2017


[1]Universidade Federal do Pará. Graduado em Ciências Biológicas-UFPA. Atualmente mestrando em Educação em Ciências pelo Instituto de Educação Matemática e Científica dhemerson-santos@hotmail.com.

[2]Universidade Federal do Pará. Graduado em Ciências Biológicas-UFPA. Atualmente mestrando em Educação em Ciências pelo Instituto de Educação Matemática e Científica carlos.s02@gmail.com.

[3]Universidade Federal do Pará. Pós Doutora em Educação pela Universidade de Campinas-UNICAMP. mrdbrito@gmail.com.

[4] O carimbó é um ritmo musical amazônico e também uma dança de roda de origem indígena, típica da região litorânea do nordeste do estado do Pará, no Brasil.

[5]Para os indígenas, Tupã representava um ato divino, era o sopro, a vida, e o homem a flauta em pé, que ganha a vida com o fluxo que por ele passa.

 

 

Réquiem para a ilha do Arapujá

 

 

RESUMO: A proposta desta carta-imagem é experimentar dar a ver a Ilha do Arapujá, localizada na orla da cidade de Altamira (PA) e ameaçada de desaparecimento por conta da construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte.

PALAVRAS-CHAVE: Carta-imagem. Desaparecimento. Belo Monte.


Requiem for the Island of Arapujá

 

 

ABSTRACT: The purpose of this letter-image is to try to see the Arapujá Island, located on the edge of the city of Altamira (PA) and threatened to disappear due to the construction of the Belo Monte Hydroelectric Complex.

KEYWORDS: Letter-image. Extinction. Belo Monte.