Para rexistir! Frente povo por vir

Por:

Lorena Lucas Regattieri, mestranda em Comunicação e Territorialidades na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e pesquisadora no Laboratório de Estudos em Imagem e Cibercultura (LABIC/UFES).

Levanto meus olhos/ Pela terra seca/ Só vejo a tristeza/ Que desolação/ Uma ossada branca/ Fulorando o chão//E o passo-Rei, rei do manjar/ Deu bença à Morte pra avisar/Pra os urubus de outros lugá/ Que vissem logo pro jantar/Do Rei do Fogo e do luar// Do luar sisudo/ Do Rio Gavião/ Mais o sol malvado/ Quemô os imbuzêro/ Os bode e os carneros/ Toda a criação/ Tudo o sol queimou// É que tão as era/ Já muito alcançada/ A palavra veia/Reza que haverá/De chegar um tempo/Só de perdedera// Que só haverá de escapar/ Burro criolo e criação/ Que pra cumê levanta as mão/E que um irmão pra outro irmão/ Saudava que essa pregação// Lembra que a morte/Te espera meu irmão/E o sol da má sorte/Rei da tribusana/ Poupou sussarana/ Carcará ladrão/Isso o sol poupou!//Mas não há de ser nada/ Na função das bestas/ Prurriba da festa/ Perigrina a fé/ Sei que ainda resta/ Cururu-tetê// Na minha casa há um silenço/ A tuia pura e o surrão penso/ O meu cachorro amigo imenso/ Deitou no chão ficou em silêncio/ E nunca mais se alevantou/ Inté os olhos d’água/ Chorou que secou/ E o sol dessas mágua/ Quemou os imbuzeiro/ Os bode e os carnêro/ Toda a criação/ Tudo o sol queimou/ No Rio Gavião/Tudo o sol quemou/ Toda a criação

 

Elomar Figueira Melo. Incelença pra terra que o Sol matou

[0]

Uma aliança “terrana” rexiste com os despossuídos e os desapegados. As mudanças climáticas inserem a humanidade em tempos urgentes. O mundo ocidental, tomado por sua própria e soberba cegueira, ora nega a existência de uma “guerra ontológica” e, consequentemente, nem mesmo reconhece a violência nesse modo de existência que aniquila outros mundos, ora afirma na aceleração a saída para a sobrevivência do antropos (caindo na mesma armadilha que “nos” colocou nessa situação). Contudo, recordemos, esse cenário produz uma injustiça territorial e tem no racismo ambiental o elemento fundante da devastação da terra. A rexistência indígena, cabocla, sertaneja, negra e dos coletivos e comunidades, que chamo aqui de despossuídos e desapegados, é estratégica na luta pelo ontológico direito de pensar. Nesse sentido, somos todos terranos e vamos compor a Frente do “povo por vir”.

 

[1]

Em tempos de Golpe (#ForaTemer!), cito diretamente um dos grandes pesquisadores sobre as ciências do clima, o professor Alexandre Araújo Costa: “o golpe mesmo é o Antropoceno!”. De maneira nenhuma o momento político do país perde seu status permanente de ausência do Estado democrático de direito e de suspensão das leis e direitos sociais já conquistados. Contudo, a humanidade como uma força geológica capaz de alterar ciclos inteiros de outras vidas na terra (humanas e não humanas), aciona uma urgência de (re)pensar o nosso modo de existir em relação com o ambiente. Nossa tarefa é urgente, somos convocados a refletir sobre as nossas ontologias (para que outras possam continuar existindo). É o “staying with the trouble” da Donna Haraway, traduzido para o português do “papo reto” por Juliana Fausto como: “durmam com esse barulho”. E é ensurdecedor e nada alarmista dizer que uma diária da sociedade dos “modernos” está nos custando um aumento da temperatura do mar, num nível e rapidez que possivelmente não poderemos suportar. À medida que adiamos as decisões sobre as transformações em nosso modelo de consumo e descarte de coisas, do lixo e da compostagem de alimentos, dos limites da terra em seu uso e desuso, da filosofia dos animais e de suas autonomias, dos direitos dos povos originários, do equilíbrio no uso da água e, principalmente, no trato das energias, nos tornamos cúmplices do nosso próprio fracasso.

 

[2]

Sobre os modernos, estes não são lá muito honestos em seus relatos. Temo ainda não ter compreendido se se trata de uma perversidade ético-política ou de uma ingenuidade deliberadamente ambígua. Ainda assim, são contextos distintos. Por enquanto, sinto ser possível apenas falar do contexto perverso, este que (na guerra descrita por Latour em War of the worlds: what about peace?) torna os modernos operadores de uma engrenagem que chamaremos de geoengenharia aceleracionista. Digo isso, mas me falta a linguagem para tal crueldade e violência, porque este processo se realiza na tolerância para com o modo de existência dos “povos recalcitrantes” – os teimosos do Antropoceno – e não na possibilidade de diferir em relação ao seu modo próprio de ocupar a terra. Ainda, para os modernos, é sempre uma questão em relação ao modelo dominante, portanto, os Outros podem viver, desde que se adaptando aos acordos vigentes do nosso mundo.

 

[3]

O humanismo é a marca do período individualista. O social faz o período coletivista (ANDRADE, 1944). Os modernos estão inscritos por esse humanismo: autorreferencial, dominador, colonizador, verticalizante e patriarcal – em conformidade com um estado de “cosmopolícia”. Diante do cenário desenhado pelos cientistas do clima e dos avisos dos profetas da chuva, xamãs e do papa Francisco, as negociações da conferência do clima em Paris (COP-21) mostraram-se tímidas e não dialogam com “princípios da justiça climática, social e geracional.” Os responsáveis (chefes de Estado, os executivos e lobistas do progresso energético) dispõe-se ao mínimo possível em nome do crescimento. O capitalismo, em sua fase atual, não admite o conflito e muito menos a violência implicada na acumulação: não há um horizonte de redução acelerada das emissões de gases de efeito estufa e de desaceleração energética.

 

***

Quando se afirmou, há cem anos, que bastava de explicar o mundo pois o necessário era transformá-lo, é porque o hálito das massas industrializadas falava. Elas achavam enfim a sua própria mitologia. Uma mitologia brotada das forças do mundo explorado e conhecido. Note que as massas sempre tenderam ao mitológico no seu desenvolvimento espiritual. Talvez hoje seja uma porta mística a que se escancara para elas, na História, mas na direção inflexível das realizações terrenas. Desta terra, nesta terra, para esta terra. E já é tempo.

Nada mais disse nem lhe foi perguntado.

 

Oswald de Andrade, Meu Testamento

 

[4]

Não vê que pertence à terra? Somos o povo de baixo. Da razão para o corpo. Dos escravos urbanos das fábricas têxteis da grande São Paulo aos escravos do campo nas fazendas dos políticos de colarinho. Em breve, os direitos trabalhistas podem ser suspensos no Brasil para responder à necessidade do capital em acumular mais, gastando mais energia. O capitalismo para as terras de baixo, em tempo, impõe o trabalho colonizado e assujeitado. Junto dos imigrantes e refugiados climáticos, seremos trabalhadores cansados e domesticados diante das exigências do desenvolvimento e do progresso. O corpo em conexão com o território vive um processo de adoecimento mediado pela desmedida e inflexível imposição do projeto da maioria. O jogo imobiliário dos capas da empreiteiras e construtoras e as favelas, a territorialidade usurpada para a implantação do projeto maravilha. A falta da água nas chancelas do Estado é um problema pontual, tratado com o descuido daqueles que só veem e escutam o som das bolsas de valores.

 

[5]

Contudo, rexistimos – os Outros – e somos teimosos. Seja na Aldeia Maracanã, seja nas ocupações secundaristas, com os black blocs do Não vai Ter Copa, com os índios Krenak que enfrentaram a Vale S.A., seja nas comunidades da beira do Rio Doce, com os índios e ribeirinhos que resistiram bravamente diante de Belo Monte, com os Guarani Kaiowa no Mato Grosso do Sul, os moradores da Vila Autódromo, as paradas LGBT, as mulheres contra a cultura do estupro, até mesmo com todos aqueles que tentam apagar a tocha olímpica. Nesse sentido, somos todos “involuntários da pátria” – muito mais dispostos a devorar experiências possíveis de compromisso com a terra do que a ser guarda de fronteiras (territoriais ou culturais). Pois, como aponta Viveiros de Castro (2006), “não há culturas inautênticas, pois não há culturas autênticas. Não há, aliás, índios autênticos. Índios, brancos, afrodescendentes, ou quem quer que seja – pois ‘autêntico’ não é uma coisa que os humanos sejam”. Corremos alguns riscos ao dar os primeiros passos (mesmo que as histórias das lutas estejam aí há tempos), falamos em cultura dos outros com a hesitação das crianças que aprendem a caminhar – ou talvez até seja isso mesmo, já que, ainda modernos, não sabemos andar com os pés sobre o chão. Mas a prudência e o cuidado não podem nos estagnar, quando na realidade podem ser o que de necessário dessa transmissão transforme o agir nesse nosso tempo.

 

[6]

Além disso, somos coletividades em busca de um baixo consumo de energia: temos preguiça, somos manifestadamente ociosos e nos assumimos desaceleradores. Isso não significa deixar de se movimentar, aliás, essa é uma convocação ao intenso deslocamento. Despossuir-se e desapegar-se não tem nada a ver com um conhecimento de si mesmo, mas, sim, com a convivência na máxima diferenciação. Entender o território em nosso modo de existência ampliado e, portanto, responsáveis por ele. A nossa rexistência é tendenciosamente alegre e não opera na vigilância, nas lutas e movimentações ao redor. Pode ser até que alianças temporárias sejam necessárias e que as nossas lutas coexistam para um fim específico (dentre tantas, continuar barrando a PEC 215 e endurecer leis fiscalizadoras das barragens, pressionar pela homologação de terras indígenas e unidades de conservação).

 

[7]

Como em uma das músicas de Elomar, ainda há poesia: “Toda a criação/ Tudo o sol queimou/ No Rio Gavião/ Tudo o sol queimou/ Toda a criação”. A incelença do cancioneiro chora essa terra que não volta mais. No Brasil, o encontro do sertão profundo com o litoral produz um imaginário que não se limita às fronteiras (SCHOUTEN, 2005). E talvez seja necessário chorar à cabeceira dessa terra – celebrar o Golpe em seu sentido extensivo como um acontecimento, uma vez que o arquétipo entrópico e antrópico do Golpe situa-se no Antropoceno como um acontecimento, na medida em que acentua a catástrofe climática e ambiental, pois ignora as consequências em médio e longo prazo relacionadas às políticas socioambientais – para recuperar esse território que nos foi tomado. Assim, em diálogo com Stengers (2015), percebemos ser necessário (e urgente!) compor com as testemunhas narrativas e celebrações para alimentar a confiança onde a impotência ameaça. No rastro desses mundos que perdemos de vista estão as pistas para outros agires e fazeres experimentais. E é nessa “produção-descoberta” (STENGERS, 2015, p. 152) que encontramos a alegria.

 

[8]

Captamos então breves alegrias na luta por terra e água. A resistência indígena, o povo afirmando o direito à diversidade cotidianamente, os acampamentos no campo e ocupações urbanas, o canto do sertão “sertanezo”, a festa do Caboclo Bernardo em Regência (ES) com vistas para o Rio Doce com a lama turva, a oração da benzedeira dos bairros, a festa no terreiro, entre as tantas igrejas evangélicas, e nas subjetividades coletivas urbanas, rompendo com a frieza da indiferença. Percebemos que na guerra de mundos assumimos o conflito como iminente para o território terrano. Como proposto por Mauro Almeida (2014), formamos uma guerrilha anti-entrópica para “evitar a morte, a desordem e o sofrimento”, e isso é o que nos une. O coletivismo se ancora em uma composição local capaz de atacar o cimento – um “Verde Ataque”. Uma rede de alianças com olhos para a terra: a composteira. Táticas localizadas de vivência e experiência próxima de habitar o território: um campo de possíveis e o nosso círculo de vizinhança.

 

[9]

Os aspectos coletivistas não são ingênuos e nem românticos, são apenas fabulativos. Ativam um estado de invenção permanente: fabular com outros viventes a escuta, outras linguagens, outras políticas de existência, outros povoamentos. Decretar o fim do ciclo individualista com iniciativas autônomas contra a dominação da natureza pelo homem. Nesse sentido, a dicotomia entre sujeito e objeto, natureza e cultura, perde todo sentido quando estamos à escuta do “povo que falta” e da retomada do território. Não aceitar a suposta paz, nas palavras da poeta Angélica Freitas: “Eles, dinossauros. Nós, meteoro.”

 

Referências

ALMEIDA, M. W. B. Metafísicas do fim do mundo e encontros pragmáticos com a entropia ou É possível enfrentar a entropia capitalista com demônios informacionais? (Do turing machines dream of cybernetic Gaia?). In: COLÓQUIO MIL NOMES DE GAIA, Rio de Janeiro. PUC-RJ, 2014.

_____. Caipora e outros conflitos ontológicos. R@u, v. 5, n. 1, p. 7-28, jan./jun. 2013. Disponível em: <https://issuu.com/raufscar/docs/rau.v5n1>. Acesso em: 15 jul. 2015.

ANDRADE, J. O. de S. Meu Testamento. In: ANTUNES, B. A Utopia Antropofágica: Obras Completas. 4. ed. São Paulo: Globo, 2011.

DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. (org.). Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental, 2014.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia?. Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 2013.

FAUSTO, J. Terranos e Poetas: o “povo de Gaia” como “povo que falta”. Landa, v. 2, n. 1, p. 167-181, 2013.

FIGUEIRA MELO, E. Incelença pra terra que o Sol matou. ConSertão, 1982.

HARAWAY, D. Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene: Staying with the Trouble. Open Transcripts, 2015. Disponível em: <http://opentranscripts.org/transcript/anthropocene-capitalocene-chthulucene/>. Acesso em: 15 jul. 2016.

MATOS, M. de A. Cosmopolemos: notícias de uma guerra de mundos. In: COLÓQUIO MIL NOMES DE GAIA, Rio de Janeiro. Anais…. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2014.

______. Antropofagia: “a única filosofia original brasileira”. Comunicação Filosófica na Universidade Federal do Acre, 2014.

SCHOUTEN, A.-K. de M. Peregrinos do sertão profundo: uma etnografia da música de Elomar Figueira Mello. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2010.

STENGERS, I. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

VIVEIROS DE CASTRO, E. No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é. In: RICARDO, B.; RICARDO, F. (ed.). Povos indígenas no Brasil: 2001-2005. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.

________. Os involuntários da pátria. Aula Pública, Cinelândia, Rio de Janeiro, 20/04/2016. Disponível em: <https://acasadevidro.com/2016/04/24/os-involuntarios-da-patria-por-eduardo-viveiros-de-castro-aula-publica-durante-o-ato-abril-indigena-cinelandia-rj-20042016/>. Acesso em: 15 jul. 2015.