Novos parentes no Antropoceno | Rodolfo Eduardo Scachetti


Rodolfo Eduardo Scachetti[1]

 

Introdução

O gênero da ficção filosófica parece estar ganhando mais espaço em tempos conturbados, inclusive do ponto de vista epistemológico, quando incertezas alcançaram com força as próprias matrizes científicas do conhecer. Com o aprofundamento da crise das representações universalistas, da Razão em meio às novas barbáries, outros modos de ver e pensar têm voltado a povoar a academia, já que das ruas nunca foram totalmente erradicadas. Evidentemente, há ainda esforços na direção do estabelecimento de valores tendencialmente universais como, por exemplo, os próprios princípios da democracia e dos direitos humanos. Na prática, entretanto, é possível ver que há tantas democracias quantos países que se dizem democráticos, tornando as diferenças entre eles possivelmente mais relevantes do que as semelhanças. Uns ainda se aproximam mais dos chamados Estados de Bem-Estar Social formados na Europa no período pós-1945, enquanto outros mantêm, por vezes, práticas que não fazem eco com o chamado Estado de Direito, já que ainda comportam trabalho análogo a escravo e sistema prisional cheio de distorções, para dizermos o mínimo. Por outro lado, a globalização trouxe alguns aspectos de caráter universalista, em especial no tocante à questão econômica. De um jeito ou de outro, em meios às diferenças todas de visões, práticas, valores, é possível dizer que há uma economia global em funcionamento, que se apoia sobre uma cultura que se pretendeu universal e uma língua franca (inglês), e que realizou de modo variado parte de seu projeto ao redor do globo. Fez isso com o apoio de empresas transnacionais, de governos muitas vezes melhor representados em entidades multilaterais e, por fim, não menos importante, através de uma fortíssima indústria cultural que auxilia a disseminar mundo afora alguns valores ocidentais, especialmente no que tange ao consumo.

Essa história de uma chamada aculturação não é nada nova, ainda que possa estar revestida de modo diferente. Tornar o outro igual a si mesmo tem sido prática comum na medida em que a cultura colonial, marcante a partir do século XVI, e que se estabeleceu em vários lugares do globo, pretendeu em última instância eliminar os povos não-europeus. Fosse através de conversão ou mesmo extermínio. O que isso significa? Que só se aceita a si mesmo ou seus semelhantes. Um tanto diferente do relato histórico dos romanos que puderam incorporar a cultura helenística em seu projeto imperial na Antiguidade, a história mais recente de colonização testemunhou as incorporações acontecendo em meio a conflitos e disputas, cuja tônica foi primordialmente de rebaixamento entre culturas distintas. Nos Estados Unidos, por exemplo, houve extermínio dos povos autóctones, a despeito das influências remanescentes, enquanto no Brasil e na América Latina houve movimento similar, ainda que a resistência tenha sido melhor sucedida ao longo dos séculos, deixando como legado não só uma influência nas diferentes culturas nacionais, bem como a própria permanência de diversas populações originais (muitas delas salvas via manutenção de certo isolamento).

(Leia o ensaio completo em PDF).

 

Recebido em: 30/03/2022

Aceito em: 30/04/2022

 

[1] Doutor em Sociologia pela Unicamp. Professor Associado do Instituto do Mar da Unifesp. E-mail: rodolfo.scachetti@unifesp.br.

Novos parentes no Antropoceno

 

RESUMO: Num mundo de incertezas crescentes, a própria matriz epistemológica configurada pelas ciências modernas está balançando. O esgotamento do mundo natural está refletido também pela crise das formas objetivistas e racionalistas de conhecer e agir, e a academia tem se aberto a outros saberes que podem ajudar a compor novas estratégias de convivência. Dentre eles, os conhecimentos tradicionais têm tido interesse renovado. Neste ensaio, mergulhamos brevemente em linhas da obra da bióloga e filósofa Donna Haraway, que fez essa aproximação com o tradicional, e relembramos também a ficção filosófica Vampyroteuthis infernalis, de Vilém Flusser e Louis Bec. Ambos são contribuições relevantes para arejar formas de ver, pensar e agir no contexto do Antropoceno e das mudanças climáticas. Renovar essas formas de estar no mundo significa superar o “excepcionalismo humano” (base do entendimento da superioridade da espécie humana) e o “existencialismo biológico” (expressão que nos ajuda a compreender a desconsideração que dirigimos a algumas espécies). Significa caminhar na direção do que a bióloga estadunidense chamou de “pensamento tentacular” e buscar, no Antropoceno, o encontro de novos parentes.

PALAVRAS-CHAVE: Mudança climática. Antropoceno. Haraway.

 


New relatives in the Anthropocene

 

ABSTRACT: In a world of increasing uncertainty, the epistemological matrix itself configured by modern sciences is rocking. The exhaustion of the natural world is also reflected by the crisis of the objectivist and rationalist ways of knowing and acting, and the academy has been open itself to other knowledge that can help to make up new strategies of coexistence. Among them, traditional knowledge has been of renewed interest. In this essay, we briefly immersed ourselves in lines of the work of biologist and philosopher Donna Haraway, who made this approach to the traditional, and we also recall the philosophical fiction Vampyroteuthis infernalis, by Vilém Flusser and Louis Bec. Both are relevant contributions to airing ways of seeing, thinking and acting in the context of the Anthropocene and climate change. Renewing these forms of being in the world means overcoming “human exceptionalism” (the basis of understanding the superiority of the human species) and “biological existentialism” (an expression that helps us understand the disregard we address to some species). It means walking towards what the American biologist called “tentacular thinking” and seeking, in the Anthropocene, the meeting of new relatives.

KEYWORDS: Climate change. Anthropocene. Haraway.

 


SCACHETTI, Rodolfo Eduardo. Novos parentes no Antropoceno. ClimaCom – Esse lugar, que não é meu? [online], Campinas, ano 9, n. 22., maio. 2022. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/novos/