Literatura e ficção científica feminista em tempos de fins de mundos | Milena Bachir

Nesta entrevista, com a doutoranda em literatura Jade Arbo, somos convocados a pensar em histórias que são contadas por perspectivas que incorporam o cuidado, o sensível, a dimensão do feminino e que trazem a potência de novos pensamentos em atos e experimentações entre literatura, ciências e Antropoceno.

Jornalista | Milena Bachir

Editora | Susana Dias

Imagem da série Forest de Juliana Hoffmann. Disponível em: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=9591

 

A literatura nos convida para mundos férteis de modos de existência talvez nunca imaginados. Ora podem ser utópicos, ora distópicos. O fato é que a literatura estabelece vínculos que dizem respeito à repotencialização da perda de sentidos e percepções, escamoteados e entristecidos pelo Antropoceno. Para pensar nessas questões, entrevistamos Jade Arbo, bacharela em Letras, mestra em Filosofia e doutoranda em Literatura, Cultura e Tradução na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Seu interesse é pelos encontros entre a filosofia, o feminismo e os estudos de gênero, bem como destes com a literatura, que, segundo ela, é também uma forma de filosofar. Jade pensa a literatura como produção de conhecimento contemporânea que apresenta reflexões acerca de problemas reais e convoca em nós sentidos outros, mobilizando ações afirmativas e potencializando interações sensíveis entre ciências, artes, tecnologias e comunicação. Entre as perguntas que a interessam estão: como a literatura pode nutrir narrativas que deem atenção às diferenças e o quais afetos sensíveis são mobilizados? Uma das autoras estudadas por Jade é a filósofa Donna Haraway, que propõe a fabulação especulativa como método e experimenta uma escrita diretamente afetada e narrada em “transfecções” entre humanos e mais que humanos, entre naturezas e culturas, entre artes, ciências, filosofias, literatura, suspendendo binarismos e oposições. Outra autora pela qual se interessa é Ursula Le Guin. No livro A mão esquerda da escuridão, Le Guin nos pede cautela quanto à busca por respostas, e nos convida a pensar que a ficção deriva de certos tipos de conhecimentos localizados, e não universais, ou seja, que podemos construir conhecimentos a partir de diversas visões sobre os mesmos objetos e, assim, alcançarmos uma percepção multidimensional. Uma das múltiplas interpretações possíveis dessa obra é a de que ela versa sobre a experiência das sociedades ocidentais e a dificuldade de repensarmos visões duais demasiadas humanas como as que fomos alicerçando no tempo, moldados pelo Antropoceno; masculino/feminino, natureza/cultura, civilizado/selvagem, mulher/homem, privado/público, natural/feminino etc.; como no artigo em que Jade escreveu sobre o mesmo livro. Com Jade, e suas pesquisas, somos convocados a pensar em histórias que são contadas por perspectivas que incorporam o cuidado, o sensível, a dimensão do feminino e que trazem a potência de novos pensamentos em atos, experimentações e protagonistas da cena científica, artística e cultural. Dessa maneira, problematizando imaginários, normatizações e categorias universais fadadas a ruir e enfraquecer o pensamento, propondo que é mais que urgente pensarmos em novas aberturas em termos de pesquisas em cocriação e coevolução com a literatura, para que novas histórias e outros modos de vida sejam escritos, e enfrentem os fins de mundos que já aconteceram ou que podem acontecer. Algumas das ideias e trabalhos de Jade podem ser encontrados na página @sabereslocalizados que ela mantém no Instagram.

Milena | Como as literaturas, feminista e de ficção científica, podem alcançar mais pessoas, alterando suas percepções e convocando-as a levar a sério os acontecimentos do Antropoceno? Qual é o papel da literatura nessas questões? Você pode citar exemplos?

Jade | Para responder a essa pergunta, precisamos olhar para os diferentes níveis dela: temos a literatura, depois a ficção científica (FC) e depois a ficção científica feminista. Vamos começar pelo nível mais geral: qual é o papel da literatura? A literatura tem ou precisa ter uma utilidade, um papel definido? A resposta é que ela não precisa ter uma utilidade, mas ela certamente possui um efeito: ela mobiliza. Se não mobilizasse, se literatura não ameaçasse algum tipo de status quo, não teríamos tantos discursos antiliteratura e livros sendo queimados, como nos mostra William Marx no seu fantástico Ódio à Literatura. Embora não consigamos dizer, exatamente, qual é o impacto da literatura, ou examinar, contabilizar e quantificar esse impacto – como acontece em pesquisas replicáveis nas ciências exatas e biológicas –, nós sentimos, por intuição, esse impacto, e também o percebemos na resposta antiliterária. A literatura, então, tem esse efeito de nos causar desconforto de alguma forma, trazer questões que nos desestabilizam de algum modo. Isso tudo é um bom caminho para iniciarmos a conversa.  E então temos a literatura feminista e a literatura de ficção científica, que eu tenho estudado hoje. Para mim essas duas literaturas andam juntas por causa do meu histórico, do rumo que a minha pesquisa de mestrado tomou. Na minha dissertação em filosofia eu falei sobre o sujeito do feminismo – quem o feminismo se propõe ou deve se propor a representar – e eu termino o meu texto pensando no fato de que o imaginário utópico é importante para o feminismo para que a gente consiga vislumbrar novos mundos possíveis e realizá-los. Uma das formas que temos de vislumbrar novos mundos é a literatura. E, especificamente, a literatura de ficção científica, que acaba existindo nas margens do cânone, justamente por existir nessas margens, consegue nos apresentar mundos que são aparentemente distantes, mas que revelam também nossos medos, anseios e receios presentes. Além disso, nos fazem vislumbrar um futuro às vezes bom ou ruim. Às vezes temos um vislumbre do futuro distópico dentro da FC, que nos faz pensar sobre o que não queremos – o seminal A Parábola do Semeador, de Octavia Butler, é um exemplo disso. Por outro lado, podemos ter um vislumbre do futuro utópico na FC que nos faz pensar no que a gente quer – e podemos pensar em A Terra das Mulheres, de Charlotte Perkins Gilman como um exemplo. E mesmo nesses dois exemplos, nós podemos ver que sonhos e pesadelos estão misturados em uma narrativa só, e o interessante na leitura desses livros é ver o quanto de pesadelo têm os nossos sonhos, e o quanto uma fagulha dos nossos sonhos podem surgir em momentos de completo pesadelo. Judith Butler me levou por esse caminho da utopia, principalmente com esse último livro dela A força da não violência (2021). A grande questão que ela traz nesse livro é que parece ser mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim da violência, em diálogo com o que Mark Fisher havia dito antes, que seria mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O que a Butler traz sobre essa impossibilidade é que precisamos superá-la, lutar contra ela. Parece que é impossível imaginarmos um mundo sem violência, mas esse exercício imaginativo é necessário. Não queremos viver em um mundo em que não acreditamos no fim da violência, então precisamos ter uma certa “suspenção da descrença” na nossa realidade. Esse é um termo da literatura do qual eu tenho me apropriado para ampliar a minha visão dessa questão.  Penso que é isso que a ficção cientifica nos traz, e a FC feminista tem uma potência enorme para isso, porque a literatura de FC feminista apresenta uma perspectiva de outro lugar, um olhar de outro lugar e, trazendo Donna Haraway, se nossos saberes são localizados, a gente precisa dessas muitas visões de vários lugares diferentes. A FC feminista faz isso apresentando não uma visão utópica masculina, não uma visão utópica do lucro, dos ganhos, uma visão utópica tecnocrata, mas sim uma visão utópica de um futuro possível construída sobre as bases do cuidado, das nossas relações de família, expandindo o que a gente considera como família para além do sangue e para além das espécies.

Milena | Pensando nesse entrelaçamento com a filosofia, que é onde você está também localizada, como a filosofia da ciência e a epistemologia feminista ajudam a comunicar e a pensar mundos vivíveis, para além do Antropoceno?

Jade | O que a gente considera precisar para decidir os nossos rumos ético-políticos passa pelos conhecimentos que precisamos estabelecer sobre o presente. Precisamos saber o que está acontecendo para saber para onde queremos ir. Precisamos fazer sempre esse movimento de diagnóstico. Eu acho que, por muito tempo, e ainda hoje, temos a capacidade de diagnosticar e a autoridade de avaliar o presente embasada por um saber científico tradicional. Como sabemos o que está acontecendo? Através de medição e de pesquisas que se utilizam da metodologia científica que, enfim, se utilizam de estratégias metodológicas das ciências naturais e das ciências exatas, e que são sim de extrema importância para sabermos, por exemplo, o que vem acontecendo com o aquecimento global e as mudanças climáticas.  Mas de que forma podemos fazer uma análise do humano? Será que os valores epistêmicos tradicionais são suficientes para pensarmos o mundo humano? Acho que ainda vemos muito as ciências humanas como sempre precisando “prestar contas” às ciências naturais e exatas. A estrutura acadêmica brasileira vem tentando se aproximar de uma metodologia científica reconhecível e replicável, apresentando dados falseáveis ao invés de valorizar relatos subjetivos da realidade. O que a epistemologia feminista faz, e a Helen Longino explica muito bem em uma entrevista que fiz com ela no ano passado para a revista Em Construção, é um convite a problematizar esse ideal de um acesso imparcial aos dados da realidade. A imparcialidade é uma ficção. Uma ficção que nos conta que podemos de fato acessar a realidade sem que ela passe pela nossa subjetividade e pela nossa linguagem. Claro que isso é menos um problema quando analisamos átomos, e mais um problema quando estamos analisando pessoas, organizações sociais e projetos políticos. E se torna um problema principalmente quando estamos projetando futuros. Que futuro queremos? Quais dados a gente pode e consegue usar para pensar o futuro? A epistemologia feminista propõe, dentre outras coisas, mudar e expandir a forma como entendemos o conhecimento e esse processo de produção do conhecimento, trazendo novos valores para julgarmos o que é um bom conhecimento, um conhecimento útil e bem-feito. Enquanto numa ciência considerada “tradicional” teríamos valores como a reprodutibilidade, a exatidão, a consistência, por exemplo – valores que nascem com a modernidade, segundo a racionalidade é um valor muito grande e importante nas análises científicas –, a epistemologia feminista, a filosofia da ciência que é feminista, vai pensar em valores diferentes, como inovação, heterogeneidade (diferença), complexidade (em oposição ao valor da simplicidade explicativa) etc., e também a aplicabilidade desse conhecimento, ou seja, o quanto esse conhecimento produzido nos ajuda a viver bem, nos ajuda a criar sociedades melhores. O quanto nos ajuda a alimentar pessoas, a ter certeza de que as pessoas vão ter onde morar… a epistemologia feminista incorpora valores de cuidado, de redistribuição de poder, de melhoramento da vida. Não porque o cuidado é uma característica feminina inerente e específica das mulheres, mas porque o cuidado é um valor que escolhemos como nosso. Independentemente de gênero, homens e mulheres precisam saber e pensar em termos de cuidado, precisam saber “viver e morrer bem uns com os outros” como diz Haraway. É isso que a gente precisa. A filosofia da ciência feminista apresenta formas de considerar diferentes fontes de saber, diferentes descrições de mundo como conhecimentos válidos. Pensei, agora, na arte do pontilhismo. Uma forma de arte que, de pontinho em pontinho, constrói um retrato amplo, eu acho que é o que Donna Haraway propõe com o seu conhecimento de “saberes situados”: ela nos diz que devemos agregar e considerar relatos de outras fontes diversas para formarmos uma visão mais ampla. Ao invés de colocarmos conhecimentos outros como pouco objetivos e, portanto, dispensáveis, agregamos esses conhecimentos como parte desses pontinhos que, juntos, formam esse quadro do mundo.

Milena | Interessante essa imagem do pontilhismo que você trouxe, a interdependência do “nós”. Fiquei imaginando Haraway quando ela fala de como uma teia de conexões, ativa, fluida, viva é capaz de produzir conhecimento em coevolução e fabular outros modos de existência que fujam dos rastros produzidos pelo Antropoceno. Como você entende o conceito de vínculo/laços em Haraway para a construção de novos conhecimentos?

Jade | Essa dependência e interdependência são condições de conhecimento de qualidade e não um defeito, como nos ensina também Patricia Hill Collins em Pensamento feminista negro. Nós precisamos repensar o sujeito do conhecimento como sendo não um indivíduo monádico separado do resto, mas sim um sujeito feito e desfeito por outros sujeitos e pelas organizações sociais que o cercam. O saber produzido em comunidade é um saber agonístico, que vem do diálogo, dos chamamentos a respostas e das respostas a essas interpelações que, ao invés de separar esse sujeito que produz conhecimento do seu produto, implicam ele nessa produção, o tornam responsável por ela e por responder por ela diante desses chamamentos. O que não permite que o agonismo do debate se torne antagonismo, ou seja, o desejo de eliminação desse outro que nos chama a responder, é justamente os vínculos que temos com esse outro, a confiança que temos que esse outro partilha dos nossos valores e que se importa com o nosso futuro e o futuro da nossa comunidade. Esses vínculos também nos permitem considerar outras formas de conhecimento: quando nos sentimos afetadas pelo que que estamos estudando porque o que estamos estudando afeta a nós e a nossa comunidade, isso, em uma perspectiva tradicional, poderia ser considerado irracional, portanto, um conhecimento de má qualidade, um conhecimento enviesado. Mas para a gente que está tentando viver num mundo melhor, esse sentimento se torna uma evidência importante para o diagnóstico de que algo não está indo bem. Se a gente sente as estações mudando, por exemplo, e isso causa impacto real nas nossas vidas, no nosso corpo e no meio ambiente, isso nos traz medo e ansiedade, e esses sentimentos são evidências, ajudam em uma produção de conhecimento que talvez nos leve a sair dessa situação que estamos passando em termos de catástrofes climáticas, por exemplo, e que nos permita construir um mundo no qual existam menos desses medos, ou que esses medos não existam mais. (Link com a entrevista em pdf)

 

Coletivo e grupo de Pesquisa | multiTÃO: prolifer-artes sub-vertendo ciências, educações e comunicações (CNPq)

Projetos | Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-MC) – (Chamada MCTI/CNPq/Capes/FAPs nº 16/2014/Processo Fapesp: 2014/50848-9); Revista ClimaCom: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/ e Revista ClimaCom.