Infâncias na cidade: imagens & experiências | Grupo Carta-imagem

Título | Infâncias na cidade: imagens & experiências

 

Na última Bienal da Bahia, realizada em 2014, com o tema “é tudo nordeste”?, tivemos a oportunidade de mediar uma mesa em que crianças foram convidadas a discutir a cidade de Salvador, a partir de uma provocação que fizemos inspirados nos movimentos que tomaram as ruas de grandes cidades no país no ano de 2013. Se você estivesse portando um cartaz na passeata em Salvador, e nele você tivesse que escrever algo sobre a cidade, o que estaria escrito no seu cartaz? Pode parecer esquisito fazer uma indagação dessa às crianças, pois, muito frequentemente, não se espera que elas tenham clareza dos problemas e mazelas de cidades tão complexas como Salvador ou qualquer outra grande cidade. As respostas, no entanto, foram surpreendentes, os quatro cidadãos ali sentados reivindicavam mais liberdade e segurança para poderem transitar pelas ruas e praças, para conversar com pessoas, visitar lugares interessantes, aprender coisas novas, ir à praia, brincar, etc., enfim, afirmar por formas diversas, o seu “Direito à cidade”.

Foi interessante perceber ao longo de nossa conversa a imagem construída pelas crianças do espaço público da cidade, para elas um espaço inseguro e ameaçador, em oposição ao espaço de suas casas “privado” como um espaço de segurança. No entanto, o que nos pareceu muito importante foi perceber que essa imagem negativa do espaço público urbano não era capaz de apagar um desejo de urbanidade, de lançar seus corpos na cidade e viver experiências. A literatura tem mostrado a importância do espaço na formação dos indivíduos e como as experiências intersubjetivas na cidade são – ou deveriam ser – parte fundamental nessa formação.

A experiência partilhada dos indivíduos e grupos no espaço urbano tem sido objeto de reflexão de pensadores em diversas áreas do conhecimento, mas a discussão sobre a(s) infância(s) na cidade é mais recente e tem se mostrado um campo da máxima importância, no sentido de abrir espaços de experiência e interação social mais democráticos. Essas discussões acerca da importância do espaço público de interatividade para a(s) infância(s) – com implicações na forma como concebemos e nos apropriamos das ruas, praças e parques, por exemplo – atritam com imagens da cidade concebidas a partir dos condomínios fechados que pensam o espaço público como ameaça.

A violência urbana em uma sociedade desigual como a nossa é, de fato, uma ameaça que ronda todos os bairros, no entanto, as estratégias de abandono dos espaços públicos e reclusão aos espaços privados não apenas têm se mostrado ineficientes para lidar com esse problema, como dificulta imaginar e pensar soluções.

As crianças são, talvez, as maiores vítimas desse processo, em todos os bairros, pois a elas é vetado o direito a participar plenamente da vida social urbana, reforçando imagens de medo e de ameaça acerca dos espaços de interação, dos espaços públicos. Pensar alternativas para esse problema passa pela valorização dos espaços públicos, com políticas de Estado na promoção do espaço público e apropriação coletiva das ruas, mas passa também pela criação de novas imagens do espaço da cidade que são construídas com as crianças.

O grupo de pesquisa Carta-imagem: uma cartografia das experiências imagéticas desenvolveu um trabalho interessante de imaginação dos espaços urbanos envolvendo a literatura e a produção de desenhos na criação de imagens da cidade. Partimos da leitura do livro “Cidades Invisíveis” de Ítalo Calvino e propusemos uma construção de imagens urbanas – em desenho – não exatamente das cidades descritas por Marco Polo ao imperador Kublai Kahn, mas das leituras e imagens que nossa leitura sugeria como produção de novas imaginações urbanas. O resultado foi bem interessante, o que nos levou a pensar nessas estratégias como uma possibilidade interessante de trabalharmos as possíveis utopias – boas utopias – da construção de um espaço urbano de experiência compartilhada, mais democrático e justo, que depende de novas imaginações espaciais.

Assim, deslocamos pelas cidades como qualquer outra viagem, onde o aventureiro não necessita saber de fato aonde vai, mas necessita de um mínimo de elementos e cuidados para saber como se conduzir: primeiro, foi preciso abandonar nossas certezas e convicções, pois a cidades são repletas de surpresas em que o senso comum não permite habitá-las. Segundo, abandonamos todas nossas expectativas antes de começar, o que iríamos encontrar pelo caminho seria sem dúvida mais interessante do que esperávamos ou imaginávamos e por último nos permitimos imaginar e criar uma outra viagem dentro de nós mesmos. Ao desenhar as cidades, exercitamos um devir-criança na imagem e em nós, que persiste enquanto virtualidade e enquanto condição de diferenciação da própria representação.  Nossas práticas de criar outras cidades (im)possíveis, existentes e inexistentes em nossas memórias era um fazer infantil, pois não tínhamos nenhum desejo de manter com os desenhos qualquer relação de semelhança com a representação. Escapamos da pretensão de reivindicar um estado já codificado e identificado de uma determinada cidade para experimentam e exploram uma outra cidade, através do singular, imprevisto e do imperceptível.

Experimentar e explorar o devir-criança que que está na escrita e na imagem a fim de que tanto o modo de pensar as cidades quanto a própria criança devenham outra coisa. Exercitar o devir-criança, que está na imaginação e na própria descoberta do inusitado, esses novos modos de ver a cidade, através do desenho outro, de habitar na dispersão da memória e da própria imaginação criavam “um encontro que marca uma linha de fuga a transitar, aberta, intensa” (DELEUZE; GUATTARI, 1997).

Entendemos que esse possa ser um caminho bem interessante para o trabalho de educação com as crianças, envolvendo o espaço urbano em suas múltiplas possibilidades de imaginação, produção e apropriação.

 

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo. Ed Cia das Letras. 1985.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Ana Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro: Ed.34, v. 3, 1997.

 


Ficha técnica

Esses trabalhos pertencem a uma série “Infâncias na Cidade – Imagens & Experiências”, na qual os desenhos e fotografias foram feitos a partir da leitura do livro As cidades invisíveis de Ítalo Calvino e das viagens, percursos, encontros e achados das cidades-criança que vivem em nossas memórias.

Grupo de pesquisa | Carta-imagem: uma cartografia das experiências imagéticas

Coordenação e texto | Marcelo Faria & Antonio Almeida da Silva

Desenhos | Alessandra Alexandre Freixo, Antonio Almeida da Silva, Francine Cerqueira dos Santos, Francisco Assis dos Santos, João Paulo dos Santos Silva, Lucas Fonseca de Macêdo, Marcelo Oliveira de Faria, Maria de Lourdes S. P. Neri, Osdi Barbosa dos Santos Ribeiro.

E-mail | cartaimagem@uefs.br

 

 

FREIXO, Alessandra Alexandre; SILVA, Antonio Almeida da; SANTOS, Francine Cerqueira dos; SANTOS, Francisco Assis dos; SILVA, João Paulo dos Santos; MACÊDO, Lucas Fonseca de; FARIA, Marcelo Oliveira de; NERI, Maria de Lourdes S. P.; RIBEIRO, Osdi Barbosa dos Santos. Infâncias na cidade: imagens & experiências (desenhos). ClimaComDevir Criança [online],  Campinas,  ano 7, n. 18. Outubro. 2020. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/infanciasnacidade

 

FARIA, Marcelo; ALMEIDA, Antonio. Infâncias na cidade: imagens & experiências (texto e coordenação)ClimaCom – Devir Criança [online],  Campinas,  ano 7, n. 18. Outubro. 2020. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/infanciasnacidade

 

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SEÇÃO ARTE | Ano 7, n. 18, 2020

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