[filme infra-vermelho] para Claudia Andujar | Mariana Guzzo

Título | [filme infra-vermelho] para Claudia Andujar

É uma vídeo performance para o poema de Antonio Martinelli com o Urucum. O urucum (Bixa orellana) é o fruto do urucuzeiro uma pequena árvore da América tropical. Seu nome tem origem na linguagem Tupi-Guarani transliterado “uru-ku” e significa “vermelho”. Seus frutos são cápsulas em forma de coração, com espinhos maleáveis, que se abrem e revelam pequenas sementes alinhadas, que podem virar tinta, pó, óleo, remédio e condimento. É utilizado por indígenas para pintar o corpo em diferentes rituais mas também para hidratar, proteger a pele do sol e de picadas de inseto. O vermelho de sua tinta é também o sangue que escorre nas mãos da branquitude, frente ao genocídio e destruição dos povos da floresta.

 


Ficha Técnica 

Marina Guzzo
Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP- Campus Baixada Santista
marina.guzzo@unifesp.br
(11)985118893

criação, pesquisa e performance: Marina Guzzo
inspirada no poema honônimo de Antonio Martinelli
finalização de edição: Patrícia Araujo
efeitos sonoros: Mateus Guzzo
urucum: Sítio Angelina Iperó
apoio de produção artística: Marli Pedroso

 POEMA 

[filme infra-vermelho] para Claudia Andujar

diante da magnitude de Urihi-a 

– terra-floresta Yanomami – 

[como um criança 

paralisada diante de um jaguar 

sem ação ou medo 

diante de estupenda beleza] daquela 

floresta magenta 

gigantemente impressa 

– 12,1 x 8,1m – 

e guardada em papel 

fotográfico 

– impressão sobre filme de base de polipropileno ABL 145 – e frente a todo poder, 

toda fragilidade 

daquela imagem: 

eu chorei, e chorei pelo nariz, 

sibilante em bronquite, 

um choro agudo – em vão 

livre – 

que não era 

medo, mas espanto, 

uma floresta de afetos 

bombeou 

meu sangue e, 

para não me entregar 

a um infarto, 

meu pulmão 

agradeceu todo aquele ar 

[e pouco me importou 

o público ao meu lado 

e seus olhares, 

eu somente busquei o belo], 

e, diante da grandeza 

da ideia de: árvores, pássaros, curumins, aldeia, formigas, bichos, eu percorri artérias 

nas matas daquela floresta 

de sangue vivo: morto, 

olhando o reflexo das árvores 

vermelhas

no vidro temperado, 

do chão de vidros, 

e na água da piscina 

poliesportiva, abaixo de mim, 

eu naveguei distante, 

por rios capilares, amazonicos, 

[logo eu, que ainda nem conhecia o Ó Serdespanto], 

meu coração, 

sangrou diante do átrio 

do prédio de concreto e vidro 

e da representação da natureza 

[aorta] 

como obra de arte, 

[ali, em meio a multidão 

majoritariamente branca 

eu, descendente de 

indo-europeus, 

envergonhado e em estado de graça] 

no retorno asfalto da vias 

– ligação leste oeste 

que corta a imensa são paulo – passei 

por rios aterrados e quase 

mortos [foi o cheiro 

podre que me 

lembrou], 

nada ali 

era verde 

não havia indígenas 

– exceto um povo pobre, 

miserável, 

mulheres e homens 

carregando suas vidas 

em casas de carroças, 

num muro militante: 

“No Brasil, todo mundo é índio 

exceto quem não é” 

sentença, 

ainda sem sentido, 

mas que espasmou em mim, 

até o desembarque final.

entrei embaixo da ducha 

já sem camisa de linho branca que, joguei no chão da sala, como se tudo que fosse sujo 

e que fosse largado 

no meio do caminho tivesse 

o poder de se purificar, 

[sangue seco amarela 

ou fica barrento, 

e alvejante algum garante 

a branquitude romântica 

que tanto cantamos 

para expurgar nossa 

culpa], 

molhado e ensanguentado – 

de um sangue que não era meu 

mas que bebi e ainda corre 

dentro: 

da terra do encanamento dos tubos dos rios aterrados em mim -, 

percebi meu corpo pesado 

e, quando olho: 

meu peito 

meu pelos 

meu púbis, 

percebo que sustentava o jeans 

encharcado, como quem 

guarda o pecado, 

[entre despir- me e limpar-me 

da culpa cristã] 

procuro apoio para o pânico, e 

um mínima sustentação 

da minha herança, 

eu sei que posso cair 

[e eu devo aceitar a queda? 

mas e tudo que fizemos? 

e tudo que evoluímos? 

e tudo que conquistamos? 

e tudo que descobrimos? 

e tudo que construímos? 

e tudo que refinamos?

e tudo que esclarecemos? 

e tudo que progredimos?] 

eu não aceitaria jogar tudo 

no ralo, 

toda essa sujeira, 

não fosse 

tocar o bolso 

e, de dentro do jeans, 

tirar coisas que, 

juro, levarei anos para entender como foram para ali, 

em minha posse: 

anzóis, 

moedas, 

contas de vidros, 

e triturados cortantes 

de espelho 

que, eu enfiei na boca, 

mastiguei até virar 

farelo 

de paçoca, 

antes de dormir. 

. 

sonhei que eu era um monstro 

insone, 

e que meus pares, 

outros monstros como eu, 

me alertavam: 

– tem nada não, companheiro, essa culpa não é sua, 

[se for, 

resolva 

em terapia], 

e garanta a paz 

e o sono dos justos, 

pois amanhã é dia de branco. 

mas o jaguar sorriu pra mim.

 

 

GUZZO, Mariana. [filme infra-vermelho] para Claudia Andujar; ClimaCom – Diante dos Negacionismos [online], Campinas,  ano 8, n. 21. dezembro 2021. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/filme-infra-vermelho/


 

SEÇÃO ARTE |DIANTE DOS NEGACIONISMOS | Ano 8, n. 21, 2021

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