Falar antes de falar. Abordagem polifônica das situações ecológicas*


Vanessa Kohner[1]

 

Não se assuste se começo minha apresentação de maneira um tanto abrupta. Faço isso de propósito. É a esse abrupto, à brutalidade daquilo que vão ouvir que se dedica uma parte da minha reflexão.

Pôde-se observar nitidamente um aquecimento da terra e da atmosfera, uma diminuição da quantidade de neve e de gelo, uma elevação do nível dos mares e das concentrações de gases de efeito estufa. A responsabilidade desta mudança pode ser atribuída em 95% às atividades humanas: queima de combustíveis fósseis, desmatamento (20%)… Além de um aumento de 2ºC em relação à era pré-industrial, corremos o risco de enfrentar transtornos e precipitações climáticas incontroláveis, colocando em perigo os ecossistemas humanos e não humanos. O 5º Relatório do IPCC revela que esse aquecimento poderá atingir 5,5 °C até 2100[2]. Se não mantivermos o aumento da temperatura abaixo do patamar de 2ºC, se não mudarmos o cenário do consumo energético atual, haverá consequências sem precedentes. Atualmente, a temperatura aumentou em 0,85ºC com relação à era pré-industrial. Inundações, secas, incêndios, tempestades violentas já fazem parte dos impactos nefastos destas mudanças climáticas. Hoje em dia, fala-se também de uma sexta extinção, a do holoceno. Segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza, uma em cada oito espécies de pássaros, um em cada quatro mamíferos, um em cada três anfíbios e 70% de todas as plantas estão em perigo. A taxa de extinção é de 100 a 1000 vezes mais elevada que o ritmo natural. Juntamente com as espécies que desaparecem, estão igualmente ameaçados os meios que os abrigam (recife de corais, mangues). Observa-se também uma rarefação no nível dos recursos indispensáveis à vida na terra. A ONU estima que hoje 2,4 bilhões de indivíduos (ou seja, 1/3 do planeta), são privados do acesso à água potável. Segundo a FAO, em média 13 milhões de hectares de florestas desaparecem anualmente. A estes desaparecimentos acrescentem-se as poluições do ar, do oceano, dos solos, da saúde humana (câncer, má formação…). A isto se acrescente a dificuldade cada vez maior de administração dos resíduos ligados a uma população crescente e a uma sociedade muito consumista: 1 quilo de lixo por dia por habitante nos países desenvolvidos (sem contar os lixos escondidos), o aumento de 33% dos lixos elétricos e eletrônicos de hoje até 2017, criando 65,4 milhões de toneladas de detritos. A isto se acrescente a ausência de controle no que diz respeito aos lixos radioativos da indústria nuclear. A isto se acrescente…

Tomar conhecimento das numerosas catástrofes ecológicas que estão acontecendo tem o efeito de um anúncio de morte, de um aviso de fim de sonho. O choque ligado à declaração do diagnóstico ecológico poderia se comparar àquele experimentado no momento do prognóstico de uma doença grave, de uma ruptura sem volta possível quanto a certa maneira de vivenciar seu corpo. Um sentimento de paralisia e impotência nasce diante de um “como” habitar de maneira responsável aquilo que corre o risco de tornar-se inabitável, e que já o é para muitos indivíduos. A tarefa parece imensurável. Para não sucumbir ao caos das emoções, à tristeza, ao medo que acompanham esta experiência, um caminho que se toma é aquele de “anestesiar”, suprimir a possibilidade de ser afetado e tocado pelo que nos envolve. Esta anestesia se traduz por uma perda de movimento, de consciência, de memória, por uma liberação de qualquer tipo de responsabilidade quanto ao inventário do nosso corpo ou do corpo coletivo.

A aposta da minha pesquisa é que existe outro caminho, que consiste em “estesiar”, em despertar os sentidos, em ficar atento àquilo que nos toca e fazê-lo ecoar através de uma composição que evocará um canto vital, individual e coletivo. Pois este tipo de fenômemo sísmico desperta também sensibilidades, formas de questionar, de problematizar, de estar no mundo, em si próprio, em seu corpo e nos outros, que podem ser exploradas, de certo modo, através delas mesmas. Só se pode viver com uma doença grave, com um traumatismo, um ferimento, com a consciência de nossa mortalidade próxima, tentando dar-lhes sentido, inscrevê-los em uma história.

Minha hipótese de trabalho trata precisamente daquilo que existe para trabalhar nessas condições de desastre, anunciado ou já em andamento. Nossa vida é feita de uma infinidade de pequenos gestos e sopros imperceptíveis, anedóticos. São estes pequenos gestos que povoam um ser e constroem seu meio ambiente. Se a anedota é um pequeno acontecimento que tomamos por secundário e menor aos olhos de uma ação dita principal e maior, a anedota “vital” é um microrrelato do qual gravamos intensamente o traço, porque o essencial aí se encontra. E, justamente, são estes microrrelatos que revelam outras relações com o vento, o sol, a eletricidade, a terra, que eu gostaria que fizessem a diferença.

Através da escolha de narrativas (Sexta-feira ou os limbos do Pacífico de Michel Tournier, O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry, Eu, Christiane F., 13 anos, drogada prostituída…), exploro aquilo que “a declaração da catástrofe ecológica” mobiliza como fontes de energia, possibilidades, novas alianças. Logo, minha hipótese principal demonstra que estas fontes podem ser encontradas em algumas narrativas individuais e coletivas, mas que não temos necessariamente o hábito de caracterizá-las como “ecológicas” – da mesma maneira que aquilo que faz “sentido” ou o “histórico” em uma doença não pertence propriamente nem ao diagnóstico nem ao remédio, nem ao sentido médico destes termos. Sob este ponto de vista, a “cura” não é somente a supressão da lesão, mas a cultura de uma arte do cuidar que pode se comparar a implantação de uma nova consciência. A via que sigo consiste em uma estetização na qual se intensifica o movimento da consciência, estimula-se a capacidade de resistir aos choques que enfraquecem e se ganha impulso, imaginando, desembaraçando, cultivando outras relações para aquilo que defendemos como vital.

Esse insensível e incômodo veredicto do diagnóstico ecológico no que concerne à atmosfera, aos rios, às florestas, esse estilo não narrativo, é uma maneira de falar que se dirige apenas a uma das vertentes cognitivas do ser humano. Ao lado desta maneira de falar, seria conveniente intensificar outros modos de enunciação que estimulem outras versões do corpo quanto às modos de alcançar, de tocar, de entrar em relação com as florestas, os oceanos, os rios, o ar. Proponho multiplicar as narrativas, no sentido de relatio, relacionar tudo isso de maneira que a diversidade polifônica de um ser e das situações seja levada em consideração. Isto me leva a questionar filosoficamente o relato, não para defini-lo, mas para testar sua eficácia, sua repercussão. O relato me parece representar o papel de intercessor. Ele permite um diálogo com os medos, os traumas, as feridas, os indizíveis, e dessa maneira, pelas aberturas espaço-temporais que ele suscita (nos conectar a tais e tais tópos do corpo), ele permite negociar a comunicação pela reflexão tanto conceitual quanto afetiva, e traçar os pontos entre essas diversas maneiras de pensar.

Falar antes de falar

Procuro, então, criar maneiras de falar, de contar aquilo que a catástrofe ecológica provoca em nós: nossos consolos, nossas paixões, nossas feridas, nossas responsabilidades. A questão que me estimula é a seguinte: como levar em conta o que acontece conosco? Quer dizer, não somente como levar em consideração a diversidade e a singularidade dos problemas ambientais, mas também como relatá-los, colocá-los em forma de relato, para poder habitá-los? A meu ver, o que importa é criar e conviver com lugares significativos que acolham a diversidade de vozes interessadas pelo que nos acontece, de tal modo a nos fazer entrar em contato com a diversidade das vozes que falam em nós (vozes do coração, vozes da razão, vozes do medo, da raiva, da resignação, do suicídio) e, assim, fazendo com que outras maneiras de se expressar, incluindo as sensibilidades e formas de vidas extra-humanas, contribuam para estimular e tornar vivo o mundo que habitamos. Outra das minhas hipóteses ou linhas de pensamento é que falar só exalta a expressão verbal (nós choramos, rimos, dançamos, construímos, emanamos odores, vibrações) e que não somos os únicos a falar, a existir no atual cenário ecológico (as montanhas falam, os cachorros são excelentes contadores, os pássaros fazem frases que povoam o céu de relatos com entradas múltiplas, a terra respira…). Compor um mundo comum que esteja com grande saúde (sabendo que a saúde de um ecossistema se deve à diversidade de seus componentes, e também às interações entre estes) necessita que as vozes, as proposições de existência, possam crescer juntas umas com as outras e não em detrimento umas das outras. Então falar não “de”, mas “com”, implica estar estimulado pelos sopros que fazem falar e não desligado deles.

Mas como fazer falar nas nossas vidas estes não humanos e o que nos contam eles?

Nós falamos de contar, então eu proponho a vocês uma pequena história…

A fala das montanhas e das borboletas

Na ilha de Stromboli, na Itália, diz-se com relação ao antigo vulcão que “Ele fala”. Eu me lembro desse insulano que, no momento de lhe pagar uma compra, interrompeu ouvindo um barulho ao longe. Ele me olhou, dizendo num tom interrogativo: “ele falou?”. Sem esperar pela minha resposta, correu para fora da loja para averiguar “alguma coisa”. Naquele momento eu não tinha entendido muito bem. Mas durante minha escalada noturna à montanha de fogo, quando me encontrava a alguns metros das crateras, e ao longe a tempestade trovoava sobre um fundo de mar agitado, violento, e a meus pés se estendia um vertiginoso abismo, entendi a importância crucial daquele “ele falou?”, e ouvi muito bem o que contavam aquelas bocas cuspidoras de cinzas e de lavas incandescentes. Pois naquela noite, minha vida, que estava suspensa em seus lábios, começou a depender de minha escuta e da maneira pela qual eu responderia. O diálogo que se produziu então, dentro e fora de mim, penetrou em inúmeras vertentes do meu ser, e ativou inúmeras vozes: a de Empédocles, a dos vulcanólogos, a da minha morte, do meu medo e do meu desejo ardente de permanecer viva. Fez-se entre minha temporalidade humana e a do antigo vulcão de 220.000 anos, entre as frases de seu corpo, cujas palavras eram estes velhos relevos com os quais eu podia me agarrar, e estas frases jovens que brilhavam no céu e das quais não podia afastar os olhos caso contrário poderia ser atacado pelas costas. Como compor uma música com ele sem me deixar capturar pelo sublime desse canto que era testemunha da infância da terra? Enquanto isso, o vento e a névoa se intensificaram. Havia essas palavras no céu: CINZAS. Havia essas palavras no chão: CINZAS. Cinzas, cinzas em todos os lugares. A ordem do vulcão era clara: era preciso “descer”, mas ainda foi necessário que isto tocasse minha consciência e que esta entrasse em acordo com tudo. As palavras da minha resposta foram feitas através de gestos: escutar o som, não dar as costas às cinzas que saem da sua boca, aceitar voltar atrás porque o vento mudou e lançou em minha direção gazes nocivos, não tirar a foto que faria de mim um herói, deixar-me guiar por sua encosta optando por uma postura animal e me lembrando de que, cedo ou tarde, eu precisaria parar de fumar… 

Este diálogo com o vulcão, com esse não humano, recolocando-me na minha dimensão em relação à dele, como a de uma criança em comparação com a terra, conectando-me com minha situação de mortal, ativou em mim aptidões inusitadas, despertou em mim uma língua que não falava havia muito tempo, uma língua mais que humana, feita de gamas animais e elementares. O vulcão, quando entramos em contato com seu fraseado, não ensina a hybris, ou a desmesura, mas, sim, a humildade.Dizer que uma montanha fala (e não precisa ser o caso particular de um vulcão) e se deixar levar pelo aprendizado de sua língua não é cair em poética desencarnada procedente unicamente da bela metáfora: é uma realidade com a qual o montanhês deve se adaptar, se quiser viver, comer, dormir, pensar. Falar a língua de uma montanha reconhece o fato de produzir um ato de fala, de enunciação, de reflexão que não é emitido somente a partir do ponto de vista humano, mas igualmente em parceria com as forças que constituem a montanha e os habitantes que vivem no local. A palavra da montanha é claramente performativa, ela conduz a uma metamorfose, por menos que se aceite deixar-se habitar por suas vozes diversas, variadas, ritmar-se pela sua tectônica, suas respirações, suas luzes, percorrer diferentes escalas temporais que vão de um dia (para as borboletas) a bilhões de anos (para o rochedo). Aceitando aprender como é feita sua organização, colocando-se à altura das problemáticas suscitadas, isto desperta em um ser saberes escondidos, em que se veem ativados pensamentos da altura de arbustos, reflexões com a envergadura de águias, bem como gestos existenciais que um estilo de vida em um único diálogo com as invenções humanas normalmente fazem calar. Aponto aqui um duplo movimento: de um lado, aceitar essa operação de epoché, quer dizer, de pôr entre parênteses o monólogo humano, deixar-se transpassar pela melodia comum aos animais e vegetais, e do outro lado retomar nosso “solo” com uma consciência maior daquilo que nos constitui enquanto humanos. Compreendendo sua situação, sua posição na cadeia das interdependências e trocas vitais, o humano pode avaliar melhor o impacto que tem sua maneira de tocar o mundo e assim ajustar sua ética ambientalista, quer dizer, sua arte de se conduzir no ambiente que o envolve, a fim de respeitar aquilo que faz sua organização vital.Claro que vou dizer uma palavra sobre leituras que inspiram e alimentam minha pesquisa, mas se falo primeiro da montanha é porque foi ela que me fez falar hoje. É pelo contato com ela (quase 10 anos de vida em comum) e com seu povo que pude dar significado à palavra humildade que o vulcão havia comunicado e lembrado à minha consciência. A palavra humildade vem de humus (terra) e é geralmente definida como uma qualidade que se liga à tomada de consciência da sua condição e seu lugar entre os outros e no universo. Foi tomando consciência dos limites da minha temporalidade, da beleza graciosa de estar vivo aqui e agora, neste planeta terra, que fiquei atenta à polifonia do ser vivo, a todas essas questões que me faziam viver e das quais precisava, então, cuidar.Falar “desta maneira” exalta a anedota vital. Quando o filósofo Gilles Deleuze fala de anedota vital quer dar a entender que a criação de conceitos (própria da filosofia) e a criação de um estilo de vida são conjuntas. A anedota vital retrata “quem fala” e “de onde ele fala”. Deleuze retoma aqui o método nietzschiano que consiste em fazer da filosofia e da vida duas entidades não separadas. Pensar depende das forças que se apaixonam por este pensamento, dos afetos e das energias que se apossam do corpo. Parece-me que se desenha então uma maneira fecunda de abordar as relações entre pensamento filosófico e ecologia. Fundar uma tipologia ou uma topologia das forças permite conectar o “eu” e seu discurso ao seu meio ambiente. Esta posição contrasta com outra postura filosófica vinda do cartesianismo que consiste em abstrair sua existência das circunstâncias e dos arredores. No Discurso sobre o Método, o “eu” descobre que é uma substância pensante: para ser, “não precisa de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material” (DESCARTES, 1966, p. 67). O “Eu” é universal e não se torna outro em contato com o que encontra. Herdo aqui o conceito de Félix Guattari que consiste em dizer que a subjetividade não é uma entidade fixa, mas processual, ou seja, ela pode se transformar no decorrer desses encontros. Para Guattari, a subjetividade é polifônica. Ela é constituída e disposta em uma multiplicidade de componentes heterogêneos[3]. Voltarei (se tiver tempo) a essa dimensão polifônica da subjetividade, bem como à noção polifônica do ser coeso.

Transportadores de seiva ou estimuladores de questões

Com esta história do vulcão, você poderia dizer, repetindo a expressão de Gilles Deleuze, que me pegou “em flagrante delito de legendar”. O que acontece com este tipo de anedota vital como a do vulcão é realmente a capacidade de produção de sentido e valor. O que isso implica? O que é que isso restaura? O que isso desperta como novos vínculos? Esta pequena história é o que me permite iniciar uma relação com a terra, recolocar em questão uma maneira de pensar as problemáticas ecológicas sempre que o pensamento esbarra no impensável que paralisa (qual é o sentido da vida na Terra? De onde viemos? Para onde escolhemos ir e como?). Esta história chama naturalmente outras histórias, porque em uma abordagem ecológica todas as coisas estão interligadas. A ecologia precisa de estimuladores de questões, de transportadores de seivas. Se a pessoa vive nas montanhas ou na cidade, esses transportadores capazes de reativar nossas vozes e de readaptar nossa relação com o que nos rodeia não faltam, mas é conveniente dar-lhes importância, recebê-los e dar-lhes voz. Estes podem ser de vários tipos: chuva, vento, sol, cão, árvore, flor, terra vegetal, filósofo, horticultor, professor de canto. Podem até estar em alguns livros e filmes. Portanto, é uma nova sensibilidade ético/estética que proponho desenvolver, uma nova consciência (no sentido de estar alerta, de estar presente) na qual nossos movimentos (gestualidades do pensar, tocar, conhecer) estariam atentos aos movimentos dos outros seres, do ar e da terra, das colinas e dos rios, do sol e da lua, do dia e da noite, dos animais e das florestas e de todas essas forças que participam da formação dos corpos e daquilo que os faz viver (a terra nos alimenta, o ar nos faz respirar). Neste contexto, a paisagem ecológica não é percebida, vivida como um mundo voltado para o sujeito, o sujeito não é espectador, mas parte atuante. Este enfoque lhe permite aprimorar esta arte, discernir, avaliar o que favorece a vida (os focos de intensificação da respiração), ou o que a altera a ponto de ameaçar nossa própria sobrevivência e a de nossos companheiros não humanos.

A ecosofia segundo Félix Guattari

Para me orientar no desdobramento dessa consciência ecológica na qual se articulam o ecossistema íntimo e o circundante, parti dos trabalhos do filósofo e psicanalista Félix Guattari e de alguns conceitos que ele desenvolveu com o filósofo Gilles Deleuze. Para Guattari não há uma ecologia, mas pelo menos três registros ecológicos. Trata-se de articulá-los de maneira solidária assegurando a singularidade do processo de cada um dos registros: meio ambiente “natural”, relações sociais e subjetividade humana. Situar-se na perspectiva ecosófica consiste em operar a articulação conjunta de uma ecologia mental, social e ambiental, em que a ecosofia é o arranjo ético-político, ético-estético destes três continentes solidários. A práxis ecosófica é um verdadeiro desafio para a criação de outros “viver juntos”. O livro As três ecologias, publicado em 1989, parte da constatação da deterioração crescente da nossa relação com o socius (casal / família / grupo / vizinhança), com a natureza e com a nossa psique. Ele nos mostra que estas três áreas estão intimamente ligadas. Os desastres e as catástrofes dos ecossistemas sociais, que se são postos em jogo no interior do socius ocidental (marginalizados, imigrantes…), ou que se produzam no terceiro mundo, não estão separados dos dramas ambientais (Chernobyl, secas, desmatamentos) nem dissociados do desaparecimento maciço de populações criadoras de nossa psique, nem da invasão desse mesmo espaço íntimo pelos modelos desvitalizantes dos meios de comunicação de massa de um capitalismo com intenção hegemônica. Portanto, as crises serão “curadas” apenas se pensarmos juntos, de maneira conjunta, estes três eixos. O pensamento e a práxis ecosófica, portanto, vivem em uma lógica diferente da estrutura fixa dos sistemas comunicativos comuns, dos conjuntos delimitando seus objetos. A eco-lógica é a lógica das intensidades, na qual a atenção é dada “aos movimentos e à intensidade dos processos evolutivos”. Ela “visa à existência se formando, se definindo, se desterritorializando” (GUATTARI, 1989, p. 36). Ela favorece a obra aberta. Esta outra sabedoria do habitat entende que o inesperado, o desconhecido e a ínfima pequena incursão vivida na forma de um redemoinho terrível no seio de nossos frágeis equilíbrios não geram um endurecimento das nossas fronteiras, mas a reestruturação criativa de outros mapas. Guattari entende essa eco-lógica de um modo semelhante ao do artista cujos planos de criação se veem constantemente remanejados ao sabor dos obstáculos que encontra no traçado de sua linha vital. Para Guattari, ecosofia mental envolve a criação de outras relações existenciais, outras escrituras do corpo, outras experiências com a natureza, a morte, o sexo e o fantasma, procurando antídotos para a uniformização midiática e telemática. A ecosofia social estabelece uma relação com o estar junto por meio das diversas maneiras de ser já constituídas pelo casal, a família, a vizinhança, os colegas de trabalho… Com a crescente degradação deste arranjo em face da contaminação desta trama coletiva, incluindo principalmente a exclusão e o racismo, a ecologia social consiste em modificar e reinventar as maneiras de ser no seio do casal, da família, do trabalho e do contexto urbano. Isto será possível não somente pelas “intervenções comunicacionais”, mas também pelas “mutações existenciais, portanto, sobre a essência da subjetividade” (GUATTARI, 1989, p. 22), tanto quanto pelas “práticas experimentais reais”. O importante aqui é o paradigma estético e a arte de criar uma relação com o outro que seja inédita, não regida por valores midiáticos estereotipados que não levariam em conta a singularidade e a complexidade inerente a cada situação. No que diz respeito às problemáticas ligadas à ecologia ambiental, quanto aos abusos causados aos rios, montanhas, animais e plantas, diante das maiores preocupações relacionadas com as ameaças à biosfera, ao aquecimento global e à extinção de espécies, Guattari apela para uma capacidade coletiva, um tango polifônico entre ecologia individual, social e política. Ou seja, “qualquer apreensão de um problema ambiental pressupõe o desenvolvimento de um universo de valores e, portanto, um engajamento ético-político” (GUATTARI, 2013, p. 75). Trata-se de criar novos valores que não sejam unicamente focados nas valorizações capitalistas de um ganho econômico perdendo todo propósito humano. O desafio da subjetividade ecológica é tanto estético (criação de novas sensibilidades) quanto ético (criação de outras relações com o outro) e de um modo que não seja controlado pela autoridade transcendente de uma moral. Ela consiste, a partir do momento em que se toma consciência da finitude, isto é,, do fato de que um lapso de tempo nos é concedido para trabalhar em proveito de uma (re)construção de si e da relação com o outro, em cultivar e reanimar valores em vias de extinção (solidariedade, empatia), em inventar o novo, em se questionar sobre o “sentido das responsabilidades não só em relação à sua própria sobrevivência, mas também à do futuro de toda a vida neste planeta, das espécies animais e vegetais, e também das espécies incorpóreas, tais como a música, as artes, o cinema, o amor […]” (GUATTARI, 2013, p. 60).

No entanto, o campo da ecologia ambiental, do meio “natural”, não é realmente explorado pelo próprio Guattari. Este continente permanece pouco povoado conceitualmente. Aí também habitam medos como o de um “retorno” retrógrado à natureza sem vínculos com as invenções dos homens, como o advento de um capitalismo verde. Levando isto em consideração, ao invés de circunscrever três áreas ecológicas, eu multiplicaria as situações ecológicas e dentro de cada uma delas examinaria como uma ecosofia opera (sabedoria de habitar), onde se articulam e dialogam a ecologia do eu e a ecologia do socius. Neste socius, integraria as inteligências e sensibilidades mais do que humanas (animais, vegetais), o espaço comum, o conjunto não sendo composto apenas por seres humanos, mas também pelo avô Tília, grande-irmão Taro (como dizem os havaianos quando falam desta leguminosa), a Floresta Amazônica… No decorrer da história da espécie humana, e até entre certos povos e na maneira de viver de muitas pessoas atualmente, mantêm-se relações com o vento, paisagens e florestas. Tudo isto fala, canta e participa de uma música comum. O encontro com um animal, o trovão, o granizo, o arco-íris, a maneira de produzir frutos de uma árvore, fazem parte dos acontecimentos importantes de um dia, suscitam a reflexão coletiva e que sejam consultados os antepassados para interpretar o significado de um acontecimento particular, porque disso depende a sobrevivência de uma alma, a subsistência da comunidade. Com as mudanças climáticas atuais, esse tipo de preocupação vai voltar à mesa de discussão.

Exemplo de relato: O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry

O conto do Pequeno Príncipe fala sobre como habitar o inabitável. Seu falar tem a eficácia de um poder transformador. Atuante no que afirma, ele inventa um remédio para o irreparável. Mergulha no irrespirável das lesões e intensifica o sopro vital, fornecendo uma dose de cuidado e responsabilidade à nossa forma de construir relacionamentos. Este inabitável permite ser habitado tanto no que diz respeito ao conceito filosófico quanto ao pensamento pelos afetos. Portanto, é uma abordagem polifônica. Falei a pouco de ecosofia, ou seja, da concatenação de uma ecologia do eu e do socius guiada por um paradigma ético-estético. Designei este socius, e pareceu-me apropriado incluir raposa, árvore e cobra, pois são inteligências que participam de nossos agenciamentos coletivos e cujo conhecimento contribui para a formação do nosso. O Pequeno Príncipe é uma daquelas histórias que realizam este movimento ecosófico de fazer música com seu coral particular e com o dos outros. Pode-se ver, no decorrer dos encontros, que se articula e se constrói um diálogo com o meio ambiente pessoal e interpessoal, que se modela uma relação consigo e com o outro, sendo este humano (o aviador, o rei, o homem de negócios), animal (a raposa, a cobra), vegetal (a flor, o baobá) ou mineral (o vulcão, o deserto), que se reporta ao cósmico (a estrela, o sol), ao terrestre (o nosso planeta Terra) ou ao extraterrestre (o pequeno príncipe). Os problemas filosóficos ligados à ecologia  levantados, experimentados e rearticulados, a fim de superá-los, são os seguintes: articulação do distante e do próximo, do visível e do invisível, do local e do global (minha flor – minha terra – meu animal/a floresta amazônica, as populações animais), do efêmero e do durável…

Já que não temos a possibilidade de nos sentar ao redor do fogo e aí passar a noite, vou rever muito brevemente as etapas desta caminhada ecosófica na qual se aprende esse fazer música de modo coletivo, tanto no nível das populações íntimas, quanto com outras entidades humanas, animais, vegetais e cósmicas. Estas etapas são as seguintes:

1) O pequeno príncipe pratica cuidadosamente a lógica do coexistir. Ele cuida de seu ambiente, do que faz sentido para ele, a saber: todo dia, depois de fazer sua higiene pessoal, ele faz a higiene do planeta. Ele limpa a boca dos vulcões, arranca os rebentos do Baobá e rega as flores.

2) Um acontecimento inesperado vem perturbar o seu agenciamento: a chegada de uma flor muito complicada. Esta desconhecida provoca nele a confusão em sua lógica do coexistir. Seu ethos, sua arte e estilo de vida se veem abalados. Daí surge a paralisia e a tristeza. O pequeno príncipe, que não sabe gerir suas impaciências nem acolher sua tristeza como uma hóspede passageira, partirá abandonando tudo o que faz sentido para ele. Viverá com esse amor ferido, mas continuará o trabalho de aprender a amar sua flor. Em cada um dos seus encontros, fará uma consulta sobre esta questão. É um animal, a raposa, que irá fornecer a dosagem do medicamento que o ajudará a “curar” sua ferida, iniciando-o na arte de fazer música com o outro. Este remédio consiste no despertar para uma nova consciência cujos ingredientes são:

  1. a) Aprender a criar um tempo para o encontro, aprender a desacelerar e exercitar a paciência. Longe de uma cultura intensiva, estar atento ao tempo que as coisas levam para se criarem é o que dá seu sabor, sua raridade. Assim, criam-se os laços que libertam. Aqui, o encontro ecológico é previsto como a arte de cultivar interações que fazem crescer com autonomia cada uma das partes envolvidas na relação.
  2. b) Aprender a coexistir com acontecimentos próprios à travessia do vivo, ao país das lágrimas, ao luto, à solidão. Este aprendizado é realmente aquele de uma ecologia de si. No ecossistema de um ser coexiste uma variedade de afetos. É uma polifonia em que cada polaridade emocional tem algo a dizer, sua voz a exprimir. A ecologia de si seria experimentada como a arte de “coexistir” com as várias vertentes emocionais, para desvendar as complementaridades, as interações, e estar atento àqueles momentos em que um polo assume o domínio sobre os outros, arriscando silenciá-los permanentemente.
  3. c) Aprender a ver com todos os seus sentidos, não apenas a olhar com os olhos. “O essencial é invisível para os olhos”. Para além do simples reconhecimento orgânico, começa-se a ver as forças que estão trabalhando na constituição do visível. Ao perceptivo se junta o afetivo, e segue-se uma operação de captação destes pequenos acontecimentos discretos que dão fôlego. A partir disto, fazemos de um ambiente comum um meio sagrado. Aquilo que faz viver estabelece também a imanência: no riso do amigo, na árvore do parque, na pedra que se encontra em nossas mãos e na qual a montanha é dobrada. Segue-se uma articulação renovada do local e do global, do durável e do efêmero. No amigo, há um mundo que precisa ser cuidado; na defesa desta árvore, há um gesto em favor do planeta.

3) O pequeno príncipe, por sua vez, transmite o remédio ao aviador, que por sua vez o divulgará ao leitor.

Nós não escaparemos disto, pois o pequeno príncipe, que tem o irritante hábito de fazer uma série de perguntas a quem estiver no seu caminho, nos faz estas perguntas também. Quais são elas?

Esta história não esgota todas as questões. Outras histórias como “Sexta-feira ou a vida selvagem”, “Christiane F., 13 anos, drogada prostituída” colocam-nos diante de outras situações ecológicas, confrontam-nos com outros problemas ecosóficos que suscitam outras questões. Quais são elas?

 

Tradução de Teresa Cristina de Arruda Botelho

 

Referências

DESCARTES, René. Discours de la méthode. Paris: GF Flammarion, 1966.

GUATTARI, Félix. Chaosmose. Paris: Galilée, 1992.

______. Les trois écologies. Paris: Galilée, 1989.

______. Qu’est-ce que l’écosophie?, Paris: Lignes/Imec, 2013.

 

Recebido em: 11/10/2015

Aceito em: 11/10/2015


* Texto apresentado no Seminário dos doutorandos, 19 de novembro de 2014 (ULG).

[1] Vanessa Kohner é doutoranda na Université Libre de Bruxelles (ULB) onde desenvolve a tese intitulada La danse écosophique. Articulation d’une écologie mentale, sociale et environnementale dans la lignée de Gilles Deleuze et Félix Guattari, orientada por B. Timmermans.

[2] Resumo aos cuidados dos formuladores do volume I do 5º Relatório de avaliação do IPCC disponível em: <http://www.ipcc.ch/report/ar5/wg1/docs/WG1AR5_SPM_brochure_fr.pdf>.

[3] Uma multiplicidade de registros semióticos engendra a subjetividade, não estando estes nas relações hierárquicas, fixados de uma vez por todas. Para cada ser humano, existe uma “heterogeneidade dos componentes agenciando a produção de subjetividade”. Guattari os reúne em três grupos: “1) dos componentes semiológicos significantes, que se manifestam através da família, da educação, meio ambiente, da religião, da arte, do esporte… 2) dos elementos fabricados pela indústria das mídias, do cinema etc. 3) das dimensões semiológicas a-significantes colocando em jogo máquinas informacionais de signos, funcionando paralelamente ou independentemente com o fato de elas produzirem e veicularem significações e denotações e escapando então dos axiomas propriamente linguisticos””. (GUATTARI, 1992, p. 15).

Falar antes de falar. Abordagem polifônica das situações ecológicas

 

RESUMO: Este artigo expõe alguns gestos de pensamento tomados a partir de uma pesquisa em filosofia inscrita numa perspectiva ecosófica, na qual dialogam o ecossistema de si e aquele dos arredores. Esta investigação centra-se em “o que” há a “trabalhar” nas condições de desastres ambientais anunciados ou já em curso. Como tomar aquilo que nos acontece? Ou seja, não apenas como levar em consideração a diversidade e a singularidade dos problemas ambientais, mas também como contar/dizer o que desperta em nós a catástrofe ecológica: nossos recursos, nossas paixões, nossas feridas, nossas responsabilidades. A arte de contar histórias permite acompanhar a subjetividade no seu trabalho de percepção da diversidade de vozes mobilizadas por questões ecológicas, mas também de dar a sentir como essas vozes (voz do coração, da razão, do medo, a voz animal, vegetal, mineral,…) estão interligadas e entram ou não em relação. Através da ativação da dimensão polifônica da consciência, a narração permite também a escritura de novas distribuições de existência, na qual nossos gestos se tornam mais sensíveis aos movimentos destes outros seres que habitam o planeta, participando na composição de um mundo comum em grande saúde.

PALAVRAS-CHAVE: Narrativa. Félix Guattari. Ecosofia.


 

Parler avant d’en parler. Approche polyphonique des situations écologiques

 

RESUMÉ: Par cette communication, il s’agit d’ exposer quelques gestuelles de pensée extraites d’une recherche en philosophie inscrite dans une perspective écosophique où dialoguent l’écosystème du soi et celui des alentours. Cette recherche porte sur «ce» qu’il y a à «travailler» dans les conditions de désastres écologiques annoncés ou déjà en cours. Comment prendre en «conte» ce qui nous arrive? C’est-à-dire, non seulement comment prendre en considération la diversité et la singularité des problèmes environnementaux, mais aussi comment raconter ce que suscite en nous la catastrophe écologique: nos ressources, nos passions, nos blessures, nos responsabilités?  L’art du récit permet d’accompagner la subjectivité dans ce travail de perception de la diversité des voix mobilisées par les questions écologiques, mais aussi de donner à sentir la façon dont ces voix (voix du coeur, de la raison, de la peur, voix animales, végétales, minérales…) s’enchevêtrent et entrent ou non en relation. En activant la dimension polyphonique de la conscience, la mise en récit permet aussi l’écriture de nouvelles partitions d’existence où nos gestes se rendraient plus attentifs aux mouvements de ces autres êtres qui peuplent la planète et participeraient de la composition d’ un monde commun en grande santé.

 MOTS-CLEFS: Récit. Félix Guattari. Écosophie.


 

Speaking before speaking. Polyphonic approach to environmental situations

 

ABSTRACT: This article exposes thoughts taken from a research in philosophy inscribed in an ecosophy perspective in which dialogues our own ecosystem and the surrounding ones. This research focuses on “what” is to be “worked” under the conditions of announced or “in course” environmental disasters. How can we appropriate ourselves on what happens to us? In other words, our interests are not only discuss about how to consider the diversity and uniqueness of environmental problems, but also how to tell / say what awakens in us the ecological disaster: our resources, our passions, our wounds, our responsibilities? The art of storytelling allows to follow the subjectivity in it’s work of perception on the voices’ diversity mobilized by ecological issues, and also allows to follow the subjectivity in it’s work of enable to feel how that voices (the voice of heart, reason and fear; animal, vegetable and mineral,…) are connected and get or not in relation. By activating the polyphonic dimension of consciousness, the narrative also allows the writing of new existence distributions in which our gestures become more sensitive to the movements of these other beings that inhabit the planet, participating in the composition of a common world in great health.

KEYWORDS: Narrative. Felix Guattari. Ecosofia.