Alessandro Campolina | Espiritualidade e contingência: perspectivas ameríndias e whiteheadianas na cosmovisão ancestral amazônica.


Alessandro Gonçalves Campolina [1]  

PROPOSIÇÃO 0: 

“Acho que agora é contar o surgimento da transformação das ervas. Hoje acho que é 6 de dezembro, sexta-feira de 2011, eu vou contar pequenas histórias da criação, do surgimento dos planetas, as histórias são tradição do povo Huni Kuin (IKA MURU, 2014, p.36) 

Para o pajé Agostinho Ika Muru, liderança indígena Huni Kuin, o problema religioso configura o grande paradoxo que atravessa as narrativas cosmogônicas do seu povo. “Foi Yuxibu que criou, é só um Yuxibu e dentro desse poder, criaram-se milhares de yuxibus. Então realmente tudo são yuxibu (IKA MURU, 2014, p.30). Na cosmogonia Huni Kuino mito de Yuxibu narra a existência de uma entidade que é simultaneamente una e múltipla, e que sustenta o poder criativo de toda uma realidade em formação (CENTRO DE MEMÓRIA, DOCUMENTAÇÃO E REFERÊNCIA, 2017) 

Na história do surgimento das doenças, os pajés recebem a voz de Yuxibu: “para vocês terem poder de socorrer os seus povos, só se vocês se transformarem nas ervas. Que quando vocês se transformarem nas ervas, a vida, o trabalho de vocês, vai ser que nem Yuxibu (IKA MURU, 2014, p.38). Assim, nos rituais de cura, os sentires de Deus e do mundo se entrecruzam, operando uma efetuação recíproca. O pajé, ao ingerir uma bebida sagrada, recebe o corpo ancestral de todos os pajés que o antecederam (a voz e o canto) e entra em um devir planta (com fenômenos físicos e corporais). Ao mesmo tempo, todos aqueles que participam da ritualística sentem o despertar do poder das ervas curadoras e, ao longo do ritual, ingressam no grande encantamento da beleza que cura (ORGANIZAÇÃO DOS PROFESSORES INDÍGENAS DO ACRE, 2007) 

Com Whitehead, a mais geral formulação desse problema religioso envolve a questão de saber se o processo do mundo contingente é capaz de levar à formação de outras realidades, unidas em uma ordem em que a produção de novidades é preservada (WHITEHEAD, 1979)O grande obstáculo para a efetuação do mundo contingente é, portanto, de ordem temporal e encontra-se no fato de que o passado desaparece, de que o tempo é um perecimento perpétuo. Na cosmologia whitehediana, o problema religioso envolve uma investigação sobre como o princípio de criatividade pode se manter em uma ordem em que o tempo é perecimento, ou seja, como o uno (Yuxibu) e o múltiplo (yuxibus) podem se integrar no processo de criação de novidades. 

 

PROPOSIÇÃO 1 

“Na verdade, tudo na vida tem poder. […] Todos temos o poder de Yuxibu e a sabedoria de Yuxibu está em qualquer pessoa, só tem que entender qual é o caminho, para entender, seguir nesse caminho de Yuxibu para poder chegar aonde você tem a luz, entender o que estava querendo saber” (IKA MURU, 2014, p.29).

A dificuldade em se definir Yuxibu, enquanto entidade atual, perpassa a narrativa cosmogônica Huni Kuin, através da articulação de dois tipos de entidades: Yuxibu e yuxibus. O Yuxibu, enquanto entidade infinita capaz de estabelecer a relevância e o valor das coisas, e que confere responsabilidade e possibilidade de decisão. Os yuxibus, enquanto entidades atuais finitas, entidades criadoras, e que participam constitutivamente da multiplicidade de tudo que existe. 

Com Whiteheadé importante considerar que ser atual é ser uma instância do princípio último de criatividade. A criação é fundamental e contínua, pois sempre há algo novo por acontecer. A filosofia de Whitehead pressupõe um plano de ocasiões que se sucedem, mas que ao mesmo tempo coexistem, sem que o novo seja necessariamente de uma qualidade melhor ou pior do que o que é antigo. Ocasiões que ocorrem no processo de construção e desconstrução, de vida e de morte, sendo todas instâncias da criatividade, independente de produzirem inclusões ou exclusões, de fazerem ou não a vida emergir e se renovar. 

A todo instante a multiplicidade está se tornando una em uma miríade de ocasiões e o devir de cada uma dessas ocasiões adiciona algo de novo a essa miríade de acontecimentos. O conceito de “criatividade” chama a atenção, portanto, para o processo sempre contínuo através do qual o cosmos continua sendo o que é, ao mesmo tempo, em que se torna o modo de expressão da realidade última em que “o múltiplo se torna um e é acrescido por mais um” (MCDANIEL, 2008). 

 

PROPOSIÇÃO 2: 

“O que é Yuxibu? E quem é essa pessoa? De qual família? De onde veio? Qual o pai de Yuxibu? Se tem pai, se não tem pai e nem mãe. Quem é Yuxibu?” (IKA MURU, 2014, p.27).

A natureza dividual dYuxibu se expressa em seus rastros, fragmentos que se espalham por toda a reticulação das narrativas cosmogônicas Huni Kuin. Há uma tensão vital em seu processo de atualização que se entrecruza com atualizações outras de entidades que contrastam e concorrem para a realidade em processo. 

Com Whitehead, as entidades atuais que compõem o mundo são todas “ocasiões atuais”. Isso significa que elas são acontecimentos, ocorrências ou eventos, em vez de entidades substanciais que perduram inalteradas ao longo do tempo (WHITEHEAD, 1979). Uma experiência humana momentânea é um exemplo de tal ocasião, assim como o raiar do sol após uma noite de chuva. Explicar o que há de totalmente atual e como se dá o processo de atualização de tais ocasiões é uma tarefa central da filosofia whiteheadiana. 

Ocasiões atuais são as entidades atuais das quais o mundo é composto, significando, por exemplo, esse cosmo e qualquer outro cosmo que possa ter sido ou que possa vir a acontecer. Este é um grande desafio para a maioria das tradições ocidentais e para o “senso comum”, enraizado no pensamento através da linguagem. Os exemplos de Whitehead são notórios nesse sentido (WHITEHEAD, 1994)Por exemplo, quando dizemos: “o cão late”, a maioria de nós pode pensar no cão como uma entidade atual. Whitehead, entretanto, adverte que para entender a atualização, devemos deixar de dar prioridade àquilo que a maioria dos nossos substantivos, como o substantivo “cão”, designa para a experiência daquele que se coloca como observador, ao ouvir o latido do cão. Com Whitehead, o cão latindo é apenas uma abstração da experiência do indivíduo que está ouvindo. Por outro lado, é a experiência do indivíduo que é totalmente atual. 

No entanto, uma vez que entendemos que tipo de entidade é atual, podemos também ir de encontro à realidade que se faz no cachorro latindoMesmo o “senso comum sugeriria que a atualidade do cão não se exaure pela simples apreensão de um observador que ouve o latido, ou seja, o cão também tem um ponto de vista. Em qualquer momento, há a experiência do cão, assim como a do observador, e talvez muitas outras em acontecimentoNesse sentido, a experiência do cão, em cada momento, é tanto uma ocasião atual quanto a experiência do observador humano. Essas duas perspectivas são ocasiões atuais que se entrecruzamWhitehead diria que elas são acontecimentos, mas que seria, além disso, necessário especificar que são ocasiões, para diferir de tudo aquilo que recebe o estatuto de atual em muitas outras tradições de pensamento.  

Um grande número de linguagens pode levar a supor que um ato exige que um ator se diferencie do ato em siNesse sentido, o ator normalmente é considerado como agindo mais de uma vez. Isso implica que o “eu” do ator perdure no tempo e se expresse em uma sucessão de atos. De modo similar, o que recebe influências do passado é pensado como algo distinto dessas influências. A ideia de uma substância que age e “é agida” é difícil de erradicar do pensamento do senso comum”, mas Whitehead nos convida a uma tal erradicação. Uma ocasião não é algo substancial em que se age e a partir da qual se pode agir, ela surge como o ato de receber e, sobretudo, como um ato de auto-constituição, como um receptáculo e uma oportunidade para experimentar. 

 

PROPOSIÇÃO 3: 

“Nós estamos em cima de Yuxibu, só que não entendemos as ciências, o significado de Yuxibu. Quem criou foi só um Yuxibu, mas através desse um, germinaram milhares de yuxibus (IKA MURU, 2014, p.27).

Existe uma entidade atual, entretanto, que não é uma ocasião, mas que, em contraste, é infinita. Essa entidade atual é Deus, já que com Whitehead, Deus não é uma exceção às categorias, mas sim sua exemplificação ideal e, portanto, haveria algo de comum entre Deus e as ocasiões atuais. Whitehead utiliza o termo Deus em contraste com a noção de ocasiões, que abrange os elementos sempre perecíveis dos quais o mundo contingente é composto, sem que isso reduza ou amplifique a atualidade de Deus. Por isso, o conjunto de entidades atuais poderia ser composto pela somatória de Deus e de todas as ocasiões que compõem o mundo, ou seja, Deus e as ocasiões constituem um mesmo plano de composição do real (WHITEHEAD, 1979). 

Indo além, Whitehead considera Deus como uma noção derivada, uma criatura ou até mesmo um acidente de criatividade. Assim, pode-se pensar que Whitehead não confere um papel hierarquicamente superior a Deus na explicação do que acontece no mundo contingente. O “Deus whiteheadiano” parece então se diferenciar radicalmente do que normalmente tem sido entendido como Deus em grande parte das tradições teológicas. Isso porque, de acordo com o seu princípio ontológico, todas as razões devem ser encontradas em uma entidade atual; e essa entidade atual deve ser cósmica em seu funcionamento, ou seja, deve agir. Entidades atuais agem e somente elas são as razões para o que acontece. A razão pela qual qualquer ocasião se torna o que é, e o que faz, deve ser procurada no plano de entidades atuais de que faz parte. 

No entanto, também é importante considerar o fato de que as ocasiões atuais são providas de propósito. Elas visam atingir algum valor em si mesmo e através de sua influência sobre as outras entidades. Esse caráter intencional das ocasiões atuais não pode ser explicado pela criatividade ou pelo mundo contingente de uma ocasião. Entretanto, se os objetos são ordenados por Deus com o objetivo de obter maior valor no mundo, as ocasiões atuais precisam de potenciais puros para sua realização conforme ordenadas dessa maneira. Assim, em alguma medida, existe uma derivação de Deus, em termos de um “objetivo inicial” que se traduz na percepção do campo de possibilidades de uma dada situação. 

Assim, com Whitehead, a ordenação de Deus funciona como a base da regularidade no mundo contingente, a base da novidade e a base da intencionalidade, sem, entretanto, agenciar nenhum processo criador por si sóWhitehead, de fato, acredita que essa ordenação só se daria a partir do trabalho de uma entidade atual e por essa entidade evocar o culto dos seres humanos, a justificativa para chamá-la de Deus poderia ser encontrada na história dos homens (WHITEHEAD, 2009). Entretanto, Whitehead é enfático ao afirmar que algumas das características atribuídas a Deus em algumas tradições teístas não são justificadas por esse relato. Por exemplo, Deus não é o “supremo”mas sim um exemplo de criatividade, talvez o maior dos exemplos. Deus não controla o que acontece, na medida em que existem muitas “razões” para o que acontece no mundo próprio dos acontecimentos, dos quais Deus é sempre apenas umaisto é, Deus nunca determina unilateralmente o que acontece. Ainda assim, Deus é sempre uma dessas razões, aquela que exige a realização de um valor e que torna possível essa percepção. 

 

PROPOSIÇÃO 4: 

“O Yuxibu faz tudo para ninguém ter questão de nada, cada qual assumir a sua responsabilidade nisso mesmo. […] Eu sei que ele criou, que assumiu a responsabilidade, mas num 2° lugar ele entregou para nossa mãe criatura, que ela também yuxibu (IKA MURU, 2014, p.28).

Whitehead compartilha a visão comum da grande importância das causas eficientes ou o que ele chamou de “eficácia causal”. De algum modo, o autor parece convencido de que apenas entidades atuais exercem eficácia causal, de que, de fato, elas são os únicos “motivos”. Em outras palavras, o conteúdo e a forma de qualquer ocasião são explicados por entidades atuais. Qualquer explicação que não exponha as entidades atuais que estiveram implicadas no processo que faz com que uma ocasião tenha a constituição que possui, é insuficiente, ainda que necessária. 

No entanto, com Whiteheadem toda a experiência há um senso de propósito. Cada ocasião “visa” alcançar algum valor. Com efeito, visa tanto a realização de algum valor em si como também a contribuir com algum valor para ocasiões futuras. Toda ocasião tem esse “objetivo subjetivo”, mas o objetivo de uma ocasião não está no valor em geral, mas em alguma realização particular do valor que é possível nessa mesma situação.  

Em geral, com Whiteheado valor é alcançado gerando e aumentando os contrastes, produzindo intensificaçõesNa trama das diversidades, há muitas diferenças no passado que são mais facilmente tratadas pela eliminação. Mas também é possível, em alguns casos, incluir diferenças, incorporando-as em uma síntese mais elevada. As diversas características são assim contrastadas umas com as outras, conjugando ordem e intensidade no processo de constituição do real (WHITEHEAD, 1979). 

 

PROPOSIÇÃO 5: 

“É um Yuxibu que dá vida para nós, dá tudo que a gente quiser fazer aqui na Terra, cumprindo nossas missões, passando pelos trechos como todos os yuxibus daqui, que andamos emprestados, nada do que nós temos é nosso. Então Yuxibu já foi aquele e aquilo de onde nascem todas as coisas que fazemos durante as nossas missões aqui neste planeta” (IKA MURU, 2014, p.28).

Com Whitehead, é possível ainda pensar o objetivo da maioria das ocasiões como completamente inconsciente, mas mesmo em ocasiões conscientes, o objetivo geralmente não está conscientemente em vista. No entanto, a inconsciência do que se visa influencia todo o processo de constituição do “eu” que experiencia. 

Todas as ocasiões se constituem a partir de alguma zona de indeterminação em suas origens. Seus mundos contingentes não se resolvem completamente e o que elas se tornarão se sustenta em um estado de permanente incompletude. Seus modos de sentir podem incluir dobras e desdobramentos que, assim, introduzem alternativas de efetuaçãoNesse sentido, ocasiões atuais podem “valorizar” e “desvalorizar” partes do que é herdado ou do que é perdidoA maneira de lidar com o indeterminado é inevitavelmente afetada por sua aspiração subjetiva, que entra em processo na constituição de uma subjetividade inacabada. 

No entanto, a ocasião se completa como algo inteiramente determinado. Isso envolve cortar todas as possibilidades, exceto uma, e esta é a sua “decisão”. O problema da decisão é então singular e não comporta qualquer determinação absoluta seja por ocasiões passadas ou por Deus. Consequentemente, o princípio ontológico (toda razão para o que uma ocasião se torna é encontrada em alguma entidade atual) não nega que cada ocasião também inclui um elemento de autodeterminação. Whitehead emprega a expressão latina “causa sui” para comunicar essa ideia. Toda ocasião é em parte “causa sui” (WHITEHEAD, 1979). A decisão de uma ocasião é seu próprio ato e, juntamente com as decisões de todas as ocasiões anteriores e de Deus, explica por que a ocasião é o que ée o que pode vir a ser. 

 

PROPOSIÇÃO 6 

Yuxibu cria. Ele criou tudo, e até hoje está criando. Esta criando o que? Como nós estamos aqui decidindo. […] Então na primeira respiração que refletiu aqui para poder criar a Terra, aí Yuxibu percebeu que dava para ter vida, então ele resolveu explodir, aí foi para todo lado puft e o vento correu, trouxe a claridade do sol, abriu o sol, as estrela e criou a Terra. A hora que a Terra recebeu esse poder, que respirou, saiu a voz, esse que é Yuxibu – A e E, não tinha ninguém, passou mensagem essa voz. […] Ele é que é o dono do poder, mas para deixar o registro, para todo mundo confirmar que é o A mesmo, para os povos alfabetizar, foi a primeira letra também que ele deixou para a gente iniciar os estudos. Acredito que todo mundo que está aqui não iniciou os seus estudos com outra letra, ou alguém começou com outra letra fora de A? (IKA MURU, 2014, p.29).

Whitehead chama a ordenação de Deus, em prol do valor que ela realiza no mundo, de “natureza primordial” de Deus (ou, com Ika Muru, o “A” de Yuxibu). Ele considera essa ordenação como um único ato não temporal, precedendo e condicionando cada ocasião real. O significado de “primordial” aqui é muito parecido com o termo “infinito“. Daí se pode dizer que Deus é infinito, ou seja, em sua atualidade, Deus não tem começo nem fim (WHITEHEAD, 1979). 

No entanto, Whitehead especula que a natureza primordial de Deus não exaure a natureza de Deus como um todo. De acordo com o seu princípio ontológico, para que Deus seja a razão de qualquer coisa no mundo, Deus deve ser considerado uma entidade atual. A natureza primordial de Deus pode ser pensada, portanto, como o polo conceitual de Deus. Mas para ocasiões atuais, o polo conceitual por si só não é real. O que é real é a ocasião bipolar, tanto física quanto conceitual e, a menos que Deus seja atual, Deus não pode ser a razão para a ordenação de potenciais que, por sua vez, fornece ordem e novidade ao mundo. Mas, para que Deus seja então atual, parece necessário que Deus tenha tanto sentires físicos quanto conceituais. Esses sentires físicos seriam e, especula Whitehead, as recepções constituintes de Deus das ocasiões atuais que estão em processo no mundo contingente. Essas recepções constituintes conformam o polo físico de Deus e complementam o dinamismo da entidade divina. Este aspecto de Deus é afetado por tudo o que acontece no mundo contingente e nesse sentido é “consequente” ao mundo. Whitehead chama o polo físico de Deus de sua “natureza consequente” (WHITEHEAD, 1979). 

A natureza consequente retém tudo o que entra de imediato. Assim, o valor que é alcançado e rapidamente perdido no mundo contingente é eterno em Deus, mas é o imediato do sentir nas ocasiões atuais que é objetivamente imortal em Deus. Com Whitehead, a crença de que os valores efêmeros do mundo são preservados em Deus é necessária, para que a vida seja considerada plena de sentido e, portanto, afirmada enquanto tal (WHITEHEAD, 2009). 

 

PROPOSIÇÃO 7: 

Foi Yuxibu que criou, é só um Yuxibu e dentro desse poder, é como eu falei: criaram-se milhares de Yuxibus. […] Então acho que esse daí é o pensamento de Yuxibu. A gente fala, mas não vê. Yuxibu é uma coisa invisível. […] Então realmente tudo são yuxibu (IKA MURU, 2014, p.30).

A “imortalidade do homem” parece ser um tema distante do pensamento whiteheadino, mas considerandose o esforço de compreendê-lo em referência a sua antítese “mortalidade”, pode-se imergir em mais um contraste que tensiona os ingredientes constituintes do real. As duas noções referem-se então dois aspectos da cosmologia traçada pelo autormas também a aspectos pressupostos em todas as experiências apreciadas no âmbito da vidaWhitehead nomeia esses dois aspectos de “Os dois Mundos”: o “Mundo da atividade” e o “Mundo do valor” (WHITEHEAD, 1941). 

A palavra que enfatiza a multiplicidade das coisas mortais é o Mundo da atividade”, mundo da origemmundo criativo. O mundo que cria o presente pela transformação do passado e pela antecipação do futuro. Assim, o Mundo da atividade está embasado (aterrado) na multiplicidade de atos finitos e na contingência radical do acontecimento. Ao mesmo tempo, o Mundo do valor está embasado na unidade de coordenação ativa das várias possibilidades de valor.  

A junção essencial desses dois mundos infunde a unidade de valores coordenados na multiplicidade de atos finitos. O sentido dos atos é encontrado nos valores atualizados, e o sentido da valoração é encontrado nos fatos que são realizações dos seus compartilhamentos de valores. Dessa forma, cada mundo é fútil, exceto pelas suas funções de incorporação recíproca, o que com Whitehead, perfaz as relações imanentes entre espiritualidade e contingência 

Por fim, retomando a cosmovisão Huni Kuin, o que está em processo é uma estética da ritualização permanente da vida; momento em que todos recebem da natureza primordial de Deus a voz e a palavra dos pajés (em um sentir conceitual) e, ao mesmo tempo depositam na natureza consequente de Deus os seus sentires físicos. De modo ritualístico, portanto, o problema religioso e cosmológico implica fazer com que a natureza primordial de Deus alcance sua natureza consequente e com que o processo de atualização das entidades do mundo alcance a sua imortalidade objetiva. 

 

Bibliografia: 

CENTRO DE MEMÓRIA, DOCUMENTAÇÃO E REFERÊNCIA – ITAÚ CULTURALUma Shubu Hiwea: livro escola viva do povo huni kuin do Rio Jordão. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. 74 pp.  

IKA MURU, AMM. Uma Isi Kayawa: livro da cura do povo huni kuin do Rio Jordão. Rio de Janeiro: Dantes Ed., 2014258 pp. 

MCDANIEL, J. What is process thoughtSeven answers to seven questionsClaremont (USA): P&F Press, 2008. 123 pp.  

ORGANIZAÇÃO DOS PROFESSORES INDÍGENAS DO ACRE – OPIACHuni Meka: cantos do Nixi Pae. Rio BrancoComissão Pró-Índio, 2007. 110 pp.  

WHITEHEAD, A. N. Imortality. In: Paul Arthur Schilpp Ed. The philosophy of Alfred North Whitehead.  Menasha (USA): George Banta Publishing Company, 1941. 745 pp.  

WHITEHEAD, A. N. Process and reality (Gifford Lectures Delivered in the University of Edinburgh During the Session 1927-28). New York: Free Press, 1979. 413 pp. 

WHITEHEAD, A. N. O conceito de natureza. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 236 pp. 

WHITEHEAD, A. N. Religion in the makingNew York: Fordham University Press, 2009. 256 pp.  

 

 

Recebido em: 28/06/2019

Aceito em: 28/07/2019


 

[1] Médico e pesquisador do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo; Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Av. Dr Arnaldo, 251 – 8° Andar; Cerqueira César – São Paulo – SP – Brasil; Cep 01246-000 tel.: 11 3893-3024; e-mail: alessandro.campolina@hc.fm.usp.br

Espiritualidade e contingência: perspectivas ameríndias e whiteheadianas ncosmovisão ancestral amazônica. 

RESUMO: Na filosofia de Alfred North Whitehead, o problema religioso implica a concepção de uma ordem em que a novidade não é perdida, apesar do perecimento contínuo dos processos do mundo contingente. Ou seja, o problema religioso é uma questão de que o tempo perece, de que o passado desaparece, e de que a criação de novos objetos envolve a eliminação das obstruções imediatas do presente. O presente estudo pretende apresentar proposições que fazem parte da espiritualidade ameríndia do povo Huni Kuin, em intersecção com o pensamento de Whitehead, no que tange em especial às relações imanentes entre o sagrado e o contingente. 

PALAVRAS-CHAVEWhitehead, Xamanismo, Ameríndio, Ecossistema, Filosofia do Processo, Filosofia do Organismo.

 


Spirituality and contingencyAmerindian and Whiteheadian perspectives In the Amazonian ancestral cosmovision 

ABSTRACT: In Alfred North Whitehead’s philosophy, the religious problem implies the conception of an order in which novelty is not lost, in spite of the continuous perishing of the processes of the contingent world. That is, the religious problem is a matter of time perishing, of the past disappearing, and that the creation of new objects involves the elimination of the immediate obstructions of the present. The present study intends to present propositions that are part of the Amerindian spirituality of the Huni Kuin people, in intersection with the thought of Whitehead, in what concerns especially the immanent relations between the sacred and the contingent. 

KEY WORDS: Whitehead, ShamanismAmerindian, Ecosystem, Process Philosophy, Philosophy of Organism 

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CAMPOLINA, Alessandro Gonçalves. Espiritualidade e contingência: perspectivas ameríndias e whiteheadianas na cosmovisão ancestral amazônica. ClimaCom – A Linguagem da Contingência [Online], Campinas, ano 6,  n. 15,  Ago.  2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=1132