Ecofeminismo: uma proposta de ecologia do cuidado diante do Antropoceno | Milena Bachir

Longe de ser algo restrito às mulheres, o ecofeminismo tem sido pensado e praticado como uma possibilidade de tornar notáveis preocupações com a Terra e práticas sensíveis que subvertam as dicotomias como natureza/cultura, humano/não humano, razão/emoção, e instaurem uma ecologia do cuidado diante do Antropoceno.

Jornalista | Milena Bachir

Editora | Susana Dias

 

 

Fotomontagem de Milena Bachir com o livro Niketche, uma história de poligamia (2021) de Paulina Chiziane

“A grande contribuição do ecofeminismo foi aproximar a problemática da subjugação das mulheres à da exploração da natureza”. É assim que a entrevistada Alyne Costa, filósofa pela PUC-Rio, reflete sobre quais seriam as contribuições do ecofeminismo diante do Antropoceno, nos ajudando a pensar sobre a potência do feminino diante da oposição natureza/cultura. Em suas pesquisas, Alyne dedica-se às questões ambientais com ênfase no Antropoceno e na catástrofe ecológica global, considerando também as repercussões do tema na antropologia e na política.

“O ecofeminismo não é um movimento unificado e tampouco devemos esperar que traga respostas prontas para os problemas que enfrentamos”. Para ela, por um lado, trata-se de reaprender a fazer perguntas e a experimentar novos modos de se deixar afetar pelas questões e responder diante delas. Por outro, o ecofeminismo torna notável e traz para a esfera da ecologia política preocupações que, por inúmeras razões, vêm sido historicamente associados às mulheres, como por exemplo as relacionadas à reprodução, engendramento e cuidado. Se, por meio do conceito de “reprodução”, as feministas souberam dar visibilidade a aspectos da dominação capitalista que vinham sendo negligenciados, para Alyne as ecofeministas expandem essa noção para além dos limites do corpo humano (mais precisamente, feminino). Deste modo, chamando atenção para os processos ecológicos de cuja estabilidade todas as formas de vida complexa dependem para seguir se reproduzindo, mas que vêm sendo seriamente ameaçados pelo colapso ecológico global. Assim, reprodução, engendramento e cuidado adquirem novos sentidos e compõem projetos ampliados de justiça socioambiental.

O ecofeminismo, assim, propõe e experimenta uma suspenção das oposições de todos os tipos, enaltecendo as práticas e encontros de mulheres. “Subverte a oposição natureza e cultura, resgata a potência do sensível, coloca o corpo de novo na cena, tirando o peso do indivíduo e potencializando a coletividade”, analisa Alyne. Convocando a atenção para uma combinação de poderes que as tornam, mulher e natureza, mais fortes juntas. O ecofeminismo não se restringe às mulheres, convocando como movimento a força feminina de um sentir-pensar-agir-imaginar, capaz de expressar um devir feminino que deve e precisa ser levado a sério quando observamos atentamente aos chamados da terra/Terra.

Com relação, sobretudo, ao ecofeminismo de perfil mais ativista há um forte gosto pela experimentação coletiva de modos de produzir alegria e de fazer política. “Ao se apropriarem positivamente da associação entre mulheres e natureza, historicamente evocada de modo pejorativo (como o polo supostamente inferior em dualismos que têm do lado oposto o macho, a razão, a cultura etc.), as ecofeministas desestabilizam essas hierarquizações. E isso é feito também experimentando formas de ação política que valorizam a potência do corpo, do sensível, das emoções e das artes – dimensões tradicionalmente barradas da esfera do político.

A partir da entrevista com Alyne podemos dizer que o ecofeminismo é um movimento de potencialização que contribui para fazer nascer novos modos de existência, que produz um despertar, não como uma resposta pronta, ou algo que sirva para nos direcionar e a partir daí entender como as coisas funcionam, mas como uma retomada da “arte do pharmakon”, uma reativação de práticas do sensível e de atenção, como outra filósofa, a belga Isabelle Stengers, apresenta no livro O tempo das catástrofes. Ainda, segundo Alyne, o ecofeminismo “ajuda-nos a sentir e pensar novamente diante dessa degradação e violência, da exploração de corpos femininos e corpos ditos naturais”.

“A mulher é terra. Sem semear, sem regar, nada produz”. A entrevista com Alyne nos leva ao provérbio zambeziano que abre a obra Niketche, uma história de poligamia (2021) de Paulina Chiziane. Rami, a protagonista, mostra como cuida das relações que seu marido tem para não o perder. Ela semeia seus valores mais sensíveis femininos, de solidariedade, gentileza, cuidado e aceitação de todas as mulheres que vai tomando conhecimento que se relacionam com seu marido. Nesses entrelaçamentos, ela acaba criando relacionamentos heterogêneos que a ajudam lidar com a multiplicidade de culturas, a acolher as incertezas do tempo e a criar novas e mais significativas relações de parentesco, entre humanos e não humanos. Rami rega afeto em cada encontro com as outras, num movimento de levar a sério essas outras, onde os vínculos se estabelecem na força da potência de cada uma. A personagem sente no corpo a necessidade de romper seus preconceitos e aprofundar a dimensão da potência do feminino, que está nas relações, nas práticas de todas as coisas e na força da terra.

Chiziane, e as “outras mulheres”, trabalham para manter o espírito vital que as conecta com a dimensão da terra, acessando pensamentos e modos de vida mais sistêmicos. São criadoras de uma força de verdadeiras redes de interdependência que fazem pensar em como o ecofeminismo está propondo caminhos de travessia do “paradigma da sustentabilidade para o paradigma da habitabilidade”, como nos ensina Alyne, citando a distinção proposta pelo historiador Dipesh Chakrabarty. O ecofeminismo mobiliza as diferentes gerações a experimentarem devires femininos que estão para além das questões de gênero. Propondo uma “ecologia do cuidado”, como nomeia Alyne, que pode preparar a humanidade, ou o que restará de nós, a dar atenção às múltiplas relações entre plantas, animais, humanos, rios, seres invisíveis… que precisam ser cuidadas e respeitadas para que a teia da vida continue viva. (Link com a notícia completa em pdf)

 

Coletivo e grupo de Pesquisa | multiTÃO: prolifer-artes sub-vertendo ciências, educações e comunicações (CNPq)

Projetos | Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas (INCT-MC) – (Chamada MCTI/CNPq/Capes/FAPs nº 16/2014/Processo Fapesp: 2014/50848-9); Revista ClimaCom: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/ e Revista ClimaCom.