Desirei desenvolver – desadaptando o futuro do presente


O espaço é o entrelaçamento de trajetórias em curso,

das quais algo novo pode emergir.

O movimento, o encontro e a construção das relações entre as trajetórias

levam tempo.

 

Doreen Massey

Mais do que negar ou significar uma privação, “des” expressa potencialização:

um “transfazer” da coisa em outra.

 

Elton Luiz Leite de Souza

(acerca do prefixo “des” na poesia de Manoel de Barros)

EM DESENVOLVIMENTO: DESDOBRANDO DOREEN MASSEY

Os recorrentes discursos das mídias e de muitas de nossas instituições, inclusive escolas e universidades, em torno da inevitabilidade da globalização nos querem convencer de que o nosso futuro já está previsto, porque vivemos num mundo onde os processos sociais são, em grande medida, inexoráveis. No caso dos “países em desenvolvimento”, esse futuro já nos está, além disso, a ser indicado pelos “países desenvolvidos”. O próprio jogo de palavras, nada inocente, entre as duas expressões classificatórias, indica um estágio anterior em desenvolvimento até algo posterior, já desenvolvido, no qual está dado o futuro a ser atingido. Desta forma, se a expressão “países desenvolvidos” nos indica algo já finalizado, a expressão “em desenvolvimento” colada a países tão díspares quanto Brasil, China, África do Sul e Rússia os coloca na condição de adaptar-se ao modelo já alcançado para vir a ser como tal. Esta seria uma maneira de forçar a diferença a adaptar-se à identidade? Esta seria uma maneira de forçar a diferença a adaptar-se à identidade. Forçar o presente heterogêneo a tornar-se um único futuro.

Doreen Massey (2008) escreve que, sob a modernidade, os lugares diferentes

[…] eram interpretados como estágios diferentes em um único desenvolvimento temporal. Todas as estórias de progresso unilinear, modernização, desenvolvimento, a sequência de modos de produção… representavam essa operação. […] A África não é diferente da Europa Ocidental, é (apenas) atrasada. […] Aquela transformação da geografia do mundo na (única) história do mundo está implícita em muitas versões da política modernista, desde a liberal progressista até algumas marxistas. Requalificar eufemisticamente “atrasado” como “em desenvolvimento”, e assim por diante, não contribui em nada para alterar o significado […] da manobra fundamental: a de tornar a heterogeneidade espacial coexistente em única série temporal. […] O futuro já está contado, de antemão, inscrito na estória. (Massey, 2008, p. 107, grifos da autora).

 

Em desconexão de escalas, entre macro e micropolíticas, pergunto: o mesmo pode ser dito acerca de crianças e jovens quando sobre eles se dobram discursos que os colocam “em desenvolvimento”? O mesmo pode ser dito acerca de crianças e jovens quando sobre eles se dobram discursos que os colocam “em desenvolvimento”. Seu tornar-se já está dado, seu futuro já está traçado. À criança e ao jovem “em desenvolvimento” cabe apenas dizer, com segurança e tranquilidade, “eu irei ser um adulto”. Não importa qual tipo de adulto. O que quero salientar é que, na aparente inexorabilidade do crescimento corporal, com a passagem dos dias e meses e anos e décadas, esses discursos grudam uma outra inexorabilidade que nada tem de inexorável, que é ser adulto. Pois isso implica não propriamente um corpo físico e fisiológico disponível para certas práticas sociais, mas sim um corpo sobre o qual se colam maneiras já estabelecidas de estar no mundo, maneiras de atuar como adulto definidas previamente por quem já é adulto, desenvolvido, pronto.

Desenvolvamos, pois!, aqueles de nós que estivermos em desenvolvimento.

Devemos, portanto, nos adaptar para realizar aquilo que a própria expressão pretende de nós? Devemos, portanto, nos adaptar para realizar aquilo que a própria expressão pretende de nós. Essa seria a proposta subjacente à expressão, diga-se, dita por eles. Um eles qualquer. Desimporta quem somos nós e quem são eles. Importa o discurso insidioso que vincula nós a eles, retirando de nós a possibilidade de invenção de um futuro que ainda não existe, mas que eles indicam já existir.

Para se ter uma ideia da força desse eles, Doreen Massey (2008 p. 129, grifos da autora) escreve que

[…] os líderes econômicos mundiais reúnem-se (em Washington, Paris ou Davos) para se felicitar e ostentar e reforçar seu poderio, um poderio que consiste em insistir na falta-de-poder – em face das forças de mercado globalizante não há absolutamente nada que possa ser feito. Exceto, naturalmente, empurrar o processo para a frente. É uma impotência heróica, que serve para disfarçar o fato de que isso é, efetivamente, um projeto.

Um projeto de quem? D’eles? Deles, claro. Mas este eles não inclui os líderes econômicos mundiais? Mas este eles não inclui os líderes econômicos mundiais. Para ser(em) mais efetivo(s) em seu discurso eles não (é)são ninguém e somos todos nós. São(É) um algo que engendra as forças do mercado globalizante, que se dissolve em (e dissolve as) fronteiras de qualquer nós identitário: nacional, profissional, racial, classista, etário, de gênero… Eles são fluidos, apesar de configurarem um único fluxo inexorável. É ao que eles querem nos convencer? É ao que eles querem nos convencer. É o que eles já convenceram muitos de nós, a acreditar que, um dia, se nos adaptarmos ao modelo de desenvolvimento, seremos eles. Mas quem são eles? “Apenas” aquilo que ainda não somos nós.

Mais que pretender nossa adaptação, a expressão “em desenvolvimento” nos retira do presente – da vida vivida – ao nos induzir a acreditar que nós, se seguirmos o “bom caminho do desenvolvimento”, chegaremos a ser o que “desejamos”, o que ainda não somos. Se é certo que sim, que alguns, ou muitos, de nós chegaremos a ser o que desejam alguns dos que vivem entre nós, é também certo que chegar a ser o que outros desejam de nós é, sem dúvida, não realizar aquilo que nós mesmos desejamos de nós. E isso pelo simples motivo de que os desejos se constituem enquanto vivemos, se fazem sentir enquanto crescem os corpos, enquanto se relacionam os grupos sociais, enquanto prosseguem e se rompem os processos sociais e fisiológicos, enquanto… Em outras e poucas palavras, num futuro prescrito por discursos, em que algo a tornar-se – desenvolvido – já traça os caminhos a seguir, cabe a nós, portanto e sobretudo, nos adaptarmos a eles – aos discursos, aos caminhos, aos que dizem (d)o nosso “desejo” –, cabe nos conformarmos em ser como eles e não em ser com eles. Deixamos de ser coetâneos entre nós para nos tornarmos aquilo que ainda não é, mas será. Um modo, nem um pouco inocente, de retirar a existência – a vida – de milhões de pessoas.

Essa parece ser a maior violência do real atual: a exigência do conformismo e as consequentes práticas do conformismo. Não a maior violência no sentido de sua dureza e crueldade sobre os corpos físicos e sociais, pois as fomes, os exílios e os massacres a superam em dor e crueza. Mas a violência do conformismo vinculado a um futuro já traçado é de maior abrangência, afeta praticamente todos os corpos sociais e físicos quando deles retira a vivacidade, seu caráter vívido, a criação de vida, a possibilidade de inventar seu próprio futuro como algo ainda não existente.

Se a vida é devir, se ela se faz nos “enquanto”, se a vida é aquilo que se transforma a si mesma, então eles “roubam-nos forças vitais a cada instante” (GODINHO, 2012, p. 47) ao nos convencer a conformarmo-nos com o que é e o que virá: um futuro já traçado. Se é certo que teremos maior poder se nos adaptarmos aos caminhos já traçados e encontrarmos o melhor lugar nesse futuro antecipado, é também certo que, ao nos dedicarmos a prestar atenção em onde vamos nos inserir no já estabelecido, estaremos nos despojando de nossas potências para inventarmos novas possibilidades de vida – outros futuros, aliás, outros presentes! –, outras invenções em que ainda não há os melhores lugares, pois eles se farão enquanto o próprio presente estiver sendo constituído e enquanto o futuro – como algo almejado de antemão – nunca chegará.

 

ABERTURA AO FORA: OUTROS ENCONTROS COM DOREEN MASSEY

Ando muito completo de vazios.

Meu órgão de morrer me predomina.

Estou sem eternidades.

Não posso mais saber quando amanheço ontem.

Está rengo de mim o amanhecer.

Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.

Atrás do ocaso fervem os insetos.

Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.

Essas coisas me mudam para cisco.

A minha independência tem algemas

 

Manoel de Barros

(poema “Os deslimites das palavras”)

Se fôssemos desenhar um mapa da nova globalização […]

ele não mostraria um sistema totalmente interconectado:

haveria tanto ausências de longa duração

quanto a produção sistemática de novas desconexões.

 

Doreen Massey

 

Conformar é formar mutuamente, coletivamente, em parceria, em conjunto, em comum acordo. Atingido o consenso do que seria o futuro, o melhor futuro, devemos todos seguir o consensuado? Atingido o consenso do que seria o futuro, o melhor futuro, devemos todos seguir o consensuado. É essa uma máxima democrática, a qual, levada aos médios e longos prazos (ou mesmo aos curtos!), dobra o futuro sobre o presente, eliminando todos que nascerem após o consenso, inserindo-os de antemão no futuro, um futuro, diga-se, do qual eles não participaram e nem participarão, uma vez que nenhuma das suas singularidades compôs ou virá a compor aquilo que virá a ser o futuro – ou, melhor dizendo, já está a ser o engendramento do futuro como um presente plenamente desenvolvido. Para todos. Para todos?

Não às lutas por todos. Sim ao combate por algumas coisas, deixando que a elas se engajem aqueles que se dispuserem, se expuserem, aqueles que a elas se vincularem, não como adaptação conformada ao que essas coisas promovem, mas como exercício singular junto a esta coisa, de modo a fazer a própria coisa variar no e com o exercício da nova singularidade que a ela se dispôs e se expôs.

Não, portanto, a qualquer discurso nacionalista, por ele implicar uma inevitável luta por todos os “brasileiros” quando, entre estes milhões de brasileiros, há milhares que combatem por coisas muito distintas e que, sim, gostariam que muitos milhões – de pessoas, de recursos, de projetos… – se adaptassem consensual e conformadamente ao que eles indicam como o “melhor futuro”.

Os discursos nacionalistas bloqueiam os fluxos dos combates que efetivam o dissenso entre singularidades, sejam elas pessoais, grupais, institucionais, conjunturais… Singularidades que, em negociações de suas diferenças com outras trajetórias singulares copresentes, estabelecem algum presente comum, em que suas trajetórias atuam articuladas e desarticuladas, sendo exatamente na desarticulação entre elas – naquilo que excede o consenso e provoca desassossegos – que a política se faz necessária como prática cotidiana que efetiva devires através do presente, desdobrando dele futuros ainda imprevisíveis porque negociados dia a dia, noite a noite, café a cerveja, pastel a salada, feijoada a sol, bicicleta a túnel… e também bicicleta e túnel, feijoada e sol, pastel e salada, café e cerveja, dia e noite e madrugada adentro para encontrar o seu fora. Fora como aquilo que atravessa os desassossegos sem que saibamos o que é e que, no entanto, desconjunta, estranha, arrepia levemente enquanto provoca ligeiras disjunções no que havia sido articulado, consensuado.

Tais momentos disjuntivos receberão diferentes nomes em diferentes vocabulários e terão distintas inflexões (um choque de diferenças que permanece não-totalizável, a futuridade indeterminada de uma conjuntura), mas eles compartilham uma abertura na qual ainda há lugar para a política. (MASSEY, 2008, p. 151).

Disjunção, desarticulação, desconexão. Força do “des”, daquilo que está (em) aberto, que está a transfazer-se outro não por negação do que já existe, mas ao forçar o que já existe a experimentar seus limites para deles escapar, deslimitar(-se) as coisas que estão em discussão, em negociação com as trajetórias desassossegadas que exigem passagens para ganhar expressão nos corpos, na micro e na macropolítica, para fazerem-se existência sensível, potente para engendram devires, para efetivar presentes e inventar futuros, pois

[…] o que se pode fazer é encontrar os outros, alcançar onde a história do outro chegou “agora”, mas onde esse “agora” (mais rigorosamente, esse “aqui e agora”, esse hic et nunc) é ele próprio constituído por nada mais do que – precisamente – aquele encontro (mais uma vez). (MASSEY, 2008, p. 184, grifos da autora).

Encontrar os outros, não eles. Os outros são todas as trajetórias, humanas e inumanas, coetâneas a nós que, inclusive, nos constituem – forças inconscientes – e configuram o presente enquanto abertura a nós mesmos, àquilo que, uma vez que encontremos e nos expusermos a esses outros, podemos vir a ser. Outros, portanto, podem ser tanto aquilo que nos “chega de fora” – outras trajetórias que configuram o espaço – quanto o que nos “tira para fora” – outras forças que nos fazem derivar de nós mesmos.

É esse o desafio da copresença em um lugar, entendendo lugar como eventualidade, como “uma constelação de trajetórias […] não coerentes” (MASSEY, 2008, p. 203). O desafio do lugar como eventualidade é nos expormos aos encontros com a radical necessidade da diferença, com as (in)evitáveis singularidades que já nos afetam – e das que estão por vir através desses afetos e afecções – para que inventemos um futuro onde nós estaremos, não mais por termos nos tornado aquilo que eles gostariam, mas porque teremos nos tornado aquilo que nós inventamos – negociamos – de nós mesmos, a partir de nossos desejos enquanto coisas presentes e em fluxo para o futuro, algum futuro. Qual? Qualquer um que não o clarividente destino já estabelecido como um futuro desenvolvido antes dele chegar.

Entoemos, pois, um Cântico Negro, que insista na potência do negrume onde os olhos e os corpos se desadaptem aos poucos, onde as trajetórias sejam tateantes naquilo que encontram nos caminhos.

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!

 

José Régio


Referências

BARROS, M. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996.

GODINHO, A. As probabilidades desiguais de Francis Bacon. Poiésis, Niterói, n. 20, p. 45-55, dez. 2012.

MASSEY, D. Pelo espaço – uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

RÉGIO, J. Cântigo negro. Disponível em: http://www.releituras.com/jregio_cantico.asp Acesso em 19 de fevereiro de 2015.

SOUZA, E. L. L. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.


 

[1] Professor no Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp). Doutor em Educação. Email: wences@unicamp.br

Desirei desenvolver – desadaptando o futuro do presente


Wenceslao M. Oliveira Jr[1]


RESUMO: Em estreito diálogo com os escritos da geógrafa Doreen Massey, tece-se alguns apontamentos em torno das adaptações do presente ao futuro proposto por eles na expressão “em desenvolvimento” para, em seguida, apontar os encontros com os outros como abertura a um futuro constituído através de nós.

PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento. Desadaptação. Potências do fora.


ABSTRACT: In close dialogue with the writings of the geographer Doreen Massey, some notes are weaved up around the adaptations of the present to the future proposed by them in the expression “in development” which points at the encounters with others as an opening to a composed future through us.

KEYWORDS: Development. Desadaptation. Outside potencies.