Demiurgos californianos: mitocríticas ao ecomodernismo


Roberto Romero[1]

 

INTRODUÇÃO

Em março de 2015, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera – principal responsável pelo aquecimento do planeta – ultrapassou o limite de quatrocentas partes por milhão, considerado “aceitável” pelos climatologistas para a manutenção do clima na Terra em condições minimamente parecidas com aquelas que a espécie humana conviveu até os dias atuais. Como consequência direta do aumento vertiginoso nas emissões de CO2 registrado nos últimos dois séculos, as geleiras derretem a passos rápidos e potencialmente incontroláveis, elevando os níveis dos oceanos, cujas águas, não obstante, apresentam índices alarmantes de acidificação e desoxigenação – duas graves ameaças à biodiversidade marinha. A rigor, cada mês tem registrado temperaturas mais altas que o mesmo mês do ano anterior e cada ano, médias mais altas que todos seus antecessores. Fenômenos climáticos extremos como longos períodos de chuva ou estiagem, nevascas, ciclones, ondas de frio ou calor, inundações ou incêndios florestais são cada vez mais comuns. Em várias partes do planeta, os efeitos de tais alterações já se fazem sentir: diversos territórios arriscam submergir, populações inteiras são forçadas a migrar, a segurança alimentar está gravemente comprometida e os prejuízos econômicos a curto e longo prazos beiram o incalculável. O balanço, portanto, não poderia deixar de ser pessimista: caminhamos para uma dramática e acelerada redução da biodiversidade no planeta e para a vida em um mundo radicalmente diferente do que estivemos habituados a habitar, além de progressivamente inabitável. Muitos concordam que já estamos vivendo a Sexta Grande Extinção em massa da história terrestre (CEBALLOS et al., 2015). Nada garante que a espécie humana sobreviverá a ela.

Há alguns anos, é verdade, parecíamos caminhar para um certo consenso na sociedade, para além de um grupo restrito de cientistas, quanto à realidade e gravidade destes problemas e a urgência em endereçá-los. No fim de 2015, ainda que um tanto reticentes quanto às suas disposições finais, celebrávamos um tratado assinado por 195 países – o conhecido “Acordo de Paris” – que concordava em manter o aumento (note-se: o aumento!) das temperaturas globais em 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais. No ano seguinte, os Estados Unidos elegeram Donald Trump presidente, um negacionista climático. Já no primeiro ano de seu mandato à frente da maior economia do mundo, Trump retirou a assinatura dos EUA do importante tratado. Mais recentemente, em novembro de 2018, o presidente norte-americano ignorou um relatório elaborado por mais de 300 cientistas estadunidenses advertindo para as graves consequências das mudanças climáticas. A resposta de Trump: “pessoas com o nível de inteligência alta como o meu não são necessariamente crentes nessa teoria”. No Brasil, o presidente recém-eleito Jair Bolsonaro segue o mesmo caminho. Após ameaças, durante a campanha, de retirar a assinatura do Brasil do Acordo de Paris, o novo presidente alçou a ministro das relações exteriores o negacionista climático Ernesto Araújo, que eliminou da pasta a subsecretaria responsável pelos temas das mudanças climáticas e meio ambiente. Para o novo chanceler, o assunto é um “dogma científico” de inspiração marxista cujo objetivo é atrapalhar o Ocidente e beneficiar a China[2]. Mesmo entre os signatários do “Acordo de Paris”, a implementação de políticas efetivas de redução das emissões caminha a passos muito mais lentos que o aumento nas temperaturas, por exemplo. Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU, o IPCC, a estimativa é de que a temperatura global aumente 3ºC até 2100. Para alguns, a previsão é otimista.

Já entre os cientistas do clima, atualmente, é muito mais difícil encontrar posições radicais contra as evidências acumuladas ao longo das últimas décadas que atestam as origens antrópicas do aquecimento global. Um exame de mais de 12.000 artigos acadêmicos divulgado pelo site Sceptikal Science revelou um consenso de aproximadamente 97% dos autores e autoras quanto às causas antropogênicas das mudanças climáticas[3], o que é mais do que suficiente para consolidar a “teoria” como um fato científico. Se há, portanto, controvérsia científica quanto ao aumento das temperaturas globais, hoje, ela diz menos respeito à sua realidade ou origens do que às suas dimensões, consequências, formas de combate ou mitigação. Como resumiu Deborah Danowski:

O que ainda se discute é a dimensão do fenômeno, a velocidade do aumento de temperatura, o índice de derretimento das geleiras e da elevação do nível do mar, a maneira pela qual o aquecimento global vai agravar a acidificação dos oceanos, como exatamente o novo regime de chuvas e secas vai se distribuir pelo planeta, como a biodiversidade vai ser afetada dependendo do grau de aumento, como a agricultura e a produção de alimentos vai ser afetada dependendo do grau de aumento, como a agricultura e a produção de alimentos vão sofrer, quais as consequências sociais e políticas que advirão etc. (…) Discute-se também a catástrofe em si (…) discutem-se as “saídas” para a catástrofe – ou melhor, se há saída e onde ela estaria: quais as melhores formas de mitigar as mudanças climáticas (“mitigar” e não “evitar” o que seria impossível uma vez que elas já estão em curso), e também as formas de adaptação a elas. Discutem-se problemas de segurança nacional, de controle sobre os recursos hídricos e muitos outros. Discute-se o que se quer e o que não se quer, que novas éticas devem valer de agora em diante, o que deve prevalecer: nós ou nossos descendentes, a espécie humana ou os outros seres vivos e a natureza de maneira geral? (DANOWSKI, 2012, p.5).

Discute-se, portanto, muito mais “o que” e “como” fazer do que a necessidade ou não de fazê-lo. Neste novo cenário, a disputa ganha novos contornos, agentes e direções. Frente à posição já um tanto insustentável da negação pura e simples, é preciso percorrer terrenos em que a demonstração científica consegue com muito menos facilidade adentrar. Pois não se trata tanto (pelo menos, não mais) de descrever ou traçar conexões entre fenômenos físicos ou químicos, mas de questionar “propostas” ou “saídas” geralmente apoiadas nas mais avançadas, das mais avançadas das tecnologias. É nesse ambiente, portanto, que se divisam pelo menos duas atitudes ou alternativas radicalmente opostas em relação ao que fazer diante do Novo Regime Climático. De um lado, ambientalistas alertam para a necessidade urgente de se atacar as causas do aquecimento terrestre, isto é, reduzir drástica e imediatamente as emissões de gases de efeito estufa, renovar a matriz energética mundial, alterar o modelo socioeconômico vigente, etc. De outro, os assim chamados “ecomodernistas” ou “ecopragmáticos” rejeitam severamente quaisquer medidas que envolvam alterações radicais no modelo capitalista-industrial hegemônico, projetando (sempre no futuro) soluções técnicas capazes de reverter a barbárie anunciada. Em comum com outras vertentes filosófico-políticas como os “singularitanos” ou os “aceleracionistas”, estes ecomodernistas parecem compartilhar um mesmo projeto de fundo: a aceleração da modernidade como saída para a “crise” ecológica atual[4]. Nas palavras de Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro: “trata-se da divergência entre aquela corrente filosófica (metafísica, política, estética) que propõe uma economia política da aceleração, e os partidários de uma ecologia política do ralentamento” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 148). Se ele é mesmo possível, estamos definitivamente muito longe de um consenso entre essas duas correntes.

Neste artigo, proponho examinar o atual embate entre “ecomodernistas” e “ambientalistas” à luz de certos mitos ameríndios ou, melhor dizendo, de certos motivos por eles evocados e que surpreendentemente vão de encontro aos atuais problemas do mundo moderno. Minha aposta e ao mesmo tempo provocação é que estes mesmos problemas que ora permeiam nossas modernas escatologias encontram paralelos ou ressonâncias naquilo que, nestes mitos, correspondem mais precisamente a questões de cosmogonia. Tudo se passa como se “numa estranha reviravolta das coisas”, as questões que hoje ocupam a ordem (do fim) dos tempos não tivessem escapado a alguns destes demiurgos ameríndios lá no princípio. Em outras palavras: “eles já sabiam”.

 

A OUTRA FACE DO NEGACIONISMO

Entre os anos de 2012 e 2014, o estado da Califórnia, nos EUA, atravessou o período mais seco registrado em mil e duzentos anos. Os baixos índices de precipitações e os recordes nas temperaturas somaram-se para reduzir drasticamente os estoques dos reservatórios de água, prejudicando o abastecimento populacional e as atividades agrícolas em toda a região. Em 2015, o estado voltou a ocupar as manchetes, desta vez devido a uma onda de incêndios florestais que, impulsionada pela estiagem histórica, rapidamente se alastrou por todo o território. Em pouco mais de um ano, as autoridades foram obrigadas a declarar duas vezes estado de emergência em razão de eventos climáticos inesperados. Estima-se que uma área total de 1.245 km² foi incendiada. Nos últimos anos, os incêndios só fizeram crescer e aterrorizar a população local. No verão de 2018, um total de 7.579 incêndios consumiram uma área de 6.749,57 km², a maior área queimada registrada em uma temporada de incêndios na Califórnia. Os incêndios deixaram mais de 40 mortos e milhares de desabrigados em todo o estado. Estima-se que causaram mais de US$ 2,975 bilhões em danos[5]. Outros eventos extremos como tempestades de vento também foram registrados na última década na região. Tudo isso, naturalmente, reaqueceu o debate em torno dos efeitos locais do aquecimento global. Sobre as secas, um geógrafo afirmou ao jornal Los Angeles Times: “uma coisa é certa: secas como essa continuarão a acontecer. Esse é o tipo de coisa que veremos no futuro.”[6]

Curiosamente, a Califórnia é também o estado-berço de alguns dos mais proeminentes defensores do “ecomodernismo” ou “ecopragmatismo”, corrente que se apresenta como alternativa político-filosófica às atuais transformações no Regime Climático Planetário. Humanistas convictos e otimistas declarados, os ecomodernistas defendem a superioridade (técnica, sobretudo) da espécie humana face ao que consideram algo como as “exterioridades negativas” produzidas pelo avanço do capitalismo industrial – o aquecimento global, por exemplo. Diferente dos “negacionistas” tradicionais, seus expoentes não costumam questionar os dados sobre as mudanças climáticas ou a urgência em endereçá-los. Entendem que o planeta vive transformações drásticas em seu regime climático, com efeitos desastrosos caso nenhuma atitude seja tomada. Compartilhando, contudo, o mesmo diagnóstico, discordam dos ecologistas no que diz respeito, sobretudo, ao prognóstico. Nas palavras de dois de seus principais expoentes, os americanos Ted Nordhaus e Michael Schellenberger: “estamos convencidos de que o moderno ambientalismo, com suas premissas inverificáveis, conceitos ultrapassados e estratégias esgotadas, deve morrer para que algo novo possa surgir” (NORDHAUS; SCHELLENBERGER, 2004, p.6; tradução nossa).

Para estes destemidos tecnófilos norte-americanos, o ambientalismo, em suas diversas vertentes, não passa, hoje, de uma forma de obscurantismo, incapaz de imaginar soluções que não passem por algum tipo de “retorno” a um passado primitivista ou por palavras de ordem como “redução”, “limites”, “restrição”, “prevenção” ou “regulação”. Num texto programático intitulado The Death of Environmentalism: global warming politics in a post-environmentalist world (2004), Nordhaus e Schellenberger criticam, por exemplo, a total incapacidade dos ambientalistas em convencerem suficientemente a opinião pública (norte-americana, em particular) quanto à atual crise climática, além de sustentarem, na opinião deles, uma concepção de meio-ambiente totalmente desvinculada de qualquer agência humana – daí o apelo por um post-environmental world.

Mais do que isso, acusam ecologistas de difundir um discurso de medo e resignação, incapaz, por isso mesmo, de atingir os nobres corações americanos, mais acostumados ao ritmo triunfante da conquista e da dominação contra todas as adversidades. Os autores chegam mesmo a evocar o “I have a dream”, do célebre discurso de Martin Luther King, sugerindo que as versões ambientalistas da atual mutação climática estariam professando algo como um “I have a nightmare”, incapaz de inspirar “a esperança contra o medo, o amor contra a injustiça e o poder contra a impotência” (NORDHAUS; SCHELLENBERGER, 2004, p.31,tradução nossa). Numa versão expandida do panfleto, publicada sob o título Break Through: from the death of environmetalism to the politics of possibility (2007), os autores opõem, ainda, o que chamam de uma “política dos limites”, propagada pelos ecologistas, a uma “política das possibilidades”, sua bandeira. Nas palavras de Alexis de Tocqueville, por eles evocadas, “nos Estados Unidos não há limites para a criatividade do homem para descobrir maneiras de aumentar sua riqueza e satisfazer as necessidades das pessoas” TOQUEVILLE (apud NORDHAUS; SCHELLENBERGER, 2007, p.16). Segundo eles, os ambientalistas deveriam “[…] mergulhar nos mundos criativos da construção de mitos, e mesmo da religião, para venderem não apenas políticas superficiais e técnicas, mas antes descobrir quem nós somos e quem devemos ser” (NORDHAUS; SCHELLENBERGER, 2004, p. 34,tradução nossa).

Criatividade e proselitismo religioso (além de investimentos vultuosos) de fato não faltam a Schellenberger e Nordhaus. Os dois são os fundadores do Break Through Institute, um think tank norte-americano sediado em Oakland, na Califórnia, cuja missão anunciada no próprio site – ao lado das fotos sorridentes de uma equipe majoritariamente branca – é “acelerar a transição para um futuro no qual todos os habitantes do mundo possam desfrutar vidas seguras, livres, prósperas e plenas num planeta ecologicamente vibrante”. Um futuro em que tudo, em suma, será californiano, como ironizaram Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro (2014, p.66). A sessão “What We Believe” do site do Instituto é ainda mais reveladora dos fundamentos teológicos da instituição:

Acreditamos que a tecnologia e a modernização são o fundamento do progresso humano. Acreditamos que a prosperidade humana e um planeta ecologicamente vibrante não são apenas possíveis, mas inseparáveis. Acreditamos que o mercado é uma força potente de mudanças, mas que investimentos estatais de longo prazo são necessários para acelerar o progresso tecnológico, o crescimento econômico e a qualidade ambiental.

Numa publicação mais recente, o An Ecomodernist Manifesto (2015), os autores retomam algumas destas crenças e acrescentam outras mais, pregando uma versão idílica do Antropoceno. Críticos do velho testamento ambientalista – demasiado calcado em ideias como “recursos limitados”, ou pior, “desaceleração econômica” – os autores enaltecem o papel da tecnologia na progressiva libertação dos homens, reconstituindo uma história linear e ascendente marcada por transições que vão dos caçadores-coletores (expressão que usam sempre no passado e com indisfarçável desprezo) até o capitalismo neoliberal dos dias de hoje. A conclusão a que chegam é que só o investimento maciço em tecnologia poderá garantir o grande salto – the breakthrough – rumo a um mundo pós-capitalista e pós-material, onde a humanidade se verá enfim libertada de quaisquer constrições materiais. No lugar, portanto, de um ambiente descolado da agência humana, somos convidados a admitir a possibilidade inversa e simétrica de uma humanidade descolada (decoupled) do ambiente ou, melhor dizendo, de um ambiente totalmente conformável à insuperável e destemida imaginação técnica humana.

Mas vejamos como estes ecomodernistas concebem, na prática, a solução dos problemas que ocupam a ordem do dia. Como já ficou claro, na opinião deles, “sem uma profunda mudança tecnológica não há nenhum caminho crível para uma mitigação climática significativa” (NORDHAUS; SCHELLENBERGER, 2015, p. 21; tradução nossa). Mas, para compreender o que os autores entendem por “profunda mudança tecnológica” é preciso antes conhecer as promessas de um ambicioso campo de estudos: a geoengenharia. Numa definição comum, trata-se de “intervenções deliberadas e em larga escala nos sistemas naturais da Terra para reverter o aquecimento global”[7]. Suas promessas concentram-se em duas frentes principais: a “geoengenharia solar”, que estuda intervenções capazes de refratar os raios do sol que contribuem para o superaquecimento do planeta e a “geoengenharia do carbono”, que almeja diminuir a concentração do gás na atmosfera. As técnicas, em ambos os casos, variam, podendo ser tão simples e óbvias quanto o reflorestamento ou um pouco mais complexas como a captura de carbono através de máquinas superpotentes capazes de “sequestrá-lo” no ar e retê-lo em algum lugar no subsolo ou ainda a alteração da composição química da própria atmosfera com a introdução de partículas capazes de eliminar o dióxido de carbono acumulado e bloquear os raios solares indesejados. Quando os ecomodernistas evocam e louvam a tecnologia como passaporte para o futuro estão se referindo, portanto, a soluções técnicas do porte destas últimas, combinadas, é claro, com a intensificação da agricultura, da urbanização e do amplo recurso à energia nuclear, “a única tecnologia de zero carbono até hoje com capacidade demonstrada de atender à maior parte, senão toda a demanda de energia de uma economia moderna” (NORDHAUS; SCHELLENBERGER, 2015, p. 23; tradução nossa).

Por atraentes que possam parecer – especialmente aos olhos dos negacionistas do clima e de uma indústria que vislumbra aí toda uma nova oportunidade de lucro – os resultados destas tecnologias são, no mínimo, incertos. Primeiro, pelo motivo óbvio de que elas visam atingir as consequências e não as causas do problema, concentrando em reduzir o aquecimento enquanto mantêm intactas (ao menos idealmente) as emissões. Segundo, porque nada garante que as mutações ecológicas obedeçam as equações simples através das quais suas soluções costumam ser apresentadas. Ao contrário, a intensificação das pesquisas climáticas só têm reforçado a complexidade dos “sistemas naturais” e a imprevisibilidade/irreversibilidade de suas transformações em cadeia. Como observou Renzo Taddei:

O aumento do conhecimento climático das últimas décadas, ao invés de expandir o poder da ação humana sobre a natureza, evidencia um grau de variabilidades e incertezas imensamente maior do que se imaginava. O conceito de cascata trófica (Pace et all, 1999), oriundo da ecologia, mostra como uma alteração ecossistêmica gera reações múltiplas e encadeadas, sendo impossível ao conhecimento existente (e por existir) prever todos os seus efeitos (e.g. Scheffer et al, 2005). Por essa razão, grande parte das experiências de engenharia ambiental do passado resultaram em fracasso, pelo menos no que tange aos seus objetivos originais. […] [De modo que] quanto mais se sabe sobre os sistemas naturais, mais se entende que nossa compreensão sobre eles é pífia. Em resumo, não há forma de colocar em prática esquemas de geoengenharia sabendo com o mínimo de precisão o que se está fazendo e que decorrências isso pode ocasionar (TADDEI, 2015, pp. 3-4).

Por fim, e talvez ainda mais ingênua, a esperança de que a velocidade dos avanços tecnológicos supere ou mesmo antecipe os efeitos catastróficos das mudanças climáticas, além de ignorar a realidade das práticas científicas – sua organização e temporalidade próprias – reafirma justamente uma ideia que, só aparentemente, os ecomodernistas pareciam dispostos a rejeitar: a existência de uma “natureza” intocada, inerte e exterior aos homens. Tudo se passa, portanto, como se os autores incorporassem a crítica ecopolítica à noção de uma “natureza intocada” apenas pela metade. Afinal, se admitem, por um instante, que natureza e cultura, meio-ambiente e humanidade formam uma espécie de amálgama, é apenas para, no instante seguinte, recaírem na velha cantilena do domínio e maestria humanos sobre a natureza. Esse tipo de manobra filosófica autoriza, por fim, a concepção do “meio ambiente” como um tipo de máquina cibernética, sujeita a “reconfigurações” intermináveis, ao gosto dos seus programadores; um pano de fundo, apenas, para as magníficas realizações do Homem. Como observaram Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro:

O esquema projetado pela ideologia do Breakthrough Institute pode ser visto como uma variante do tema mítico “humanidade sem mundo”, no sentido em que, no “bom Antropoceno” por vir, não haverá mais um ambiente externo à humanidade. Não tanto porque o Homem será transfigurado pela técnica (…), mas porque a antiga Natureza será recodificada (ou melhor, reaxiomatizada) pela máquina capitalista como um simples problema de gestão de recursos, de governança ambiental. (…) Estaria assim realizado o sonho antrópico dos Modernos, o de um pós-ambientalismo onde o homem se verá circundado, contextualizado, sustentado, apenas por si mesmo, rodeado por sua imensa acumulação de mercadorias, energizados por suas novas e seguríssimas centrais nucleares (com reatores de fusão à frio, se possível) e relaxado por amplas e amenas áreas de lazer ecológicas, povoadas, é claro, por uma seleta flora geneticamente melhorada (DANOWSKI, VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p.69).

O que os ecomodernistas ignoram solenemente, com isso, é uma das principais características daquilo o que Isabelle Stengers (2015) tem nomeado a “Intrusão de Gaia”, um evento marcado por um tipo de transcendência totalmente indiferente aos nossos desígnios (ou ao ritmo das pesquisas em geoengenharia, por exemplo). Um ser, em suma, “implacável”, “surdo às nossas justificativas”, contra o qual não se pode “lutar”, mas apenas “compor com”, “agenciar”, “negociar” (STENGERS, 2015, p. 41)… Pois não temos escolha:

A intrusão do tipo de transcendência que nomeio Gaia instaura, no seio das nossas vidas, um desconhecido maior, e que veio para ficar. E, aliás, talvez seja isto o mais difícil de conceber: não existe um futuro previsível em que ela nos restituirá a liberdade de ignorá-la; não se trata de “um momento ruim que vai passar”, seguido de uma forma qualquer de happy end no sentido pobre de “problema resolvido”. Não seremos mais autorizados a esquecê-la. Teremos que responder incessantemente pelo que fazemos diante de um ser implacável, surdo às nossas justificativas. Um ser que não tem porta-voz ou, antes, cujos porta-vozes estão expostos a um devir monstruoso (STENGERS, 2015, p. 41).

Os argumentos, portanto, que não encaram essa “verdade inconveniente” são tão frágeis quanto atraentes. Pode ser (e talvez seja mesmo mais provável) que a “opinião pública” prefira as versões prometeicas ou épicas da história difundidas por estes profetas californianos. Mas, neste ponto, convém botar os pés de novo ali mesmo, na Califórnia. É no mínimo irônico que nem toda a grandeza de espírito, a supremacia técnica ou o pragmatismo ecomodernistas tenham produzido qualquer efeito no enfrentamento da longa estiagem, das altas temperaturas ou dos incêndios históricos que acometeram nos últimos anos o seu território-berço. É verdade que eles talvez estejam ocupados demais com “o futuro” da humanidade (e só dela) para se inquietarem com esses probleminhas locais. Veremos ou não até quando. Mas a ironia está longe de terminar por aí. Apresentei até aqui os heróis do romance aceleracionista. Fujamos, agora, em direção aos mitos.

A FILOSOFIA INDÍGENA DA MORTE

“Antigamente, os homens não conheciam a morte.” Assim narra uma variedade de mitos ameríndios percorridos por Claude Lévi-Strauss ao longo das suas Mitológicas. Seja por alguma espécie de equívoco, distração ou imprudência dos antigos, seja por uma decisão (ou, como veremos, deliberação) dos demiurgos, a morte é mais uma “aquisição” indesejada do que uma “condição natural” humana. Os primeiros homens eram imortais, trocavam de pele como ainda fazem as cobras, as aranhas e outros invertebrados ou, como diz um mito karajá, “viviam muito até que a idade os tornasse incapazes de se moverem” (LÉVI-STRAUSS, 2004 [1964], p. 180). O tema da imortalidade original e da mortalidade adquirida é de tal modo recorrente na mitologia dos índios americanos que o autor reúne este grupo enquanto “mitos de origem da vida breve” e a eles dedica um capítulo inteiro logo na terceira parte de O Cru e o Cozido, primeiro livro da tetralogia.

Inicialmente, Lévi-Strauss destacava o motivo da “vida breve” a partir do problema que o ocupava mais de perto: a origem da cozinha e do fogo culinário e, portanto, a passagem do contínuo ao discreto, da natureza à cultura. Tanto no mito de referência bororo (M1), que inaugura o seu périplo mitológico, quanto em algumas das “variações jê” (M9 e M10) analisadas pelo autor, um detalhe recorrente chamava-lhe a atenção: uma atitude ou receio comuns manifestados por alguns heróis diante do perigo de morte representado por uma “receptividade imprudente” a certos ruídos… “Em M1 e M10, o herói não deve provocar os outros através de ruído, senão ele morrerá; em M9, não deve se deixar provocar por todos os ruídos, pois, dependendo do patamar acústico a que reagir, os homens (isto é, os outros) morrerão mais ou menos depressa.” (LÉVI-STRAUSS, 2004 [1964], p. 179). A partir de um mito karajá (M70) que pouco se assemelhava aos anteriores, exceto pela breve menção ao grito da seriema (um ruído, portanto) e a algumas madeiras podres e secas, Lévi-Strauss deduz toda uma relação que conecta a origem do fogo à brevidade da vida ou, noutras palavras, a origem da cultura à origem da morte.

O que poderia conectar madeiras mortas à aquisição do fogo? Ora, “(…) para acender o fogo é preciso juntar madeira morta e, portanto, atribuir a ela uma qualidade positiva (…). Nesse sentido, cozinhar é mesmo ‘escutar o chamado da madeira podre’.” (LÉVI-STRAUSS, 2004 [1964], p. 180). No mito Karajá (M70), os antigos, que antes habitavam as entranhas da terra, decidem seguir o grito da seriema até que atravessam um pequeno orifício atingindo a superfície terrestre, onde encontram frutas, abelhas e mel em abundância, mas onde percebem, igualmente, a existência de árvores podres ou secas pelo chão. Diante desta última constatação, concluem que havia ali muita fertilidade e beleza, mas que tudo estava fadado a morrer (até as árvores!) e decidem, por fim, regressar. Alguns deles, entretanto, preferem continuar na superfície e, por isso, “os homens morrem muito mais depressa que os seus congêneres que habitam o mundo subterrâneo.” (LÉVI-STRAUSS, 2004 [1964], p.180)

Nas páginas que se seguem, o etnólogo deriva ainda deste “código acústico” – o ruído evitado ou perseguido pelas personagens dos mitos – suas variantes olfativas, táteis, visuais ou gustativas identificadas naquele mesmo “grupo de transformações”. E conclui:

O grupo de mitos relativos à vida breve encara-a sob dois aspectos, um prospectivo, o outro retrospectivo. Poder-se-ia prevenir a morte, isto é, evitar que os homens morram mais cedo do que gostariam? E, inversamente, será possível devolver a juventude aos homens que já ficaram velhos e ressuscitá-los se já estiverem mortos? A solução do primeiro problema é sempre formulada em termos negativos: não ouvir, não sentir cheiro, não tocar, não ver, não sentir gosto… A do segundo, sempre em termos positivos: ouvir, sentir cheiro, tocar, ver, sentir gosto. (LÉVI-STRAUSS, 2004 [1964], p. 194).

Como se vê, a preocupação do autor ao introduzir estes “mitos de origem da vida breve” concentrava-se, ali, em dois objetivos principais: evidenciar a “relação intrínseca” entre este grupo e aquele da “origem do fogo” apresentados no início do livro e demonstrar, ao mesmo tempo, o próprio método estrutural ali “testado”. O capítulo A fuga dos cinco sentidos, neste sentido, era uma primeira confirmação da “hipótese inicial” apresentada pelo autor logo nas primeiras linhas da famosa Abertura do livro, isto é, “a existência de uma lógica das qualidades sensíveis” (LÉVI-STRAUSS, 2004 [1964], p.19) capaz de elucidar os procedimentos e as leis próprias ao pensamento mítico. Sem contradizer esta preocupação inicial – mas antes, eu diria, como consequência mesmo da sua demonstração contínua – é notável como a análise da mitologia da “origem da vida breve” vai ganhando novas camadas ao longo dos livros que se seguem, a ponto de ser referida como uma verdadeira “filosofia da morte” em O Homem Nu. Isso porque Lévi-Strauss reencontrava ali, em alguns mitos norte-americanos, outro tema que atravessava o problema filosófico da mortalidade para os indígenas: a superpovoação do planeta e a ameaça de esgotamento dos recursos naturais por ela representada. Como observava o autor: “toda a filosofia norte-americana a respeito da morte gira em torno deste tema: se os mortos pudessem ressuscitar, ou os velhos rejuvenescer, logo a terra ficaria superpovoada; não haveria lugar para todos.” (LÉVI-STRAUSS, 2011 [1971], p. 362)

O tema, com efeito, aparecia logo no terceiro dos mais de oitocentos mitos percorridos por Lévi-Strauss. Naquele mito bororo (M3), a terra, após um dilúvio, estava para ser novamente povoada, “mas antes, os homens se multiplicavam tanto que Meri, o sol, teve medo e procurou um modo de reduzi-los” (LÉVI-STRAUSS, 2004 [1964], p. 74). Já numa variante arapaho do mito do desaninhador de pássaros (M759), o demiurgo enganador ressuscita após ser morto e despedaçado por um índio que prendera no topo de um rochedo e, sentado à beira de um lago, põe-se a meditar sobre a morte:

Deveria ser tornada definitiva ou não? Pendeu para a ressurreição, ao ver um bastão, uma bosta seca de bisão e um pedaço de miolo vegetal flutuarem depois de ele os ter jogado na água. Mas um pedregulho afundou, o que o fez decidir pelo contrário. Era melhor que as pessoas morressem de uma vez por todas, pensou, se não, a terra ficaria superpovoada. Desde então, a vida só dura um tempo, e depois, a gente morre. (LÉVI-STRAUSS, 2014, p. 487).

Mas é – quem diria! – de um povo indígena habitante da porção sul do atual estado da Califórnia (EUA), os Ivilyuqaletem, também conhecidos como Cahuilla, de onde provém uma das mais fascinantes narrativas sobre o tema, evocada por Lévi-Strauss em A Oleira Ciumenta, num capítulo sugestivamente intitulado “demiurgos californianos”, de onde empresto o título deste artigo. Segundo o mito,

[…] o demiurgo Mukat criou os primeiros homens ‘trabalhando lentamente e cuidadosamente a argila para modelar um belo corpo, como os que os homens têm hoje em dia’. Quando o demiurgo e seu irmão se perguntam se os humanos devem ou não ser mortais, Mukat, partidário da morte, argumenta: ‘se os humanos voltassem à vida, o mundo ficaria pequeno demais’. Temaiyauit, o mau demiurgo, retruca: ‘aumentaremos o mundo!’. – ‘Que seja!’, objeta Mukat, ‘mesmo assim não haverá comida o bastante para todos.’ – ‘Eles comerão terra’, diz Temayauit. – Mas assim vão acabar com ela.” – “Não, porque conservaremos o poder de fazer com que cresça novamente.” (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 179).

Temayauit, o mau demiurgo, é um perfeito ecomodernista! Se o debate não tivesse terminado ali e Mukat, como se sabe, imposto sua vontade, não seria de se espantar se o seu irmão mais novo começasse a falar em geoengenharia… Afinal, não é exatamente esta a natureza das soluções aventadas pelo ecopragmatismo? O crescimento e a aceleração sem “limites” ou “restrições”? Uma reconfiguração aparentemente inesgotável do ecossistema planetário a partir do avanço inexorável da tecnologia? “Faremos mais terra! Faremos mais terra!” – parecem insistir estes outros demiurgos californianos. Com uma diferença importante, é claro: os demiurgos de outrora de fato possuíam poderes mágicos.

Mas isso não é tudo. É também notável como, numa espécie de inversão estrutural destes mitos, as promessas aceleracionistas acabam por culminar no próprio anúncio do fim da vida breve. Esta é, com efeito, uma das teses dos assim chamados “singularitanos” – igualmente californianos! – que encontram entre um de seus maiores expoentes o futurista e diretor de engenharia da Google, Ray Kurzweil. Autor de best-sellers como The Fantastic Voyage: live long enough to live forever (2004), The Singularity is near (2005) ou How to create a mind (2012), o americano cativa audiências pelo mundo profetizando um futuro próximo – ali por volta de 2045 – no qual a morte poderá, enfim, ser “enganada” graças à fusão definitiva entre a biologia e a engenharia computacional – uma “bioengenharia”, portanto – capaz de reprogramar indefinidamente os corpos humanos (ou, como preferem, pós-humanos) de modo a eliminar de vez a ameaça das doenças e do envelhecimento. Se viveremos o suficiente para vivermos eternamente, não sabemos. Mas não deixa de ser uma estranha inversão, essa, pois se os mitos de origem da vida breve são, como vimos, indissociáveis dos mitos de origem da cultura e da civilização é no mínimo curioso que as profecias do fim da morte estejam, elas também, intrinsecamente relacionadas aos prenúncios do fim da civilização.

 

A ECOLOGIA DOS MITOS

Mas os mitos e os índios ensinam mais. Lévi-Strauss, como se sabe, tornou-se conhecido como uma espécie de ambientalista avant la lettre e desde muito cedo passou a carregar a pecha de “pessimista”, sobretudo quanto ao destino da humanidade e da civilização ocidental. Seu célebre ensaio Raça e História, publicado ainda em 1952, era um libelo pela diversidade cultural, além de uma crítica contundente ao evolucionismo social, ao etnocentrismo e à noção de “progresso” – estes três motores do colonialismo e da destruição em massa dos ecossistemas planetários. Pouco tempo depois, em 1955, viria a público Tristes Trópicos, um magnífico tratado de antropologia indígena bem como um testemunho eloquente dos efeitos catastróficos da invasão europeia sobre os povos nativos do continente. É de suas páginas finais, por exemplo, uma de suas mais lacônicas (e atuais) profecias: “o mundo começou sem o homem e terminará sem ele” (LÉVI-STRAUSS, 1996 [1955], p.390)

Os mitos e os anos só acentuariam o pessimismo do etnólogo. Os anos, porque o autor virava o século testemunhando o avanço progressivo – por imposição e não por opção, como frisava – do modo de vida ocidental sobre os quatro cantos do planeta. Já os mitos porque, aos olhos do seu mais atento escrutinador, eles demonstravam uma filosofia em quase tudo oposta àquela que com mais vigor orientava os projetos desta mesma sociedade que tantas vezes ele criticou. Os capítulos finais de A Origem dos modos à mesa são uma demonstração veemente disto. Dedicado à mitologia da periodicidade, o terceiro tomo das Mitológicas debruçava-se sobre uma série de mitos que evidenciavam as relações profundas entre a origem dos astros e das constelações, a alternância entre o dia e a noite e entre as estações, além da própria periodicidade dos corpos (femininos, em especial). O motivo da “viagem de canoa da lua e do sol”, extensamente analisado pelo autor, evoca justamente estas relações:

Uma viagem de canoa requer pelo menos dois passageiros, que desempenham funções complementares: um impulsiona e outro a dirige. Este último deve se sentar atrás e, para equilibrar a embarcação, o primeiro deve sentar-se na frente. Durante a viagem, nenhum dos dois deve se mexer e ainda menos mudar de lugar, ou provocaria um movimento brusco na canoa, que poderia virar. Portanto, os dois passageiros nunca devem ficar perto demais um do outro; porém, associados numa empreitada comum, tampouco podem ficar longe demais. O espaço delimitado da canoa e as regras estritas da navegação conspiram para mantê-los a boa distância, ao mesmo tempo juntos e separados, como devem ficar sol e lua para evitar que um excesso de dia ou um excesso de noite incendeie ou apodreça a terra. (LÉVI-STRAUSS, 2006 [1968], p. 173)

O par Sol e Lua ainda condensaria uma série de outras oposições e códigos, além do temporal (dia e noite). Por exemplo: o espacial (horizontal e vertical, terra e céu), o sociológico (consanguinidade e afinidade, incesto e casamento, aliança e guerra) e o anatômico (abertura e fechamento, continência e incontinência corporal). Entre o cosmos e os corpos, portanto, o que os mitos sublinham é a necessária intervenção de mediadores ou pequenos intervalos de modo a garantir o “equilíbrio” ou a “boa distância” entre as coisas, sob o risco do mínimo distúrbio de um lado produzir consequências catastróficas do outro. Destas conexões entre o homem e o mundo, Lévi-Strauss extrai toda uma “moral imanente” aos mitos, que diz respeito sobretudo à maneira como eles concebem a influência recíproca, por assim dizer, de um sobre o outro. Com um detalhe importante, porém: a etiqueta indígena parece se esforçar, antes, em evitar que o sujeito contamine o mundo do que o contrário, como nas nossas modernas cosmologias, sempre mais habituadas a temer ou evitar as impurezas que vêm de fora. Desse modo, para os indígenas:

[…] violar um regime alimentar, deixar de empregar talheres ou utensílios de toalete, praticar gestos proibidos, tudo isso infecta o universo, arruína as colheitas, afasta a caça, expõe os outros à doença e à fome; e, para si mesmo, abrevia a duração normal da vida humana, fazendo surgir os sinais de uma senilidade precoce (LÉVI-STRAUSS, 2006 [1968], p. 457).

Lévi-Strauss vê neste modo outro de decoro uma demonstração particular de “deferência para com o mundo” (LÉVI-STRAUSS, 2006 [1968], p. 460). Ora, não é difícil imaginar as consequências de uma tal ideia tendo em vista uma possível ecologia política ameríndia. Afinal, num mundo em que “o inferno somos nós mesmos” (LÉVI-STRAUSS, 2006 [1968], p. 460) e no qual as “quebras de decoro” possuem consequências cósmicas, compreende-se porque viver (e matar) seja particularmente perigoso. Não somente, é claro, porque o sujeito contamina o mundo, mas porque a posição de sujeito, como ensina o perspectivismo ameríndio, está distribuída no mundo. Não há, portanto, ação sem reação, nem morte sem vingança. Onde “tudo tem alma, espírito”, a caça é uma forma da guerra, a doença, uma forma de agressão, a cozinha, uma espécie de canibalismo e o xamanismo, tradução. Habitar este mundo exige, assim, uma atenção constante e um cuidado particular no trato com os agentes e agências que o povoam. Isso quer dizer, entre outras coisas, que a ação política não está confinada nos limites supostamente bem definidos de um (ou mais) grupos humanos; ela se estende necessariamente aos demais seres, visíveis ou não, que compõem o cosmos. Segue-se daí que a vida, em todos seus aspectos, exige um verdadeiro esforço diplomático, um engajamento constante em “cosmopolíticas”.

Esta caracterização geral do multiverso ameríndio explica ainda, em boa medida, porque o “perigo” e o “medo” são dois sentimentos ou afecções tão frequentemente – e por vezes exageradamente – associados ao cotidiano destes povos. Os índios teriam medo de tudo: dos inimigos, dos seus vizinhos, dos feiticeiros, dos espíritos, dos grandes predadores da floresta, dos brancos, dos mortos e do fim do mundo… Mas, como lembrou Eduardo Viveiros de Castro (2011), estas formas do medo, entre eles, pouco têm a ver com a correlativa necessidade de aniquilação daquilo que se teme. Ao contrário,

[…] esta é uma forma de medo que, muito longe de exigir a exclusão ou a desaparição do outro para que se recobre a paz da autoidentidade, implica necessariamente a inclusão ou a incorporação, do outro ou pelo outro (pelo também no sentido de “por intermédio do”), como forma de perpetuação do devir-outro que é o processo do desejo nas socialidades amazônicas. Sem o influxo perigoso das forças e das formas que povoam o exterior do socius, este fatalmente falece, por carência de diferença. Para poder viver a seu gosto – “viver bem”, como se diz que os índios gostam de dizer – é preciso primeiro gostar de viver perigosamente (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 889).

Aqui, portanto, o “medo” e o “perigo” implicam antes um “cuidado” generalizado – aquela espécie de “deferência para com o mundo” de que falava Lévi-Strauss. E por isso também a aliança tão evidente – ainda que atravessada por mal-entendidos, como, de resto, qualquer aliança – entre os povos indígenas e os movimentos ecologistas. Os primeiros sabem bem (e temem) as consequências da presença desastrada e desastrosa dos brancos sobre o mundo. Os brancos somos, aliás, o protótipo da falta de etiqueta, para os índios: agressivos, estúpidos, sovinas, desmemoriados, desajeitados, somos “bichos surdos”, como dizia uma mulher kisêdjê numa vídeo-carta circulada durante a Rio+20 [8]. Ou ainda, como Rosângela de Tugny ouviu uma vez de um índio Maxakali: “os brancos são como onças: não conversam, nem esperam, chegam logo atirando” (TUGNY, 2011)

Tamanha inconsequência preocupa e ocupa diariamente estes povos. Como sempre chama atenção Davi Kopenawa é graças aos esforços diplomáticos conduzidos pelos xamãs indígenas que ainda estamos aqui, sobre a mesma terra, pois, do contrário, o céu já teria desabado nas nossas cabeças, como já aconteceu outras vezes e, claro, sempre pode acontecer:

É verdade. Os xamãs não afastam as coisas perigosas somente para defender os habitantes da floresta. Também trabalham para proteger os brancos, que vivem embaixo do mesmo céu. É por isso que, se todos os que fazem dançar os xapiri morrerem, os brancos vão ficar sós e desamparados em sua terra, devastada e invadida por multidões de seres maléficos que os devorarão sem trégua. Por mais que sejam numerosos e sabidos, seus médicos não poderão fazer nada. Serão destruídos aos poucos, como nós teremos sido, antes deles. Se insistirem em saquear a floresta, todos os seres desconhecidos e perigosos que nela habitam e a defendem irão vingar-se. Vão devorá-los, com tanta voracidade quanto suas fumaças de epidemia devoram os nossos (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 492).

E os espíritos xapiripë, que habitam o interior das florestas e que só os xamãs, em sonho, são capazes de ouvir, já mandaram avisar:

[…] Por mais que os brancos acreditem que podem aumentar sem limites, vamos coloca-los à prova! Veremos se são tão poderosos quanto pensam! Vamos mergulhá-los na escuridão e na tempestade! Vamos quebrar o céu e eles serão esmagados por sua queda! (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 494).

Kopenawa sabe muito bem que as suas palavras e as dos xapiripë têm muito pouco ou nenhum efeito diante da impressionante surdez e apatia dos brancos. Os brancos não têm medo. Pelo menos, não das coisas que realmente importam. Por isso, também não têm cuidado. Como tem insistido a filósofa Isabelle Stengers, “[…] quando o assunto que está em jogo é o chamado ‘desenvolvimento’ ou ‘crescimento’, a determinação é, principalmente, não ter cuidado.” (STENGERS, 2015 p. 56). Parece sempre mais fácil recuperar ou mitigar os danos do que reverter ou controlar suas causas.

Com certa perplexidade, Bruno Latour (2015) também aborda esta espantosa profissão de indiferença demonstrada pelos modernos diante da atual mutação ecológica. Sondando suas motivações profundas, o autor as atribui, em parte, a uma certa continuidade ou “cruzamento” entre os modos de existência da Religião e da Ciência. Isso porque, acreditando ter se livrado de vez de todo o “obscurantismo” e “superstição” que moveriam a primeira, esta última teria terminado por levar adiante o mesmo furor inquisitório, a mesma perseguição aos “falsos profetas”, o mesmo apego à verdade última e única das coisas:

Nós mantivemos o tempo do fim e mantivemos a ideia da verdade definitiva, mas as duas noções estão agora reunidas da forma mais improvável: um certo número de povos agora afirmam estar absolutamente certos de terem alcançado o fim dos tempos, de terem atingido um outro mundo, e de estarem separados dos tempos antigos por uma ruptura absoluta. Para essas pessoas, é claro, nada mais pode acontecer de tão grave, uma vez que eles se creem depois de sempre no “fim da história”. Portanto, é inútil fazer discursos apocalípticos anunciando o fim do mundo deles! Eles vão censurá-lo com a condescendência de que eles já passaram do outro lado que eles não são mais deste mundo, que nada mais pode acontecer com eles, que eles são resolutamente, definitivamente, completamente e para sempre modernos! Que o único movimento deles é ir sempre para frente, nunca para trás. Seu lema é o do império espanhol: Plus Ultra (LATOUR, 2015, p. 254).

Não nos surpreende, enfim, que o discurso aceleracionista ataque com tanta frequência a suposta “covardia” dos ecologistas, exortando-nos precisamente a não ter medo. Como se gabaram Nordhaus e Schelleberger: “aqueles de nós que prestamos tanta atenção nos ciclos da natureza sabemos mais do que temer a morte […] Nas palavras do Tao Ti Ching: ‘se você não tem medo de morrer não há nada que não possa alcançar’.” (NORDHAUS; SCHELLENBERGER, 2004, p.10). A teologia ecomodernista, de fato, não conhece limites. A isto chamam de “esperança”. Mas a esperança é a última que mata e quem hoje não tem medo, se viver, terá: “os Brancos não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu. Mas um dia talvez tenham tanto medo disso quanto nós temos.” (KOPENAWA; ALBERT 2011, p. 498).

 

Bibliografia

CEBALLOS et al. Accelerated modern human–induced species losses: Entering the sixth mass extinction. Science Advances, v. 1, n. 5, 2015.

DANOWSKI, Deborah. O hiperrealismo das mudanças climáticas. In: Sopro, 70. Curitiba, Cultura&Barbárie, 2012.

DANOWSKI, Deborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis, Cultura e Barbárie, 2014.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.

KURZWEIL, Ray. The Fantastic Voyage: live long enough to live forever. Rodale, 2004.

____. The Singularity is near. Viking, 2005.

____. How to create a mind. DuckWorth Overlook, 2012.

LATOUR, Bruno. Face à Gaïa: huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris, Éditions La Découverte, 2015.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Cru e o cozido. São Paulo, Cosac&Naify, 2004 [1964].

____. Origem dos modos à mesa. São Paulo, Cosac&Naify, 2006 [1968].

____. O Homem nu. São Paulo, Cosac&Naify, 2006 [1968].

____. A Oleira Ciumenta. São Paulo, Brasiliense, 1985.

NORDHAUS, Ted; SCHELLENBERGER, Michael. The Death of Environmentalism: global warming politics in a post-environmentalist world. Breaktrhough Institute, 2004.

____. BreakThrough: from the death of environmetalism to the politics of possibility. Boston, New York, Houghton Mifflin Company, 2007.

____. An ecomodernist manifesto. QuarkXpress, 2015.

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: como resistir à barbárie que vem. São Paulo, Cosac&Naify, 2015.

TADDEI, Renzo. Alter geoengenharia. 2014. Disponível em: http://osmilnomesdegaia.files.wordpress.com/2014/11/renzo-taddei-altergeoengenharia.pdf

TUGNY, Rosangela de. O trem do Progresso. Revista Piseagrama, n. 2, p. 06-09, Belo Horizonte, 2011.

 

Recebido em: 28/02/2019

Aceito em: 28/03/2019


[1] Doutorando em Antropologia Social no Museu Nacional (UFRJ).

[2] Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2018-11-16/chanceler-ernesto-araujo.html. Acessado em: 06/04/2019.

[3] Disponível em: https://www.skepticalscience.com/global-warming-scientific-consensus-advanced.html. Acessado em: 06/04/2019.

[4] Para uma crítica à ideia de “crise” ecológica, ver Latour (2015). Para uma apresentação detalhada das diferentes correntes que reúno aqui sob o rótulo de “aceleracionistas”, ver Danowski e Viveiros de Castro (2014, pp. 64-78).

[5] Disponível em: http://cdfdata.fire.ca.gov/incidents/incidents_stats?year=2015. Acessado em: 06/04/2019.

[6] Disponível em: http://www.latimes.com/local/lanow/la-me-ln-california-drought-worst-20141205-story.html. Acessado em: 06/04/2019.

[7] Sobre a geoengenharia: http://www.geoengineering.ox.ac.uk/what-is-geoengineering/what-is-geoengineering/. Acessado em: 06/04/2019.

Demiurgos californianos: mitocríticas ao ecomodernismo

 

RESUMO: Apesar do consenso científico em torno das mudanças climáticas e de suas causas antropogênicas, os debates quanto ao que fazer diante do Novo Regime Climático instaurado estão em pleno curso. Neste novo cenário, a disputa ganha novos contornos, agentes e direções. Este artigo propõe examinar o atual embate entre “ecomodernistas” e “ambientalistas” à luz de certos mitos ameríndios ou, melhor dizendo, de certos motivos por eles evocados e que surpreendentemente vão de encontro aos atuais problemas do mundo moderno. O curioso é que estes mesmos problemas que ora permeiam nossas modernas escatologias encontram paralelos ou ressonâncias naquilo que, nestes mitos, correspondem mais precisamente a questões de cosmogonia. Tudo se passa como se, numa estranha reviravolta das coisas, as questões que hoje ocupam a ordem (do fim) dos tempos não tivessem escapado a alguns demiurgos ameríndios lá no princípio.

PALAVRAS-CHAVE: Mudanças climáticas. Mitos ameríndios. Ecomodernismo.


Californian demiurges: mythocritics to ecomodernism

 

ABSTRACT: Despite the scientific consensus about climate change and its anthropogenic causes, the debates on what to do before the New Climate Regime introduced are in full swing. In this new scenario, the dispute gains new contours, agents and directions. In this article, I propose to examine the current clash between “ecomodernists” and “environmentalists” in the light of certain Amerindian myths or, rather, certain motives that are evoked by them and that surprisingly address the current problems of the modern world. The curious thing is that these same problems that now permeate our modern eschatologies find parallels or resonances in what, in these myths, correspond more precisely to matters of cosmogony. Everything happens as if, in a strange turn of events, the questions that today occupy the order (of the end) of the times had not escaped to some Amerindian demiurges in the beginning.

KEYWORDS: Climate change. Amerindian myths. Ecomodernismo.


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ROMERO, Roberto. Demiurgos californianos: mitocríticas ao ecomodernismo. ClimaCom – Fabulações Miceliais [Online], Campinas, ano 6,  n. 14,  abr.  2019 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=10777