Brasil propõe nova diferenciação entre países na COP20

Efetividade da proposta é posta em discussão por especialistas: “é uma colagem entre o óbvio e o absurdo”

Por Meghie Rodrigues

 

A contribuição do Brasil para a 20ª Conferência das Partes (COP20), que acontece em Lima, Peru, até o próximo dia 12, propõe repensar o conceito de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC).

A intenção é refinar a divisão dos 190 países-membros da UNFCCC tal como estabelecida pelo Protocolo de Quioto: em vez de apenas os países do Anexo I (membros da OCDE e países pertencentes à ex-União Soviética) terem responsabilidades legalmente vinculantes sobre reduções de emissões de gases provocadores do efeito estufa, os países emergentes (como Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os BRICS) também assumiriam responsabilidades legais sobre as medidas. A proposta, que responde às demandas do Anexo I de que os países emergentes devem assumir uma parcela dos custos advindos dos cortes de emissões, implicaria em um agrupamento menos monolítico entre países em desenvolvimento, ou pertencentes ao Anexo II.

A divisão atual foi traçada na década de 1990 em decorrência do Protocolo de Quioto (que previa reduções de emissões de dióxido de carbono na atmosfera em 5,2% entre 2008 e 2012, em relação aos níveis de 1990), mas coloca grandes emissores como China e Brasil na mesma categoria de países menores e mais vulneráveis como os Estados-ilha do Oceano Pacífico.

A proposição chega em um momento em que a UNFCCC prepara um documento de força legal a ser proposto em Paris em dezembro do ano que vem, durante a COP21. O novo documento passará a vigorar a partir de 2020, quando cessa a validade da extensão ao Protocolo de Quioto, emenda feita em 2012, durante a COP18 em Doha, no Qatar. O objetivo é levar adiante a meta de conter o aumento da temperatura global para até 2ºC em relação ao período pré-industrial. Apesar de os países-membros da UNFCCC ainda não terem chegado a um acordo quanto ao texto que servirá como base do documento a ser apresentado em Paris, a proposta feita pela delegação brasileira – chefiada pelo subsecretário-geral de Meio Ambiente, Energia, Ciência e Tecnologia do Ministério das Relações Exteriores, José Antonio Marcondes de Carvalho –, parece ter sido bem recebida na Conferência na capital peruana.

No documento oficial enviado à UNFCCC, o Brasil propõe o que chama de “diferenciação concêntrica”, que divide os países em três níveis, de acordo com seu nível de desenvolvimento e histórico de emissões de gases de efeito estufa. Isto definiria suas responsabilidades e ações a serem tomadas. No círculo mais interno estariam os países do Anexo I, com o compromisso de cumprir uma limitação absoluta de emissões ou um alvo de reduções em comparação a um determinado ano-base. No círculo intermediário estariam países emergentes e em desenvolvimento, que poderiam assumir os compromissos dos países do Anexo I ou estabelecer metas de redução em relação à sua projeção de emissões, proporcionais ao PIB ou com determinação cortes de emissão per capita. Por fim, no círculo mais exterior estariam os países menos desenvolvidos e mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas, como os Estados-ilha: estes não precisariam realizar grandes cortes, já que dispõem de poucos recursos e não são grandes emissores de gases de efeito estufa na atmosfera.

 

“Entre o óbvio e o absurdo”

Para Márcio Santilli, filósofo e coordenador do Instituto Socioambiental (ISA), “ainda não é hora de fazer grandes análises ou categorizações, mas sim o caso de fazer proposições concretas”. Segundo ele, a tripartição proposta pelo Brasil perpetua a diferença de posições políticas entre grandes emissores emergentes e países do Anexo I. “É algo que precisa ter uma tradução mais clara, se com isso se pretende objetivamente reforçar a responsabilidade dos emergentes – que são relevantes no conjunto das emissões globais – ou se, pelo contrário, é uma jogada retórica para que o bloco do meio, os emergentes, não sejam obrigados a assumir metas de redução imediatas”, ressalta.

O que pode estar havendo neste processo, de acordo com o filósofo, é “uma colagem entre o óbvio e o absurdo”: o óbvio no sentido de se reconhecer a diferença das responsabilidades entre países emergentes que são grandes emissores e os “mais de uma centena de países quase irrelevantes no volume global de emissões”. O absurdo seria elaborar uma meta de corte de emissões na ausência da discussão sobre política energética, ou seja, traçar uma meta sem um plano claro sobre como chegar lá.

Países como China e Estados Unidos (que assinaram um acordo em novembro, em que os EUA propõem reduzir 28% das emissões de gases de efeito estufa em até 11 anos, e a China, por sua vez, cortar as emissões até 2030), propuseram projetar, para além de 2020, processos que já estão ocorrendo em seus países. Em decorrência de políticas econômicas e energéticas já em curso, eles conseguem uma margem para negociar o cumprimento dessas metas. O coordenador do ISA observa, entretanto, que essas são metas modestas, já que EUA poderiam propor cortes maiores e a China, prazos mais curtos. “Ou seja, esse acordo entre China e EUA tem uma folga para eles negociarem – para cobrarem compromissos de outros países em troca de darem mais um passo”, observa.

 

Oficina do grupo multiTÃO (Labjor-Unicamp) realizada com o grupo de bordadeiras “Entrefios Memórias” do Casarão do Barão, em Campinas – SP

Oficina do grupo multiTÃO (Labjor-Unicamp) realizada com o grupo de bordadeiras “Entrefios Memórias” do Casarão do Barão, em Campinas – SP

Responsabilidades

Assumir responsabilidades é, também, um tema recorrente nestas rodadas de negociação sobre políticas climáticas em âmbito global, onde reafirmam-se noções acerca da soberania e economia dos países participantes Soberania no sentido de que, não abraçar estes compromissos compartilhados, seria não assumir uma postura globalista em relação à governança climática. Já no caso da economia, seria a reafirmação do privilégio de fontes poluentes em detrimento de fontes alternativas de geração de energia. Eduardo Viola, professor da Universidade de Brasília (UnB), em artigo publicado em 2002, lembra que a posição contrária dos Estados Unidos em relação ao corte de emissões de dióxido de carbono na década de 1990 (o que levou o Senado dos EUA a barrar a ratificação do Protocolo de Quioto), se deu porque os EUA queriam que os “países emergentes assumissem compromissos de diminuir sua taxa de crescimento futuro de emissões”, além de demarcar uma posição clara em favor da manutenção do padrão de vida norte-americano.

O Brasil já trabalha no plano prático no sentido de assumir e compartilhar responsabilidades, tal como invocado pelos EUA. De acordo com Márcio Santilli, ainda que no ano passado as emissões de CO2 tenham aumentado em 7,8% em relação a 2012, o fato de ter feito reduções expressivas entre 2006 e 2012 mostra que o país tem capacidade de realizar cortes mais ambiciosos. No entanto, ele observa que “se queremos chegar a um acordo até o fim do ano que vem, é indispensável que alguma estratégia exista, e que o Brasil possa formular uma proposta de meta que garanta um sentido correto, que é o de redução de emissões – que assegure esse horizonte concreto, palpável – para que possamos cumprir o compromisso que vamos assumir, seja lá qual for”.