Aprendizagens de ver diante de um mundo todo vivo…


 

 Tatiana Plens Oliveira[1]

 

 

Enxergar embaixo d’água era quase impossível, só era possível enxergar quando se tentava ver com o canto do olho, era preciso exercitar outro tipo de visão, enxergar pela beira do olho sem ter certeza sobre o que se viu, o que se via era o que se via e ao mesmo tempo era outra coisa. Tudo estava em movimento e nos escapava. As coisas apareciam e desapareciam num fulgor rápido. Eram quase cintilações. Eu via crianças correndo, mas de repente eu não via nada, eram os ecos dos gritos que me faziam ver, eram de repente estrelas cadentes correndo e deixando um rastro de luzes que na verdade era o rastro de luz de algo que já não estava mais lá, mas permanecia de alguma forma vivo. Será que a água transforma o visível em invisível e o invisível em visível? Eu tentava ver uma coisa e já parecia estar vendo outra. Cada som modificava o que eu via. Eu já não sabia se via o que via. E não conseguia localizar de onde vinha o que via, se era algo que acontecia naquele instante ou se era alguma lembrança perdida flutuando com a água. Embaixo d’água tudo aparecia como um borrão, borrão de cor, de riso, de grito, de luz… sem origem ou contornos precisos… as coisas pareciam cada vez mais abertas e vivas. O mundo diante de mim era uma metamorfose pura (OLIVEIRA, 2017, p. 55).

 

A experiência de um mundo imagem[2] é a de estar submersa em um mundo todo vivo. Uma experiência de ver que não é mais conduzida pelo olhar, mas torna-se a de um corpo que vibra no encontro com outros seres, coisas, luzes, sons, e cuja percepção é guiada por ecos, borrões e cintilações, por visualidades e sonoridades de origens e contornos imprecisos. Apaga-se a ilusão de uma possível apreensão do real como uma totalidade: só é possível ver com o canto do olho, ali mesmo onde há sempre algo que escapa da percepção, algo que se passa ao lado, e como se nesse canto o corpo encontrasse com a beira do real, com o limite onde ele atinge uma força de irrealidade e se revela como intensidade pura.

Diante dessa atmosfera viva, a problemática do arquivo, da memória e da imagem alcança outras dimensões. Perante um mundo que se apresenta a nós em toda a sua vivacidade, a questão não é mais buscar uma evidência, um registro, um documento que nos mostre um “isso foi”, mas aprender a dispor o corpo ao encontro do que se apresenta como puro movimento. Uma aproximação que exige uma disposição muito distinta e evoca o exercício de uma espécie de “auscultação espiritual” (BERGSON, 1984) para alcançarmos a capacidade de entrar em contato com fluxos ainda invisíveis e insensíveis para a nossa percepção habitual.

Essa aproximação sensível abre uma possibilidade de nos conectarmos com o que o filósofo David Lapoujade (2013), através de uma relação com o pensamento de Henri Bergson, nos apresenta como a potência do tempo: a sua mobilidade, o que nos retira de uma experiência de tempo linear e sequencial e nos faz experimentá-lo em movimentos indisciplinados, como linhas-forças que compõe emaranhados onde passado, presente e futuro tornam-se indiscerníveis. Ao seguir esses rastros, encontramos com a memória como um tempo que pulsa e é engendrado por uma multiplicidade de tendências e direções capazes de nos retirar do círculo dos hábitos e nos levar a outras formas de exercício da percepção nas quais nossos sentidos operam destrambelhados.

Encontro-me entre materiais em puro estado de latência. Quando me aproximo deles não consigo mais ver o que esses processos de criação artística foram, parece que um terremoto atinge as suas superfícies, eles vibram com uma tremenda força e me envolvem numa atmosfera de poeira onde mal consigo ver e onde só consigo ouvir rumores e ecos confusos, algo parece escapar dos meus sentidos. Esses materiais já não conseguem existir apenas como evidências e registros, neles a vida segue enfurecida e me atinge como um turbilhão de forças que me arremessam à exercícios de criação para dar expressão a essa profusão de energia que pede passagem (OLIVEIRA, 2017, p. 121-122).

 

Nos conectamos com a memória enquanto uma reserva de energia (LAPOUJADE, 2013) que se mantém permanente ativa e está prestes a explodir novos acontecimentos. Submersos nesse mundo imagem, com os nossos sentidos operando fora dos eixos pela violência de uma afecção, passamos a adotar o ponto de vista da própria vida e somos envolvidos por linhas-forças do tempo que não param de metamorfoseá-la, por meio das quais ela não para de se modificar nos fazendo experimentar o tempo como devir. “Já não há verdade nem aparência. Já não há forma invariável nem ponto de vista variável sobre uma forma. Há um ponto de vista que pertence tão bem à coisa que a coisa não para de se transformar num devir autêntico ao ponto de vista” (DELEUZE, 2007, p. 178).

Afetados por essa variabilidade infinita, nos desapegamos de um modo dominante de aproximação das imagens por meio da lógica representacional – que funciona por meio da recognição e pressupõe um real já dado[3] – para nos apegarmos aos próprios movimentos do real, sendo arremessados a exercícios de criação para tentar tornar visíveis ou apenas sensíveis na superfície das imagens a emergência dessas forças atuantes no mundo. As imagens alcançam, então, uma dimensão criadora e passam a fabular, deixando de aspirar ao verdadeiro para se submeterem à própria potência do tempo (DELEUZE, 2007), a essa bifurcação incessante por meio da qual passado, presente e futuro não param de se modificar e a vida de um movimento de criação artística não para de crescer e de se multiplicar na superfície das imagens. “[…] a verdade não tem de ser alcançada, encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada. Não há outra verdade senão a criação do Novo: a criatividade, a emergência” (DELEUZE, 2007, p. 178).

Nesses exercícios de criação, o ato de crer torna-se fundamental. Como enuncia Bergson (BERGSON, 1932 apud LAPOUJADE, 2013), crer é uma necessidade vital que nos faz desatentar das formas da vida e nos apegarmos às suas forças. É exatamente essa necessidade de acreditar no mundo que, para Deleuze, nos leva a suscitar acontecimentos e a engendrar novos espaços-tempos “mesmo de superfície ou volumes reduzidos” (DELEUZE, 2013, p. 222). A experimentação com esse arquivo é guiada, desse modo, por uma crença na potência de germinação das imagens e acontece como uma espécie de semeadura mobilizada pela tentativa de fazer com que a vida transborde a pele das imagens.

[…] de repente estávamos todos tão úmidos que a nossa pele começava a soltar algumas cascas antigas, era como ter ficado muito tempo debaixo d’água, mas a pele não só enrugava como rachava. Liberávamos nossa pele das cascas com as mãos e nosso corpo começava a sentir como nunca, vibrando com o movimento de cada onda, e já não era possível distinguir se o movimento acontecia dentro ou fora de nós, não havia mais margens (OLIVEIRA, 2017, p. 53).

 

Com esse transbordamento, a pele das imagens se desfaz eliminando as margens que poderiam ser percebidas como um limite que separa os corpos e o mundo e deixando-as vulneráveis a serem arrastadas pelos fluxos e intensidades que mobilizam esse mundo vivo. Essas imagens se reafirmam, assim, como parte do potencial dinâmico e transformativo do mundo, sendo imanentes ao seu processo de geração contínua – ao seu vir-a-ser – como outros seres e coisas e estando integradas à teia da vida (INGOLD, 2013). Abertas, as fotografias desse arquivo se despedaçam e seus estilhaços se juntam à flores e flores secas, tornando-se, entre elas, quase indiscerníveis; impulsionam linhas a escaparem da sua superfície; enlaçam outras imagens e pequenos fragmentos de texto; são riscadas, perfuradas e costuradas; são invadidas pelo barro de uma inundação; e fazem emergir, com esses pequenos acontecimentos, novos arranjos de espaços-tempo mais sutis e sensíveis.

Os arranjos que surgem da experimentação com as fotografias desse arquivo parecem querer extrair da vida a sua potência máxima (WUNDER; DIAS, 2010), fazendo-a atingir outros níveis de intensidade e alcançar um ritmo vital que exige um exercício mais profundo da nossa percepção. Eles nos convocam a experimentar o que Osmar Gonçalves (2014) nomeia como uma lógica do sensível: “formas diversas de pensamento e percepção ligadas ao campo do sensível, a um domínio onde opera também um jogo de forças (instáveis, em devir) – de atmosferas e vibrações, de pequenas ou micropercepções – e não apenas de formas (estáveis, simbólicas, representativas)” (GONÇALVES, 2014, p. 13).

 

2

Perante essa lógica do sensível, nos conectamos ao pensamento de Lapoujade que nos anuncia que o contato com essa vibração da força é a própria condição de toda comunicação, “sem a qual o universo se fecha novamente sobre si mesmo e se transforma em objeto” (LAPOUJADE, 2013, p. 97). Passamos, assim, a experienciar processos de comunicação que não passam mais apenas pela linguagem, mas fazem apelo a outras forças sociais como a simpatia e a intuição (LAPOUJADE, 2014), e nos possibilitam sincronizar com outros ritmos de duração que se tornam sensíveis nas imagens quando elas são atravessadas e arrastadas pelas potências do tempo.

Ao percebermos a emergência de pequenos vislumbres e vibrações na superfície das imagens recuperamos a experiência do assombro e nos conectamos a um cosmos anímico, deslocando a percepção do que “é” para o que “está se fazendo” e nos deparando com a primazia do movimento no mundo (INGOLD, 2013). “Não somos obrigados a acreditar que o vento é um ser que sopra, ou que o trovão é um ser que faz estrondos. Pelo contrário, o vento está soprando, e o trovão está fazendo estrondos” (INGOLD, 2013, p. 19). A instauração de novos modos de existência das imagens mais sensíveis e articulados ao que se faz e está por vir aflora como uma cosmopolítica (STENGERS, 2014) ao abrir as imagens a forças de indeterminação e à experimentação infinita dos fluxos e intensidades que mobilizam as coisas do mundo. O contato com essas imagens torna-se, então, uma experiência de aprendizagem que arrasta o pensamento e a percepção das imagens além de qualquer limite já estabelecido, desdobrando-os infinitamente…

 

 

Bibliografia

BERGSON, H. Introdução à Metafísica. In: BERGSON, H. Cartas, conferências e outros escritos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

DELEUZE, G. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.

DELEUZE, G. Conversações. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013.

GODINHO, A. Linhas do Estilo: Estética e Ontologia em Gilles Deleuze. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2007.

GONÇALVES, O. (Org.). Narrativas sensoriais: ensaios sobre cinema e arte contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014.

INGOLD, T. Repensando o animado, reanimando o pensamento. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 10-25, jul./dez. 2013.

LAPOUJADE, D. O inaudível: uma política do silêncio. In: NOVAES, A. (Org.). Mutações: o silêncio e a prosa do mundo. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014.

LAPOUJADE, D. Potências do tempo. São Paulo: n- 1 Edições, 2013.

OLIVEIRA, T. P. Exercícios de afutur-ar. 2017. 151 f. Dissertação (Mestrado em Divulgação Científica e Cultural) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017.

STENGERS, I. La propuesta cosmopolitica. Pléyade, Dossier Cosmopolíticas, Santiago, Chile, n. 14, p. 17-41, jul./dez. 2014.

WUNDER, A.; DIAS, S. Deslizes pela superfície do acontecimento fotográfico. REU, Sorocaba, v. 36, n. 1, p. 157-174, jun. 2010.

Recebido em: 15/10/2017

Aceito em: 15/11/2017


 

[1] Mestra em Divulgação Científica e Cultural e especialista em Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Integrante do grupo de pesquisa e criação multiTÃO: prolifer-artes subvertendo ciências, educações e comunicações (CNPq) do Labjor-Unicamp. E-mail: tati.plens@gmail.com

[2] Essa “experiência de um mundo imagem” é um desdobramento da vivência junto as imagens do arquivo dos processos de criação artística do grupo teatral Coletivo Cê, do qual fui integrante e responsável pelo cultivo dos materiais que compõe esse acervo (fotografias, textos, desenhos, anotações). Durante a pesquisa do mestrado em Divulgação Científica e Cultural, realizado no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp e orientado pela Profa. Dra. Susana Oliveira Dias, dediquei-me à invenção de relações entre escrita, tempo e memória, e à criação de outros arranjos de espaços-tempo com os materiais desse arquivo por meio da proliferação de vãos, costuras, rasgos, cortes e da efetuação de junções entre eles e outros materiais como linhas, textos, terra, flores e folhas, na tentativa de fazê-los escapar da função representacional e torná-los passagem das potências do tempo e da vida.

[3] “A recognição, a representação serão (são) a crucificação da diferença. Com elas estamos nos ‘eixos’, quer dizer, todas as faculdades convergem e contribuem para um esforço comum de reconhecimento do objeto” (GODINHO, 2007, p. 67).

 

 

Aprendizagens de ver diante de um mundo todo vivo…

 

RESUMO: O presente ensaio se propõe a compor uma relação conceitual e sensível com a problemática do arquivo, da memória e da imagem diante de um mundo todo vivo, mobilizada por exercícios de criação e experimentação realizados com as imagens do arquivo dos processos de criação artística do grupo teatral Coletivo Cê.

PALAVRAS-CHAVE: Arquivo. Memória. Imagem.


“Learnings of seeing” before a world itself alive…

ABSTRACT: The present essay aims to compose a conceptual and sensitive relation with the problematic of the archive, of the memory and of the image before a world itself alive. It is mobilized by the creation of exercises and experimentations made up with archive images of the artistic creation processes of Coletivo Cê theather group

KEYWORDS: Archive. Memory. Images.


OLIVEIRA, Tatiana Plens. Aprendizagens de ver diante de um mundo todo vivo… ClimaCom [online], Campinas, ano.4, n.10, Nov. 2017. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=7883