Mudanças climáticas e governança ambiental: desafio do Antropoceno


Mariana Delgado Barbieri[1]

Leila da Costa Ferreira[2]

 

Desafios do Antropoceno: introdução

A Revolução Industrial desencadeou uma série de transformações tecnológicas, econômicas, políticas. Tais mudanças se intensificaram ainda mais a partir da primeira metade do século XX, momento que consolida uma nova época: o Antropoceno.

A estabilidade do sistema planetário vigente ao longo do Holoceno começou a ser perdida a partir da intensa atuação humana, que impacta e transforma a Terra, consumindo cada vez mais recursos naturais, com aumento progressivo na queima de combustíveis fósseis, desmatamento, contaminação de rios e oceanos, produção de toneladas de lixo. Tal alteração no padrão produtivo levou Crutzen e Stoermer (2000) a definirem o Antropoceno como uma nova época geológica e humana na qual o homem é a grande força transformadora da natureza.

A atuação humana passa a alterar os sistemas terrestres, os fluxos de energia, afetando diretamente a natureza. Vincula-se ao Antropoceno a ocorrência das mudanças ambientais, dentre as quais destacamos as mudanças climáticas. As mudanças ambientais referem-se às transformações produzidas pelo homem na ecosfera, afetando a hidrosfera, a atmosfera, a biosfera, a litosfera e a pedosfera (Spring, 2016). Já as mudanças climáticas referem-se à mudança no clima provocada pela atividade humana, distinguindo-se da variabilidade climática, fenômeno de causas naturais (Spring, 2016; IPCC, 2013).

Nesse artigo apresentaremos a necessidade de implementação de uma governança ambiental multiatores, fundamental para atuar frente a complexidade das mudanças climáticas. A sociedade civil passa a ter grande importância por ser um ator que consegue se desvincular mais facilmente de imperativos políticos e econômicos, sendo, dessa forma, um ator fundamental na condução das políticas ambientais do século XXI.

 

Antropoceno e Mudanças Climáticas

A discussão acerca da consolidação do Antropoceno enquanto uma nova era geológica remete à década de 1980, quando os impactos do homem sobre a Terra tornaram-se cada vez mais visíveis (Artaxo, 2014). Popularizado a partir de 1995, com o Prêmio Nobel do químico Paul Crutzen, uma série de artigos e debates passaram a utilizar o termo Antropoceno para se referir ao momento atual, no qual a influência humana se torna visível em todo o globo, conseguindo alterar a dinâmica natural do planeta, tanto na dimensão geológica quanto ecológica (Artaxo, 2014; Stefen; Crutzen; McNeill, 2007; Crutzen, 2002). O Antropoceno representa, então, uma nova era geológica que está mudando a história da Terra (Spring, 2016).

Se a marcação geológica de uma nova Era ainda enfrenta tantos debates entre geólogos, que buscam sinais precisos de alteração provocada pela humanidade nos estratos do Planeta Terra e definição do momento exato do início do Antropoceno (Zalasiewicz, 2008), nas ciências humanas e sociais o Antropoceno é mais facilmente reconhecido se vinculado às profundas alterações na estrutura social advindas com a Revolução Industrial. Entretanto, não basta reconhecer a existência dessa nova época, é fundamental internalizar o conceito e se debruçar às novas relações que surgem, à complexificação da sociedade contemporânea, iluminando pontos ainda obscuros sobre a dinâmica social em um momento no qual a humanidade é a força motriz das transformações planetárias.

O desenvolvimento tecnológico conquistado a partir da Revolução Industrial permitiu o advento da máquina a vapor e posteriormente do motor a combustão, com uso de combustíveis fósseis. Concomitante a isso houve uma explosão demográfica, que se intensificou no século XX (Spring, 2016). O que sucede tais acontecimentos é uma série de fenômenos que intensificaram o uso dos recursos naturais: industrialização; dinamização da economia; novos padrões de consumo; aumento das áreas agricultáveis – necessário para suprir a demanda de alimentos, o que implica em desmatamento; surgimento dos carros, aviões, trens; intenso processo de urbanização; globalização (Artazxo, 2014; Zehr, 2015).

Tais transformações, que colocam o homem como agente principal de mudança do sistema planetário, levaram a um aumento exponencial da emissão dos gases de efeito estufa (GEE), alterando a composição da atmosfera. “Desde 1850, as concentrações de CO2 aumentaram em 40%, as de CH4, em 158%, e as de N2O, em 20%” (Artaxo, 2014). O aumento das emissões promove o aquecimento global a partir da alta concentração de poluentes na atmosfera, alterando o funcionamento dos ecossistemas, provocando aumento no nível dos oceanos, desertificação, maior ocorrência de furacões, tufões e ciclones, aumento da temperatura em diversas partes do globo, etc (Beck, 2010; Giddens, 2010; IPCC, 2013; Ferreira, 2017).

A mudança climática é a dimensão mais urgente, mais grave e mais profunda da crise ambiental do século XXI. É urgente porque resta pouco tempo para estabilizar a concentração de gases de efeito estufa em níveis aceitáveis na atmosfera. É grave porque aumenta significativamente a desertificação, a crise de recursos hídricos e a crise de biodiversidade. Além disso, destrói muita infraestrutura existente, traz grandes prejuízos às atividades econômicas e afeta com severidade as populações pobres do planeta. E é profunda porque não existe solução apenas tecnológica (Beck, 2010, p. 10)

As alterações geradas no sistema global propiciam o aumento dos riscos ambientais, característicos de nossa época, na qual a radicalização da modernidade, o avanço da ciência e tecnologia, o desenvolvimento econômico e a forte industrialização produzem novos riscos que deverão ser enfrentados globalmente, visto que as mudanças climáticas atingem a todos, não podendo mais ser vista a partir de uma perspectiva unicamente local ou como fenômeno isolado (Beck, 2010).

As mudanças climáticas tornam-se um tema-chave para o século XXI: as consequências são incertas, mas indubitavelmente haverá grandes alterações no sistema terrestre. Fruto da complexificação das relações sociais com a natureza, e sua imbricação com a política, economia, tecnologia, informação, as mudanças climáticas são um desafio e demandam um olhar interdisciplinar (Ferreira, 2017). Como alertou Beck, “não existe solução apenas tecnológica” (Beck, 2010, p.10). Isso significa que as respostas às mudanças climáticas devem emergir dos diversos setores da sociedade: um esforço conjunto entre economia, política, ciência, inovação e tecnologia precisa ser criado para mitigar as emissões de gases de efeito estufa, mas também para se adaptar aos impactos dessas mudanças. É preciso o advento de novas relações e estruturas sociais capazes de se adequar à complexidade das mudanças climáticas. Nesse sentido a Governança Ambiental surge como conceito chave para lidar com as mudanças climáticas e mostram um caminho possível para ser trilhado ao longo do século XXI.

 

Governança ambiental multiatores

 

O conceito de governança

Governança é um termo que sofreu ressignificação nas últimas décadas. Distingue-se do mero “governar”, significado associado à governança na década de 1970. Atualmente refere-se a “um novo modo de governar, que difere dos modelos hierárquicos tradicionais nos quais as autoridades de estado exercem controle soberano sobre as pessoas e grupos da sociedade civil.” (Jacobi; Sinisgalli, 2012). Logo, governança ambiental refere-se à maneira, às motivações e às consequências dos assuntos de ordem ambiental e de sua gerência (Bulkeley, 2010), isto é, está diretamente relacionada ao processo político da gestão do meio ambiente, a partir do envolvimento de diversas instituições formais e informais, assim como de grupos sociais, interações, tradições que decidem o processo político e influenciam diretamente na tomada de decisão (Borges, 2017).

A governança ambiental busca amenizar problemas ambientais reconhecidos, a partir da articulação entre as diversas esferas sociais. A governança ambiental requer uma atuação multiescala, multiator e multinível, principalmente para lidarmos com as mudanças climáticas, que demandam ações de adaptação e mitigação. A governança multiescala refere-se principalmente às questões de escala do problema de adaptação às mudanças climáticas, a criação de responsabilidades para a adaptação nos diversos níveis de governança, e em como lidar com a tensão entre escala de governança e o problema da adaptação (Dewulf et al, 2015). É uma efetiva governança que relaciona-se diretamente com a governança multinível, isto é, a governança ambiental, em virtude de buscar soluções para um problema transversal e complexo, deve ser enfrentada nos diversos níveis do setor político: local, regional, estadual, nacional, transnacional, global, que implementam políticas de adaptação e mitigação em seus níveis, mas com resultados que impactam todos os demais níveis (Dewulf et al, 2015; Newell et al, 2012).

Já na governança multiator, os diversos atores públicos e privados desempenham papéis e assumem responsabilidades na governança das mudanças climáticas, que demandam novas formas de arranjos em função da complexidade da problemática ambiental. Ao lidarmos com a dimensão multiatores focaliza-se nos modos de governança, na alocação das responsabilidades públicas e privadas, na interação entre os atores públicos e privados, e nos papéis específicos desempenhados pelas organizações não-governamentais e pela sociedade civil. Quando tratamos desses múltiplos atores nos referimos não somente ao Estado/governo (a esfera pública), mas também às empresas/mercado, ciência/centros de pesquisa, mídia, sociedade civil/ONGs, sendo todos esses atores fundamentais na condução da governança ambiental, e com uma atuação muitas vezes interconectada e com estabelecimento de parcerias e redes de apoio (Dewulf et al, 2015).

As formas modernas de governança extrapolam o papel do Estado: pressupõem a atuação de diferentes atores, com destaque para a sociedade civil, governos e empresas, em diferentes níveis territoriais – local, regional, nacional e transnacional – por meio de diferentes modos de ação e influência, como políticas, normas, declarações internacionais, redes, hierarquias e mercados. A presença e atuação do governo, nas diferentes esferas, é condição necessária, mas não suficiente para qualidade da governança ambiental. (Borges,  2017, p.1)

A globalização, as relações transnacionais, a complexificação dos riscos e a radicalização da modernidade (BECK, 2010) demandam uma transição do governo para a governança. A incapacidade política e administrativa do Estado em enfrentar sozinho os problemas ambientais promove a transição governo-governança, entretanto tal passagem não é politicamente neutra, conforme defende Newell et al:

o processo de iniciar a governança multiator não é politicamente neutro, nem surge do vácuo. Em vez disso, reflete as interpretações concorrentes do desempenho da política: sua efetividade, eficiência, equidade e tentativas de atores políticos para influenciar a direção da mudança política. (Newell et al, 2012, p. 367)

A governança ambiental lança-se ao desafio de limitar o aumento de temperatura em 2°C, em relação ao período pré-industrial. Essa limitação é essencial para se evitar maiores consequências à sobrevivência da espécie humana, assim como é necessária para poupar os sistemas terrestres de maiores desequilíbrios (IPCC, 2013). Para isso é preciso promover um gradual processo de descarbonização da economia, com diminuição no uso dos combustíveis fósseis e incentivo às energias renováveis (REN21, 2017), promovendo uma transição à sustentabilidade.

A governança ambiental deve buscar a implementação de políticas públicas que visem a melhoria da qualidade de vida, a diminuição dos impactos ambientais, a promoção da saúde pública, a partir de uma perspectiva global, afinal, a natureza, os recursos naturais, não são exclusivos de um único país: são bens globais e comuns a todos os indivíduos e espécies do planeta.  Em decorrência, a governança ambiental precisa se constituir enquanto um processo participativo, no qual os diferentes atores e níveis sejam vistos como iguais – e aí se encontra um grande desafio (Jacobi; Sinisgalli, 2012).

Quando os recursos naturais são utilizados por múltiplos atores, as consequências podem ser diversas, desde um uso equilibrado do recurso, até seu esgotamento ou conflitos de gestão e uso. Nessas situações é fundamental a descentralização do processo de governança, evitando a gestão hierárquica top-down e centralizada. Precisa ser estimulada a participação dos sujeitos afetados pelas ações e decisões sobre um recurso, mobilizando mais atores, favorecendo a interação entre eles (Silva; Fraxe, 2012). Nesse momento destaca-se o fundamental papel da sociedade civil.

 

O papel da sociedade civil

Em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Rio 92, introduziu-se no debate ambiental a ideia de governança global multinível e multisetor, que foi incorporada por alguns países a partir da implementação da Agenda 21, mas ainda carece de recursos efetivos para uma implementação global (Jänicke, 2017).

Inicialmente concebida como um modelo de governança para a sustentabilidade, expandiu-se como modelo para proteção climática e economia verde, visando incorporar e mobilizar uma ampla gama de atores em busca de sustentabilidade.

A Agenda 21 foi um resultado direto do crescente reconhecimento de que o desenvolvimento sustentável em uma escala global só poderia ser alcançado através da governança multinível, que tem a capacidade de mobilizar a multidão de atores em diferentes partes do mundo, em diferentes níveis do sistema político global (Jänicke, 2017, p. 109)

Entretanto, a adoção da governança multinível, nos moldes propostos na Rio 92, promovia a coalisão entre sociedade civil e atores governamentais, num claro modelo normativo. Entretanto, a governança climática, pela sua dimensão sócio-técnica, envolve necessariamente interesses econômicos, que precisam estar na coalisão, ao lado da sociedade civil e do Estado (Jänicke, 2017).

É preciso reconhecer os interesses em jogo na relação homem-natureza (Brondízio; Ostrom; Young, 2009), e esses interesses não são exclusivamente econômicos, podem ser políticos, sociais, tecnológicos. Os interesses em jogo, muitas vezes esquecidos ou desconsiderados, são primordiais para se estabelecer a parceria e cooperação necessária para a efetiva implementação da governança ambiental e climática.

Reconhecendo os interesses distintos que estão em jogo é possível avançar para uma cogestão, isto é, uma governança efetiva na qual haja cooperação entre quem tem a maior autoridade na negociação e os demais grupos, desfavorecidos política ou economicamente (Brondízio; Ostrom; Young, 2009). Na cogestão o envolvimento dos diferentes atores possibilita melhor compreensão da complexidade dos ecossistemas e dos arranjos sociais vinculados a eles, conjecturando múltiplas perspectivas, adequando os direitos e responsabilidades de cada ator frente ao sistema apreciado. As negociações entre os atores envolvidos abarcam diferentes níveis e escalas de organização, a partir da criação de relações sociais consolidadas entre eles (Silva; Fraxe, 2012). É preciso que os atores deixem de ser sujeitos isolados, mas precisam constituir redes densas com potencial para ação coletiva, o que aumenta o desempenho da governança, facilitando a circulação de informações e a tomada de decisão. Porém, resta destacar: as redes densas não podem levar à homogeneização dos atores, senão corre-se o risco de diminuir a capacidade de ação coletiva apta para atuar frente ao problema existente.

Outro grande desafio à implementação das políticas climáticas refere-se à dimensão temporal e espacial das mudanças climáticas. A questão temporal está intimamente relacionada ao fato de que a relação causa e efeito das mudanças climáticas possui uma temporalidade que extrapola uma geração humana (Viola;  Basso, 2016). Logo, as ações de mitigação das emissões de gases de efeito estufa não trarão resultados imediatos, entretanto é fundamental para as próximas gerações.

(…) pesquisas comprovam que seres humanos valorizam mais benefícios presentes do que futuros e dedicam mais atenção ao tratamento de questões imediatas em relação a questões futuras (…). Trocar um uso presente – por exemplo, usufruir dos sistemas energéticos e dos padrões de consumo – por um benefício futuro – a mitigação da mudança do clima -, que será, inclusive em proveito de outras gerações, é encarado como um sacrifício gigantesco e resistido por grandes parcelas da população, que precisam receber incentivos para adotar novas práticas. (Viola;  Basso, 2016)

A questão temporal demanda que os benefícios individuais de curto prazo sejam renunciados em favor dos benefícios coletivos de longo prazo, e nesse aspecto, os atores políticos são desafiados, afinal o mandato político de um governante é avaliado com base nas benesses levadas à população, e a opção por novas ações que visem a mitigação das emissões não é passível de visualização a curto prazo, isto é, a população não se sente imediatamente beneficiada. Nesse aspecto, a sociedade civil pode agir propondo novas ações e mudanças de atitude, afinal ela não possui um mandato a ser aprovado ou não. Trata-se de um exercício de conscientização e responsabilização pelo consumo e hábitos de vida.

A outra dimensão fundamental é a espacial: a ação local promove um resultado global. As mudanças climáticas são eminentemente globais, na medida em que o sistema terrestre é único, entretanto as ações locais são mais fáceis de serem promovidas (Viola;  Basso, 2016). O desafio é, por exemplo, minimizar o consumo de combustíveis fósseis em determinada localidade que não sofre com a intensificação dos fenômenos extremos e não tem vivenciado as alterações climáticas localmente. Somente a conscientização global e a preocupação com o futuro da humanidade podem estimular o consumo consciente, mas, novamente, é preciso que os benefícios individuais sejam renunciados em favor dos benefícios coletivos da humanidade como um todo – todas as populações ao redor do globo e todas as futuras gerações.

Para melhor avanço da perspectiva global é preciso que as fronteiras políticas dos países sejam ultrapassadas, em um esforço coletivo de reconhecimento da humanidade como um elemento único, e cada indivíduo deve se perceber como parte desse todo. Para que tal perspectiva seja alcança a sociedade civil transnacional pode significar um importante elemento de governança e conscientização ambiental.

A sociedade civil transnacional, constituída e representada por inúmeras organizações não-governamentais (ONGs), comunidades epistêmicas e diversos movimentos sociais, começou a ter maior reconhecimento internacional a partir da Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável de 2002, ocorrida em Joanesburgo. O encontro estimulou a participação de atores da sociedade civil através de processos inovadores de deliberações multipartidárias e parcerias público-privadas (Dupuits, 2016).

Se a sociedade civil transnacional ainda é extremamente heterogênea e carente de uma efetiva articulação capaz de mobilizar a comunidade internacional de maneira efetiva, no nível local e nacional a atuação da sociedade civil tem demonstrado maior efetividade, tornando-se um ator chave nas negociações e conduções políticas relacionadas às mudanças climáticas.

Diferentemente de outros atores como o Estado e o Mercado, a sociedade civil atua com maior distanciamento dos interesses e jogos políticos e econômicos, encontrando brechas para atuação e conscientização da população. Um exemplo significativo: o movimento Segunda sem Carne (Meatless Monday[3]), criado em 2003, incentiva o não consumo de carne às segundas-feiras, justificado por argumentos de saúde e ambiental. Tal movimento tem se expandido na última década, estando presente em mais de 44 países. Enquanto uma ação da sociedade civil o movimento tem conscientizado os indivíduos sobre a importância da redução do consumo de carne, e tem obtido sucesso. Entretanto, em 2017, o deputado do estado de São Paulo, Feliciano Filho, tentou implementar um projeto de Lei 87/2016 que visava instituir o Segunda sem Carne no estado de São Paulo. O projeto foi aprovado pelos deputados, entretanto o Governador não sancionou a Lei. Tal exemplo demonstra que há maior facilidade para a sociedade civil promover novas ações e atitudes conscientes, enquanto atores políticos ficam sujeitos aos interesses econômicos e políticos, não conseguindo implementar mudanças sem que essas gerem conflitos políticos e de interesse.

Situações como essa demonstram como os objetivos comuns podem levar ao fortalecimento dos atores sociais, construindo uma nova institucionalidade que funcione para além do Estado, mas com efetiva capacidade de articulação e implementação de novas práticas, com formas inovadoras de gestão. O desafio da governança ambiental é a negociação com o elemento político e com o jogo de interesse, em uma clara assimetria de poder, a partir da mobilização de instrumentos que criem credibilidade e faça os sujeitos acreditarem na importância da dimensão ambiental (Jacobi, 2012).

 

Considerações finais

O Antropoceno, enquanto nova era na qual as atividades humanas exercem grande impacto sobre a natureza, demanda a mobilização efetiva para mitigar as emissões e reduzir os impactos cada vez mais visíveis ao meio ambiente.

Os esforços tomados em conjunto nas últimas décadas do século XX mostram-se insuficientes, com efetividade limitada e continuidade das altas emissões de gases de efeito estufa. Os acordos internacionais, sancionados pelos diversos países, não mobilizam adequadamente os diversos atores que precisam estar envolvidos numa efetiva governança ambiental.

Baseado num modelo hierárquico, com claras assimetrias de poder, e ausência de clareza sobre os níveis de corresponsabilização dos atores, a governança da maneira como está constituída é insuficiente para responder adequadamente aos desafios que as mudanças climáticas impõem à sociedade global do século XXI.

É preciso refletir: para quem os acordos estão sendo formulados? Quais as partes estão efetivamente envolvidas nas tomadas de decisão? Os interesses em jogo estão sendo reconhecidos?

É crucial a necessidade de se consolidar novos espaços institucionais aptos a promoverem o diálogo entre os diversos atores, a partir de relações mais democráticas, com instâncias consultivas e deliberativas capazes de fortalecerem as políticas ambientais. Ademais, a problemática ambiental não é apenas política de governo, por isso não bastam os acordos entre chefes de Estado, é preciso que os indivíduos também sejam parte desse acordo.

A transição necessária, nesse momento, implica superar a força humana como motriz das transformações da natureza. É fundamental que os hábitos de consumo e os padrões de vida sejam repensados, para que alcance uma efetiva sustentabilidade, capaz de garantir a sobrevivência da espécie humana e o respeito ao ambiente. Essa transição só é possível a partir da participação irrestrita de todos os atores sociais, onde a corresponsabilização seja  condutora dos processos de mudanças e criação de novos hábitos. A educação ambiental é o primeiro passo para a conscientização individual da responsabilidade de cada um perante o planeta, enquanto a governança multiatores é o caminho pelo qual o futuro passa a ser decidido.

 

Bibliografia

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Recebido em: 15/06/2018

Aceito em: 15/07/2018


[1] Mariana Delgado Barbieri possui bacharelado em ciências sociais (IFCH-Unicamp), mestrado em sociologia (IFCH-Unicamp) e atualmente faz doutorado em ambiente e sociedade (Nepam-Unicamp). Pesquisadora do Laboratory of Social Dimensions of the Global Environmental Changes in the Global South (LABGEC – Nepam-Unicamp) e membro da Associação Brasileira de Estudos Chineses. Possui interesse em sociologia ambiental, mudanças climáticas, Movimentos Ambientalistas e Estudos sobre a China.

[2] Leila da Costa Ferreira é professora titular de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Membro do Conselho Superior do Nepam-Unicamp. Representante da UNICAMP WUN Global Challenges- Adapting to climate change. É membro da International Sociological Association (ISA). É membro do Associate Faculty do Earth System Governance Project (IHDP). Foi professora visitante da Universidade do Texas/ UT no ano de 1998 e professora visitante no Programa Top China na Universidade Jiao Tong em Shanghai, China. Durante sua carreira, recebeu mais de 30 financiamentos de pesquisa das principais agências de fomento à pesquisa no Brasil (FAPESP, FINEP, CNPQ e FAEPEX-UNICAMP) e vários financiamentos internacionais.

[3] http://www.meatlessmonday.com

Mudanças climáticas e governança ambiental: desafio do Antropoceno

 

RESUMO: A governança multiator mostra-se fundamental para atuar frente às mudanças climáticas, fenômeno característico do Antropoceno. Reconhecer o papel desempenhado pela Sociedade Civil, Estado e Mercado é etapa necessária para implementar uma efetiva governança ambiental, elemento fundamental para promover a mitigação das emissões de gases de efeito estufa e a adaptação às mudanças climáticas. O Antropoceno, marcado pela atuação humana como força motriz da transformação do planeta, mostra-se como um desafio para os diferentes atores políticos, econômicos e sociais, que precisam se mobilizar para superar o atual estágio de deterioração do meio ambiente provocado pela atividade humana. As relações assimétricas de poder existentes no atual modelo de governança dificultam uma ação efetiva capaz de promover a superação dos desafios do Antropoceno.

PALAVRAS-CHAVE: Mudanças climáticas. Governança. Antropoceno.

 


Climate Change and environmental governance: Anthropocene Challenge

 

ABSTRACT: Multiactor governance proves to be fundamental for dealing with climate change, a characteristic phenomenon of the Anthropocene. Recognizing the role played by Civil Society, State and Market is a necessary step to implement an effective environmental governance, capable of promoting the mitigation of greenhouse gas emissions and adaptation to climate change. The Anthropocene, marked by human activity as a driving force for the transformation of the planet, is a challenge for the different political, economic and social actors who need to mobilize to overcome the current stage of deterioration of the environment caused by human activity. The asymmetric relations of power existing in the current model of governance hinders an effective action capable of promoting the overcoming of the challenges of the Anthropocene.

KEY WORDS: Climate change. Governance. Anthropocene.


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BARBIERI, Mariana Delgado; FERREIRA, Leila da Costa. Mudanças climáticas e governança ambiental: desafio do AntropocenoClimaCom – Diálogos do Antropoceno [Online], Campinas, ano 5,  n. 12,  ago.  2018 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=9511