De lobos e dragões: tributo a Gilles Deleuze e Félix Guattari


 

Marcelo Ribeiro dos Santos[1]

 

O que poderia surgir primeiro que não o sonho? Mas sonho acordado, miração intrusa que se despe em estranhas roupas: pequenos fantasmas flexíveis e multiformes, vestidos de intensidades, fluxos, cores. Pequenos fantasmas que andam em uma paisagem de cidade pequena com casinhas e árvores. Raízes, troncos, casas, caixas e os pequenos fantasmas que perambulam nômades pelas vielas. Nos seus corpos sem órgãos, fantasmáticos, somente as faixas de intensidades marcam estrias, mas estrias alegres de arco-íris. E o que fazer com a visão? Interpretar, talvez? Interpretar alivia e todos ficam confortados. Será terapêutico descobrir o que essas pequenas figuras querem me dizer? O fantasma gigante de Freud ronda meus pequenos fantasmas coloridos tentando arrebanhá-los em padrões fisiológicos. Alegoria de fezes? Mas é aonde sempre chegamos quando interpretamos, não é? Fezes. Não me serve. Defecar somente não me serve. Os montículos fedorentos são ainda muito diferentes de meus pequenos fantasmas ambulantes e multicoloridos. Pequenos pintos excisados então? Castração? O Édipo que me cega e me impede de seguir um Mestre? Ou seguir rebelde sem rédeas, sem o mal estar da civilização? Mas também não me serve seguir ou não seguir. O que me serve? Faço a pergunta aos meus fantasminhas arco-íris. E eles me respondem: “Na pergunta de lobo fazemos matilha. Brotamos de teus poros como lobinhos moleculares.” Como lobinhos? “Faça lobinhos! Fiat Lupini!” E surgem os Lupini:

“Coloque jornal picado de molho de um dia para o outro

Triture o jornal molhado com um garfo.

Coloque o jornal triturado para ferver, triturando mais com o garfo enquanto ferve

Ferva e triture até o jornal adquirir consistência pastosa e sem grumos

Alternativamente, pode-se bater no liquidificador a massa fervida e diluída em água

Filtre a pasta de jornal já resfriada em um pano, espremendo quase toda a água

Misture uma colher de sopa de farinha de trigo para cada 50 gramas da massa

Misture muito bem com as mãos, até não se diferenciar a farinha da massa de jornal

Coloque a massa de farinha e jornal em uma panela e aqueça em fogo alto

A farinha irá se coagular dando consistência lisa e maleável à massa

Se necessário adicione mais água enquanto a massa cozinha

A massa deve atingir a consistência lisa e flexível de massinha de modelar”

Agora pego esta massa lisa e moldo pequenos lobos. Deixo secar na sombra em temperatura ambiente por vários dias chuvosos, afrontando minha paciência que os quer prontos. Os Lupini vão surgindo eretos e vigilantes. Mas meus fantasminhas comandam: “Cores!” Vou comprar tinta acrílica e faço testes com diversos padrões. Posso fazer um sistema de oito colorações. Divertido isso. O número do infinito. Mas aqui ele só enumera meus limites criativos. Oito padrões: fundo homogêneo, fundo policrômico, fundo homogêneo decorado, fundo policrômico decorado, pátina, pontilhado, splash, paisagem. Uso os Lupini como tela. Experimento também pinta-los realisticamente como lobos. Padrões ensinam, padrões exercitam, padrões treinam, mas padrões não libertam. Sei que terei que me libertar disso, mas por hora a brincadeira me faz cócegas. Crio tradições. Crio escolas, mas só para joga-las fora. Começo a romper as amarras. Começo a esquecer de minhas garras rígidas de lobo, tornando-as mais poderosas. Aumento o tamanho do lobo. Porém a massa mole cede com o peso e suas patas ficam grossas como patas de buldogues. Não é possível fazer Lupini grande. Preciso de algo achatado para crescer. Um lagarto. Moldo um iguana. Conheço iguanas. Criei iguanas. Ainda preciso do que conheço. Lupini e iguana confraternizam em minha louca escola.     

Mas só posso criar figuras pequenas, ou maiores e achatadas. Atingi o limite dessa massa. Coisas minúsculas e rasas clamam por coisas grandiosas. Quero crescer. Quero voar. Ingênuo e bobo, ainda creio que é a técnica que irá me redimir. Ingênuo e bobo, ainda planejo e penso em linhas, em fórmulas, aprendiz de feiticeiro que ainda acredita nas normas. Mas aqui esbarro em muros físicos e me revolto. Quase desisto. Ah, mas meus fantasminhas me assombram, passeiam faceiros nos volteios de meu dia a dia. Mostram sua carinhas fugidias, que nunca vejo de fato, e exortam-me a seguir. Tenho mais o que fazer, oh fantasminhas! Sou acadêmico, anêmico, epidêmico. Não vão me deixar em paz? Ao menos me digam por onde ir! “Dizer por onde ir? Rir, rir, rir.” Estão debochando de mim? Digam-me a fórmula mágica! “Só há fórmulas trágicas. Queres seguir? Deves deslizar, incorporar, romper, fugir. Encontraste um limite. Estás triste? Não, não. Deves gaguejar e rir, rir, rir.” Como rir e deslizar no limite? Como ser linha de fuga? Pergunto novamente a meus fantasminhas o que desejam. Respondem: “De nosso desejo podemos falar. Desejamos o inumano. Até agora usaste o jornal, estrato humano da cultura que nada é senão massa. Usaste também o estrato biológico da farinha, corpo vegetal pulverizado que se coagula no calor. Tens ainda outro estrato mais distante e próximo de ti. O estrato mineral molecular que se cristaliza em molar.” Penso então em pedras. Massa de pedras. Cimento. Busco cimento. Na massa pronta acima descrita misturo uma colher bem cheia de cimento comum de construção para cada porção de 50 gramas. Amasso bem até a massa ficar homogênea. Moldo então o primeiro dos Guardiões. A massa ainda mole obriga-me a fazê-lo deitado, porém bem maior que os Lupini. Posso erguer um afilado pescoço de cisne e orelhas finas e eretas. Não é mais lobo. Mistura de cão e cavalo, deitado como esfinge. Guardião de que? Eu sei: quero um ídolo que me guarde de errar. Coloco-o para secar. Um dia. Uma semana. Duas semanas. Ainda úmido e mole. Meu pequeno filho curioso quebra-lhe a cauda com um toque leve. Frustrado, arremesso o primeiro Guardião despedaçado no mato. Mas o que falta? Traíram-me, fantasminhas? Estão a debochar de mim? “Para de choramingar, pois aqui teu trabalho se torna violento. Como queres criar sem violência?” Mas sou pacífico, cívico, físico. Treinaram-me para ser bom. Querem me despir de meu treinamento também? Querem que eu viole minhas normas? “Como poderás criar sem violência? Queres criar? Sim, abdica de teus medos mesquinhos.” Mas de que violência se trata? Seriam vocês demônios ou algo assim? “Se assim queres nos ver, que assim seja.” Então, do fundo de meu inferno, respondam-me. De que violência se trata? “Que mais senão fogo?” Mas fogo não vai rachar o cimento? “Experimenta. Erra.” Moldo então o segundo guardião, quase idêntico ao primeiro. Temeroso, coloco-o no forno a 180°C. Queima por duas horas e sai triunfante, rijo e sem rachaduras. Pinto-o inteiro de preto como Anúbis, deus dos mortos egípcio. Após algumas semanas começa a mofar em reentrâncias ainda úmidas. Faço o segundo Guardião. Aumento a temperatura do forno para 220°C. Sai excelente e seco. Pinto-o de marrom avermelhado em homenagem ao fogo. Dou-lhe o nome de Xolotl ligando incas e egípcios em uma mesma Atlântida. O cão vermelho acompanha os mortos americanos. Não mofa mesmo após semanas de tempo úmido. Então, muito seguro, faço o terceiro Guardião: Tatanka, o cão branco dos ameríndios.

Os guardiões são hieráticos, quase idênticos. Esfinges na transição para a realidade. Dou-lhes coleiras em relevo de tinta dourada. Quero figuras realistas. Exploro outros cães deitados. Buldogues me convêm, com suas feições brutas e fortes, sem extremidades finas. Posso gastar meu tempo moldando sem que a massa comece a achatar-se. Animal de combate, submeto-o à temperatura máxima do forno: 280°C. Sai forte e rijo após duas horas, porém com uma grande bolha no dorso. Conserto a bolha com mais massa, que adere bem, e faço o teste a 250°C. Sai perfeito, dessa vez sem bolhas. Tenho a temperatura correta. Dominei o fogo. E agora? “Deves dominar a gravidade. Queremos voar.” Mas como assim? Pedem-me o impossível. “Pedimos-te o incompossível. Experimenta.” Começo cauteloso, ainda com um cão deitado e realista, porém de traços finos e orelhas eretas. Podengo. Um vira-lata brasileiro. Experimento com a textura dos pelos. A massa sustenta estruturas delicadas e de pequenas dimensões no corpo, mas o corpo em si não se levanta. Penso em suportes. Arames. Esqueleto de arame. Parece bom. Experimento com ousadia. Voarão, fantasminhas! Tento fazer um dragão. Primeiro o esqueleto de arame. A massa cuidadosamente preparada, parto para a moldagem. Impossível. A massa se esfacela sobre o arame. O arame deforma-se com o peso da massa. Preciso recomeçar com humildade. Faço um Buldogue apenas sentado. Ainda com a ideia de suportes, muletas, faço uma estrutura de lata de alumínio recortada. Um trapézio sob a barriga do cão, sustentando suas patas dianteiras. Parece bom na moldagem. Levo ao forno, ansioso. Retiro cedo demais, a massa ainda um pouco mole. Tiro o suporte para ver o primeiro cão se levantar. Junto vem sua perna direita. Desastre! Lembro-me da bolha que consertei e remendo a perna com massa fresca. O buldogue volta ao forno. Após mais uma hora sai perfeito. A perna remendada ainda mais firme que a original. A emenda melhor que o soneto. Faço então um Podengo sentado, de traços delicados e pernas mais finas. Mesmo com o suporte, suas pernas deformam-se e achatam-se. Podengo com pernas de Buldogue. Pinto-os todos de maneira simples, despojada: fundo homogêneo e fundo policrômico. São cães do sítio.

Parece que cheguei ao limite. Muito longe de voar. Como realizar o impossível? “Erra. Dá voz ao erro. Cria com o desastre.” O erro. O desastre. A perna arrancada. O desmembramento. A luz repentina: “Tens uma massa obediente, que podes desmembrar e reunir conforme tua vontade. Tudo que precisas é de massa fresca e um forno quente.” Ouso então novamente um dragão. Um dragão sentado ainda, feito com suporte de lata como os cães. Porém faço buracos em seu tronco e moldo duas asas desmembradas. Asas finas e abertas. Coloco no forno, separados, o dragão e suas asas. Após uma hora, já rijos, porém ainda úmidos, reúno as partes com massa fresca, encaixando as asas nos buracos do corpo. Incorporo as asas ao dragão. Completo, ele volta ao forno. Mais uma hora e sai lindo, com suas asas abertas e voadoras. Mas está sentado. Um dragão cão, ainda adestrado. O movimento me pede: “movimenta”. Quero flamas. Quero fogo. Uso a técnica da pátina sobre fundo homogêneo preto para dar-lhe cores. Com a pátina posso fazer seu corpo em chamas. Dou-lhe um nome: Fogo da Noite.

Seu corpo negro refulge em brasas. Seus olhos brilham vermelhos. Suas asas têm cristas douradas. Fogo da Noite, filho do erro, abolição do correto, ebulição de afetos ainda ancorados, ancorados no chão. Mas seu coração já voa, levando consigo minha cora ação. Entendi, fantasminhas! Para voar não se pode ser certo, não se pode jogar fora o que é fluxo aberto. É necessário quebrar, fracionar, perder o inteiro, assumir as partes, esquecer das artes. Para voar é preciso abrir, esticar, arrebentar, queimar. Colar só depois. A bricolagem voa e essa lição não se aprende nas séries, não se aprende no sério. É preciso brincolar. E vamos brincar. “Agora podes fazer o que quiseres.” Faço então outro dragão. Faço-o parte a parte, desmembrando, rompendo quebrando e reunindo no forno a cabeça, chifres, pescoço, asas, pernas, corpo, cauda e o fogo que ele sopra. Fogo fixo. Fogo contrário do fogo. Fogo que endurece ao fogo. O resultado impressiona, move-se, lança-se em voo.  Levanta-se, batendo as asas em meio a um passo, soltando fogo pela boca, com seu pescoço sinuoso em movimento endurecido. Movimento concretizado, solidificado, cristalizado. Imagem cristal leve e voadora, sinergizando com seu fogo estático novas conjunções moleculares, cristalizando novos incompossíveis. Chamo-lhe Raio Turquesa, com sua pele azul metálica/prateada, texturizada em escamas, e seus chifres dourados.

“Já podemos voar. Que farás agora?” Mas não sou eu quem pergunta? Meus fantasminhas me respondem com silêncio. Estão felizes. Não precisam mais de mim. Estou feliz. Mas como responder à pergunta deles? Que farei agora? Um dragão pipa que voe realmente? A massa pode ser moldada bem fina e é leve devido ao papel. Com asas grandes, no tamanho certo, funcionará. Porém meu forno é pequeno. Não posso fazer asas grandes e o passo é tedioso, óbvio demais. Os fantasminhas já voaram. Esgotou-se então o poder da massa? Vem outro sonho e meus fantasminhas querem agora corpos. Nada me dizem, mas querem que os pedaços sejam um todo e não partes. Vem em notas como um hino de pautas móveis e como imagens de pingentes, para serem levados junto ao coração. Talismãs. Conjuradores da sorte, emuladores da morte, moléculas que dançam e vibram sem um corpo, cantando nos corpos de outros, ritornellos de paz e proteção. Aproximo-me das pessoas. Faço com minha massa obediente fragmentos de sonho. Cada fragmento deve ser retirado sem pensamento, sem plano. Os pequenos fluxos reencarnantes não gostam da consciência e do cálculo. São amigos do impulso. Precisam ser puxados sem dó nem permissão. Minúsculos pensamentos violentos, sem regras, sem tino, sem destino claro. Meu movimento é só de excisão. Sacrificador extático arrancando monturos de estética sem ética. Estética sem chavão. Beleza que surge de um relâmpago de nervos, de um espasmo de músculos. Não há contemplação. Há ação. Não há reconhecimento. Há pequenos grumos disformes de papel, farinha e cimento. Dizem formas. Não sou eu quem digo. Pequenos grumos excisados ao sabor da intuição. Ação sem dentro e sem fora. Atuação. A tua ação. A violência que não pensa, mas gera pensamento. Levo-os ao forno. Pinto com todas as cores e memórias que o momento me dá. Pinto como um louco. Só é possível pintar como um louco. Sujo potes, misturo motes, jogo gotas intrusas em poças homogêneas. Curvas criam caminhos de lama, de alma, de plumas falsas de colibri, de arranjos súbitos, desarranjos lúdicos. Pintar assim liberta. Não há o esfalfamento da regra gradual, da medida, da onda contida. São micro-terremotos sangrando ouro, prata, mata, mar e fuligem. Jóias preciosas onde se incrustam pedras, troncos, sementes, luzes semoventes. Uma nova ourivesaria mais rústica e simples. Ornamentos sem símbolos. Beleza que se move, que comove em quem se move. Tribos de arabescos. Alcatéias de uivos, onde não há mais lobos. Só o arroubo de partir, parir, abortar. Espíritos desgarrados e bruxuleantes daqueles Lupini antes imóveis e imbuídos de regras. Arte nômade por excelência. Quero espalhar fluxos ágeis. Quero beber de fontes frágeis, criando em cada gole um mar de sede de uma água que não sacia. Água corada de tinta. Tinta corada de água. Realizo. Pequenos seres coloridos andam por aí, sentindo o pulsar de corações próprios. Pequenas estrelas sem céu que me alimentam, atentam, falam comigo. “Mas as estrelas falam?”, pergunta o poeta, agora sem meta. Falam com todos. Falam de todos. Falam em todos. Mas falar já não basta e escrever castra. Só posso gaguejar, falhar e assim criar. Só posso entoar meu ritornello violento: Experimente. Erre. Crie com o erro. Não siga. Não deixe de seguir. Voe. Caia. Voe.

De Lobos e Dragões fig 6
Recebido em: 15/02/2018

Aceito em: 15/03/2018


 

[1] Laboratório OLHO. Faculdade de Educação, Unicamp. Doutorando. jorgeodaragao@yahoo.com

 

De lobos e dragões: tributo a Gilles Deleuze e Félix Guattari

 

RESUMO: Um processo que começa com visões de pequenos fantasminhas coloridos. Loucura? Imaginação? Como lidar com isso? Em um fluxo traduzido na linguagem poética/filosófica de Gilles Deleuze e Felix Guattari, faço com que meu corpo converse com esses fantasmas mutantes e torne-se massa de papel velho, farinha e cimento; resto industrial, resíduo quebrado e alquebrado que renasce do fogo como Fênix, ergue-se vagarosamente do chão, tropeça, fragmenta-se e se torna mais forte. Devir lagarto, devir lobo, devir dragão, devir humano, que faz com que a beleza possa voar e estar próxima aos corações. Reciclagem? Reiniciclagem.

PALAVRAS-CHAVE: Reciclagem. Deleuze. Guattari. Massa. Devir.


On wolves and dragons: tribute to Gilles Deleuze and Félix Guattari

ABSTRACT: A process which starts with a vision of little colorful ghosts. Madness? Imagination? How to deal with this? In a flow translated to the poetic/philosophical language of Deleuze and Guattari, I engage my body in a conversation with these mutant ghosts and it becomes an aggregate of old paper, flour, cement; industrial waste, broken leftover and over, which is reborn from fire as a Phoenix, raising slowly from the ground, stumbling, turning to pieces and becoming stronger. Becoming lizard, becoming Wolf, becoming dragon, becoming human, who makes beauty fly and keep close to our hearts. Recycling? Reinicycling.

KEYWORDS:  Recycling. Deleuze. Guattari. Aggregate. Becoming.


SANTOS, Marcelo Ribeiro dos. De lobos e dragões: tributo a Gilles Deleuze e Félix Guattari. ClimaCom [online], Campinas, ano 5, n. 11, abr. 2018. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=8882