Notas de um encontro: “Aliar-se às nuvens para que o céu não caia”

TÍTULO: Notas de um encontro: “Aliar-se às nuvens para que o céu não caia”


Um congresso

VII React – Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia

Universidade de São Paulo, abril de 2017

 

Uma proposta de Seminário Temático (ST)

ST3: Aliar-se às nuvens para que o céu não caia

Susana Dias e Sebastian Wiedemann

Resumo: O título deste seminário já traz implícita a triste herança que tem nos deixado a modernidade, um hábito por dividir (Stengers, 2012) decorrente do que Whitehead chama bifurcação da natureza (1920) e que tem alimentado nossa crença de que estamos sozinhos no mundo, de que o solipsismo é o único modo possível de estar no mundo. Queremos resistir a esta herança das luzes com trabalhos que afirmem que não estamos sozinhos e que, antes que estar no mundo, estes tempos catastróficos nos impõem a estar com os mundos. Para quem nunca perdeu uma intimidade e conexão efetiva com o mundo como os Yanomami, o céu pode cair (Kopenawa, 2015) justamente porque nós, os brancos, nos sentimos alheios a ele e a todas as possíveis relações que dele se desprendem. Como as infinitas linhas por onde a vida prolifera (Ingold, 2015), forças anímicas que se agenciam com as nuvens, mas também com a chuva, a floresta, o rio, os cantos e o próprio pensamento. Este aliar-se com as nuvens é aliar-se com tudo aquilo que não deixa cair o vivo, dispondo-se como superfície de contacto e interseção para que o vivo continue em movimento. Uma aliança que acontece como possibilidade construtiva dos mais impensados encontros multiespécies (Haraway, 2016; Van Dooren et al., 2016) e da emergência de modos de existência (Latour, 2012), onde o humano se abre a uma certa leveza, transmutabilidade e multirelacionalidade, fazendo da potência de pensar um gesto menor e pluri-ontológico – entre artes, ciências, filosofias. Um convite a estar a céu aberto, sem medo de que ele caia.

Palavras-chave: humano; vida; animismo; estudos multiespécies; bifurcação da natureza

 

Os trabalhos inscritos

1. Gênero e corporalidade Mbya-Guarani, de Luna Mendes.

2. A representação da tragédia de Mariana. Fotografias enterradas e imagens sobreviventes, de Marcela Vasco

3. O mundo comporta muitos mundos, Rafael Alves da Silva.

4. Tornarmo-nos Terranos no Antropoceno: estamos atrasados?, Raphael Vianna Mannarino Bezerra.

5. Acabar com o mundo, torcer o mundo, Rita Cláudia Ribeiro Mendes Natálio.

6. Afutur-ar a vida: experiências de cultivo com palavras e imagens, de Tatiana Plens Oliveira.

7. “Ser gente”, “estar gente”: a “humanidade” em relação na ontologia dos Candomblés, de Thomás Antônio Burneiko Meira.

 

Uma mensagem antes do evento

Caros Colegas,

Ficamos muito felizes por vosso interesse no ST que propusemos.  

A nossa ideia inicial é fazer do espaço muito mais um lugar onde proposições especulativas de futuro possam emergir, do que um simples comunicar das pesquisas singulares de cada um. Nesse sentido, almejamos nos deslocarmos do lugar de mediadores, para o lugar de promotores de imediações, promotores de espaços intermediários entre vossas potências de pensamento que possam dar lugar a proposições que nos des-orientem nos modos como  podemos nos aliar ao cosmos. Maquinar, fazer funcionar vossas potências de pensamento, como ferramentas em prol da instigação que move este ST, que para nós é antes de tudo um espaço de experimentação e composição material e especulativa…

 

Uma leitura para abrir o encontro ao caos

No poema Caos em poesia Lawrence nos diz “A qualidade essencial da poesia é que ela faz um novo esforço de atenção e descobre um novo mundo dentro do mundo conhecido. O homem, os animais e as flores todos vivem para sempre dentro de um estranho e emergente caos. Chamamos de cosmos o caos com que nos acostumamos. Ao inefável caos de que somos constituídos chamamos de consciência, e mente e até civilização…”. Em outro trecho: “O homem precisa embrulhar a si numa visão, fazer uma casa com uma forma visível e com estabilidade e fixidez…”. O homem pensa, portanto, em barrar o caos, em proteger-se do caos, com o guarda-sol do hábito, dos modelos de verdade e da inteligência. Lawrence clama por um rasgão aberto e selvagem no guarda-sol. “O desejo pelo caos é a respiração da sua poesia. O medo do caos está no desfile de formas e técnicas”. Clama por uma exposição à catástrofe do encontro com as coisas-seres-do-mundo, ao invés de nos guardar-nos de relacionarnos. Um problema insular, que envolve uma abertura a perspectivas não-apenas-humanas, que suspendam nossas possibilidades de exercitar o poder da exclusão, ressentimento e julgamento. Uma exposição selvagem, alegre e potente ao destino, ao futuro, sem medo, e com uma forte confiança num sabe-se lá o quê pode um corpo, uma vida, quando pensados e experimentados como movimento infinito de caleidocópicas relações com as coisas-seres-do-mundo, entre os quais também estão seres ancestrais, entidades mitológicas e comunidades de forças espirituais. Se estar junto é o único modo de resistirmos a nós mesmos e ao capitalismo, a todas as forças que nos querem débeis, temerosos e medíocres, a celebração de um encontro não pode se dar entre iguais, entre semelhantes, guardado em torno de verdades que tristemente nos aderem aos grupos, famílias, reinos já existentes. A questão do encontro é a da criação de um estar junto que não existia antes, em que não existimos como antes, em que comunidades muito distintas, sob lógicas também distintas, se reúnem. É o problema de nos abrirmos a uma “conversa interestelar entre estrelas bem desiguais, cujos devires diferentes formam um bloco móvel que se trataria de captar, um intervôo, anos-luz” (Deleuze; Parnet, 1998, p.14). Conversação interestelar que tem como espaço-tempo privilegiado de experimentação o papel: o papel-livro, papel-fotografia, papel-revista, papel-tela-do-cinema, papel-pintura, papel-tela- do-computador, papel-tese-dissertação-pesquisa, papel-tessitura-bordado… O papel como uma superfície potencial de um pensamento-Terra, de uma experimentação-natureza, de uma escrita-vida, cujos limites não são as condições de uma época, as propriedades e estados das coisas, mas os devires que podem desatar todo um novo campo perceptivo. O papel como um microlaboratório de montagens sensíveis, de uma conversação nômade, a cada vez diferente, capaz de esvaziar o que há de humano demais em nós e de nos lançar numa aventura povoada por um coletivo de forças sem nome. Onde a linguagem, como diz Vladimir Safatle, encontra seu ponto de colapso. O papel como um tabuleiro cósmico que nos expõe ao papelar, devorando qualquer possibilidade de guardar-nos no jogo das sintaxes pré-definidas e das gramáticas audiovisuais dominantes, porque a pergunta que o papel nos coloca é: como celebrar composições sensíveis que inventem um modo de estar junto em tom menor? Um chamado a cultivarmos EntreVidas, fazermos do estar junto um problema de insular, como propõe Carlos Mondragon. Problema que nosso grupo de pesquisa no Labjor-Unicamp – o multiTÃO – experimenta na revista ClimaCom, que busca abrir bons encontros entre conhecimentos, procedimentos, materiais e forças distintas. Encontros que gerem escapes desde dentro das gramáticas dominantes da comunicação. Desejos de afirmar que comunicar é proliferar encontros entre heterogêneos, inventar novos campos sensíveis. Um intenso querer o encontro como criação de relações moventes, abertas, estranhas, indígenas. Relações que nos expõem a percepções distintas do humano, do conhecimento e da Terra. Num juntar atento aos modos como as relações entre-imagens, entre-sons, entre-sons- imagens, entre-palavras-sons-imagens, entre-linguagens podem escapar aos funcionamentos ilustrativos e metafóricos e se lançar ao desafio diagramático do estar junto: nada está dado antecipadamente, nada pode ser submetido a uma realidade dada e preexistente. Com isso quero suspender as apostas cosmopolitas que insistem que o estar junto, o comum, já existiria antes e que bastaria reconhecermos esse comum já preexistente. Convocar assim uma catástrofe de outra natureza: a dos encontros capazes de gerar uma torção nas lógicas representacionais, desmoronar os funcionamentos dominantes e deixar que uma alegria epidêmica, virulenta, as afete. Atingir uma certa “condição oceânica” do problema de estar junto, onde não há limite nem contenção, onde se experimenta o abismo físico de uma matéria-sentido do encontro em constante formação. Onde o problema do papel torna-se o de inventar-se como passagem, dobra, labirinto em que problemas, procedimentos e materiais se nomadizam para fazer possível uma composição de heterogêneos. Não mais a investida em localizar conhecimentos e práticas menores, mas a experiência do menor como uma certa condição climática a ser aberta, a cada vez, para celebração no papel de um acontecimento: estar junto. Precisamos do que tais celebrações podem transmitir: “a experiência de uma conexão potente entre política e produção experimental de uma capacidade nova de agir e pensar”, como diz a filósofa belga isabelle Stengers (2015), porque não somos impotentes, mas temos sido reduzidos à impotência. Criar um interesse pelo que quer que seja passa por elaborar materiais que explorem “o pensar juntos como ‘obra a ser feita’” (Stengers, 2015, 2002). É preciso elaborar um material de pensamento capaz de captar a miríade de forças em jogo e fazer do próprio pensamento uma força do Cosmos (Deleuze; Guattari, 1997). Estando num laboratório que pensa a comunicação trata-se, a cada dia, de mudar o foco da atenção da comunicação para a vida, para que um novo campo problemático se estabeleça em que não se trata de comunicar algo já dado mas colocar-se em comunicação com um mundo todo vivo e um mundo todo vivo tem “a força de um inferno”, como já dizia Clarice Lispector, como dizem os climatologistas sobre as nuvens de chuva. Parece-nos, cada vez mais, que a possibilidade de entrar em comunicacão con um mundo todo vivo só acontece quando o homem deixa de ser o centro dos processos comunicacionais, quando se deixa povoar por forças inumanas, quando aprende a sonhar outros sonhos e suspende com o funcionamento triste do antropocentrismo. Agradecemos pelos textos enviados, oportunidade única de estar junto com pessoas que também têm, de modos distintos, preocupações como as nossas. Queremos fazer deste um encontro um labirinto, talvez na vontade de aprender com os peixes de água doce, os Anabantoidei, a poder circular entre-reinos, a abrir respiros para continuar nos ambientes sufocantes. Estes peixes trazem dentro de si labirintos, que são sistemas respiratórios aberrantes, orgãos muito muito dobrados, e que os permitem aproveitar o oxigênio do ar que engolem pela boca e não apenas o oxigênio dissolvido na água que passa pelas brânquias.

Susana Dias

 

Compondo uma mesa de trabalho especulativa

Tendo como inspiração o Currículo Antropoceno, organizado pelo Instituto Max Planck para História da Ciência e a Casa das Culturas do Mundo de Berlim, almejamos a que este ST seja uma plataforma post-disciplinar que abra possibilidades para algo que poderíamos chamar de “conhecimento terrano”, como modo de relação com as coisas-seres do mundo onde a pergunta pela vida, pela continuação da vida para além de nossa condição humana demais se torne um imperativo, se torne a possibilidade de um comum, ou ainda, como escutamos neste REACT na voz de Starhawk, se torne “algo sagrado”. Se para alguns o que nos impõe a necessidade de um estar junto é a catástrofe e o fim do mundo, para nós o que nos instiga a compartilhar uma mesa comum de trabalho é o desejo de uma cosmogênese constante, é o desejo da proliferação de gestos cosmopolíticos e cosmopoéticos, de gestos criativos que sempre são aberturas para novas ecologias de práticas e relações impensadas onde a vida pode germinar, onde a vida-cosmo re-nasce toda viva sem receio de extinção. É, o que acolhendo o pensamento Yanomami como modo de “conhecimento terrano”, chamamos de “Aliar-se às nuvens para que o céu não caia”. O que há de animista nas ideias que nos povoam e passam por nós, que nos ajudem a não deixar cair o vivo?

Propomos que acolham o fato que um “conhecimento terrano” por vir é antes de tudo uma prática de fabulação especulativa. Propomos que acolham a possibilidade de levar a cabo um trabalho de campo que acontece em um cenário especulativo e generativo onde se abrem modos inorgânicos de fazer continuar e variar a vida e o humano.

O cosmos como dobra infinita e fractal. O céu como dobra da terra. E, porque não, o labirinto como dobra das nuvens que pode acontecer entre mãos-papel-escrita-desenho. Linhas e fluxos que se complicam, que se dobram no curvar-ondular do labirinto, como espaço-tempo meditativo onde podemos nos concentrar e concentrar a energia-vontade-potência de não deixar cair o céu, de não deixar cair o vivo.

Abrir a matéria-texto, abrir vossos textos, para que a energia vital contida neles entre em fluxos de sistemas complexos, onde o pensamento é de todo mundo, de qualquer um, de um possível comum. Fragmentos, arquipélagos, potencialidades de um labirinto a ser desdobrado, a ser criado. Uma comunidade, um comum-atuar de labirintos, de emaranhar a vida, o céu e o humano. Um estar nuvem, onde nos evaporamos papel-escrita-desenho-curva que vibra, que grafita.     

Propomos que acolham o seguinte cenário especulativo: Todos nós estamos em um labirinto e o tempo não está a nosso favor. Temos que chegar ao centro do labirinto antes que o céu caia. Mas o centro não é localizável e quanto mais achamos que o mundo é mudo e vazio de vida, mais o centro se distancia e o céu cai. Não dá para resolver este labirinto como quem acha uma solução final. Não há saída ou só se sai entrando ainda mais. Só da para se instalar pelo meio, sem começo, sem final. Convocamos a ajuda de todos vocês, como portadores de potências “conhecimentos terranos” que nas suas singularidades podem ser ferramentas chaves para avançar neste hiper-complexo problema.

O que das ideias que aqui cada um vocês traz hoje, levaria para entrar neste labirinto? Todos aqui conhecem os textos dos outros nesse sentido a escolha é muito mais o que vocês como coletivo vão levar de cada trabalho como componentes de um “conhecimento terrano” comum por vir, antes que uma escolha individual. Não podemos mais pensar sozinhos, mas começar a nos abrir a uma sinapse inorgânica coletiva e comum.

Já tendo escolhido o que levarão, como avançar nele sendo que cada passo não é um passo em frente, mas um passo doador de vida que nunca pode ser individual e sim como insistimos coletivo?

O enigma do labirinto é que ao não ter um centro localizável, a cada passo o centro se recoloca e é ao mesmo tempo tangenciado. Quanto mais nos distanciamos dele, isto é, quando mais o céu cai e o mundo continua mudo e vazio mais se complexifica o labirinto, que a cada jogada se refaz por completo. Não se sai dele de modo extensivo e sim intensivo. Não se sai dele avançando, se sai pelo meio, pela diagonal, desfazendo suas paredes que quanto mais o céu cai mais altas se tornam. Nunca se entra sozinho no labirinto, e sim sendo uma multidão onde cada um dos participantes, de vocês tem uma qualidade singular que pode fazer funcionar e dar mais consistência ao jogo.

Fragmentos de textos, como uma espécie de arquivo comum, para ir compondo esse “conhecimento terrano” como chave do labirinto. Ideais que já são de todos, a cada fragmento a possibilidade de uma jogada que pode dobrar, complicar ou não o labirinto.

Sebastian Wiedemann


 

Susana Dias

pesquisadora do Labjor-Unicamp, editora da Revista ClimaCom, líder do grupo de pequisa multiTÃO e fundadora do ateliê Orssarara.

Sebastian Wiedemann

cineasta, editor da revista Hambre, doutorando na Faculdade de Educação no grupo OLHO, integrante do grupo do grupo de pequisa multiTÃO e fundador do ateliê Orssarara.

 

 

 

 

DIAS, Susana; WIEDEMANN, Sebastian. Notas de um encontro: “Aliar-se às nuvens para que o céu não caia”. ClimaCom – Cosmopolíticas da Imagem[online], Campinas , ano. 4, n. 10. Nov. 2017 . Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=8268


 

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