Mudanças climáticas e a busca de novas narrativas: o futuro já chegou?

Cúpula do Clima, marcha mundial e novas evidências de que as emissões de carbono estão crescendo alimentam as narrativas de um futuro desastroso que se aproxima. Mas será este o único futuro possível?

Por Daniela Klebis

 

A reunião da Cúpula do Clima, realizada no dia 23 em Nova Iorque, trouxe as mudanças climáticas de volta às manchetes da grande imprensa. Sua influência pode ser observada em uma busca simples no Google trends , que indica um aumento vertiginoso de publicações sobre o tema nos dias que antecedem e seguem o encontro. Organizações não-governamentais também aproveitaram a oportunidade para realizar manifestações em prol de ações pelo clima. As ciências também colaboraram. A revista Nature, por exemplo, publicou dois dias antes do evento, um artigo que diz que as emissões de carbono continuam a crescer 2,5% ao ano; no Brasil, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apresentou, no dia 10 de setembro, dados indicando que a taxa de desmatamento na Amazônia Legal – no período de agosto de 2012 a julho de 2013 – cresceu cerca de 28%. Os números alimentaram críticas ao discurso da Presidenta Dilma Rousseff na reunião e a opção de não adesão à Declaração de Nova Iorque sobre Florestas. Cientistas sociais e filósofos também buscaram dar conta desse novo mundo que as mudanças climáticas parecem impor. O colóquio Os Mil Nomes de Gaia, realizado entre 14 e 19 de setembro, discutiu perspectivas e formas de conviver nessa nova realidade que se deflagra, que escape da tendência ao fatalismo ou à crença em uma salvação milagrosa.

“Gaia não é uma deusa. Gaia é simplesmente um conjunto de contingências, negativas e positivas. Não existe teleologia, nem providência divina nesse conceito. É um termo que designa a busca e a acomodação de novas entidades em um coletivo híbrido, do qual humanos e não humanos formam um conjunto não unificado”, resumiu o sociólogo francês Bruno Latour, um dos principais palestrantes do colóquio. Esta Gaia a que se refere o evento, conforme aponta Latour, não é a natureza e nem a Pachamama da mitologia inca. “Trata-se de saber que aquilo que chamamos humanidade, está dividida e multiplicada, por suas diferentes e diversas alianças com outros entes”, observou.

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Latour introduz essa Gaia como “um ser de mil dobras”, referentes a todas as possibilidades de existência conectadas ao conceito nada transcendental da película de Gaia: as cinco camadas que formam a atmosfera terrestre. “Gaia é a Terra viva”, diz. Porém isso não implica em um superorganismo e nem, tampouco, em uma concepção holística de mundo. Refere-se ao trabalho de James Lovelock, publicado em 1972, e posteriormente editado, que propõe que os organismos interagem com o ambiente para formar um sistema de autorregulação, contribuindo, dessa forma, para a manutenção das condições de vida no planeta.

Lovelock reuniu pedaços de conceitos de várias disciplinas científicas para formular sua hipótese e, apesar de flertar frequentemente com a ideia do divino, a posição do cientista, de acordo com Latour, é uma posição secular. “Ele não conhece a filosofia, é um químico que baseia sua teoria na ideia de um organismo, que não se distingue do meio ambiente, propondo que tudo está conectado. Não deixa de ser uma visão holística, mas não é espiritualista. Lovelock é um reducionista, no final da contas: as conexões em Terra viva não significam que existe um espírito vivo no planeta que virá colocar tudo junto”, aponta.

A teoria de Lovelock, de que Gaia modera o ambiente para favorecer a vida, como um termostato, foi criticada pelo pesquisador Toby Tyrrell, no livro On Gaia: a critical investigation of the relationship between life and earth (Sobre Gaia: uma investigação crítica da relação entre a vida e a terra). No livro, Tyrrell argumenta que a manutenção da vida não prova a existência de Gaia.

“Esta Gaia, para Tyrrell, é maldosa e cruel. Mas é perigoso pensar Gaia como uma entidade materna, mantendo aquela velha ilusão de equilíbrio da natureza”, comenta Latour ao defender que Lovelock, na verdade, não propõe uma Gaia-mãe, que toma conta de tudo o que é vivo. “Lovelock resiste ao pensamento holístico da totalidade, que pode tornar o pensamento sobre Gaia inútil politicamente”.

 

Senso de continuidade

Para a filósofa belga Isabelle Stengers, que também participou do colóquio, hoje temos, na verdade, uma brutal mudança de definição, de uma Gaia estável e favorável à vida a uma Gaia vulnerável. “Gaia perdeu sua propriedade tranquilizadora, torna-se Gaia ameaçadora, um novo nome para uma Terra vulnerável”, avalia.

Segundo Stengers, Gaia é, antes de tudo, a denominação de um campo científico que observa as possibilidades de comportamento do planeta e sua relação com o tempo, com o homem: “Gaia pode constar como um ser intrusivo, que chega sem ser esperado, questionando todas as relações previamente estabelecidas”, diz.

Stangers argumenta que os modelos computacionais utilizados para compreender as dimensões das mudanças climáticas apontam transformações preocupantes, que fazem parte de um processo global já em curso. Entretanto, a filósofa salienta que a Gaia definida pelos cientistas do clima não possui nenhum poder, no sentido de que não diz nada sobre os problemas que se impõem sobre nós. “O que nos ameaça não tem rosto, é antes de tudo um modelo inter-relacionado de dados”, comenta. Os cientistas, segundo ela, tornaram Gaia um assunto de preocupação, uma protagonista ameaçadora que faz parte do nosso futuro e nega qualquer transcendência. “Afinal, o que importa?”, questiona.

 

Intrusão de Gaia

Essa Gaia, ao mesmo tempo intrusiva e vulnerável, foi o tema retomado semana passada pela Cúpula do Clima da ONU. A maior contribuição dessa reunião foi a de reacender o debate na esfera pública sobre a necessidade de se importar com o problema ambiental global e com as relações, espaciais e temporais, que se estabelecem. Na onda de discussões deflagradas por esse evento, a revista Nature – não casualmente apenas dois dias antes do grande encontro dos líderes mundiais na sede da ONU em Nova Iorque – lançou a ideia de emergência de um futuro que chega antes do que se previa. Intitulado Persistent growth of CO2 emissions and implications for reaching climate targets (O persistente crescimento das emissões de CO2 e as implicações para atingir os objetivos climáticos), o estudo demonstra que, apesar das propostas de restrição, as emissões globais de CO2 provenientes da queima de combustíveis fósseis e produção de cimento cresceram em média 2,5% ao ano, ao longo da última década. Para este ano de 2014, o total emitido chegará a 40 bilhões de toneladas. Em 2010, o total foi de 32 bilhões de toneladas. Isso significa que dois terços da cota de emissão de CO2 previsto para o limite de aumento de temperatura de 2°C já foi utilizado. O estudo sugere que se ações mais rigorosas de mitigação não forem colocadas em prática em curto prazo, a cota total deve esgotar-se em 30 anos.

Seguindo essa perspectiva, o editor de ciências do Jornal britânico The Guardian, Robin McKie, escreveu em sua coluna de domingo (28) que o futuro previsto pelos cientistas das mudanças climáticas já chegou. O artigo Floods, forest fires, expanding deserts: the future has arrived (Enchentes, incêndios florestais, expansão dos desertos: o futuro chegou), apresenta uma narrativa contaminada pela percepção de um fim do mundo apocalíptico . Em um momento, o articulista diz que “por todo o planeta, está se tornando cada vez mais difícil encontrar abrigo contra a tempestade; e as coisas só tentem a piorar”.

O roteiro imposto ao nosso futuro seria, então, que não há alternativa a não ser domar essa Gaia. Mas, de acordo com Stengers, essa possibilidade pode partir de um pensamento tanto afetivo quanto crítico da realidade, com força suficiente para desmistificar as crenças em uma entidade com poderes divinos e, ao mesmo tempo, evocar um senso de continuidade. De acordo ela, as narrativas sobre as mudanças climáticas acabam por criar uma sensação de que não há mais nada a se fazer, ou porque o futuro que se aponta é inevitável, ou porque é muito grande para ser apreendido. “Precisamos aprender a contar outras histórias; nem apocalípticas, nem anestésicas”, propõe.

O que importa, portanto, é refletir sobre como continuar e o que vale continuar, dentro desse coletivo chamado Gaia. “Acredito que devemos cultivar uma luz que preserve essa ideia de continuidade. Precisamos resistir à ideia de game over, de que o jogo acabou”, finalizou.

 

*Daniela Klebis cobriu o colóquio “Os Mil nomes de Gaia” como parte das atividades da Sub-rede Divulgação Científica e Mudanças Climáticas da Rede CLIMA e INCT para Mudanças Climáticas.