A força do ritual – autonomia e saber científico no Território Arhuaco | ClimaCom


A força do ritual – autonomia e saber científico no Território Arhuaco

Juliana Schober Gonçalves Lima é professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS)

Juliana Schober Gonçalves Lima[1]

Esse relato foi concretizado através de uma imagem que antecedeu a palavra (Imagem 1). A imagem, ainda que insuficiente para transmitir a minha percepção consciente e inconsciente sobre a Serra Nevada de Santa Marta, na Colômbia, amplia as minhas possibilidades de comunicação. A imagem permite a manifestação do inconsciente, tantas vezes inacessível através das palavras. Aqui as palavras são a moldura de uma imagem que transmite, na medida do possível, a minha experiência em Serra Nevada. Assim, expressei nela aquilo que mais se aproxima das minhas impressões sobre aquele lugar: tão imensa quanto a própria Serra Nevada – que pode alcançar mais de 5000 m de altitude -, são os homens e mulheres que existem, modificam, marcam e habitam aquele lugar.

WAKU BAIXA RESOLUCAO pra Carol ok

Figura 1: Título: WAKU (Autoria: Juliana Schober Gonçalves Lima)

Convidada por pesquisadores da Universidade Nacional da Colômbia (UNAL), estive em Serra Nevada de Santa Marta em junho de 2017, nesta cadeia montanhosa isolada da Cordilheira dos Andes. Dizem que é a mais alta cordilheira costeira do mundo. Um dos lados de Serra Nevada observa o Mar do Caribe, o outro a Cordilheira dos Andes através de um caminho de extensos terrenos semiáridos e zonas planas.

O acesso a Serra Nevada em direção ao topo é extremamente difícil. No caminho, homens e mulheres arhuacos eram vistos caminhando e trabalhando, muitas vezes junto de suas crianças. As bolsas de lã, feitas pelas mulheres que guardam ali seus pensamentos, adornam os membros da comunidade (foto 1). As bolsas são muito importantes para os arhuacos, me pareceu um de seus símbolos identitários mais evidentes, sendo manifestado na imagem de um fio de lã que se desprende de um carneiro no topo de Serra Nevada e une o povo arhuaco através do tempo. As mulheres aprendem a tecer as bolsas muito jovens e transformam, ao longo de suas vidas, uma infinidade de fios de lã em bolsas que são tecidas enquanto elas crescem, caminham e vivem executando grande variedade de atividades diárias. As bolsas são usadas pelos homens para que eles guardem seus poporos, folhas de coca e outros pertences.

 

?
?

 

Figura 2. Homem arhuaco com bolsas feitas pela comunidade (Fotos: Juliana Schober Gonçalves Lima)

Poporos e folhas de coca são associados ao masculino, aos homens de Serra Nevada (foto 2). Uma abordagem muito interessante sobre eles pode ser encontrada em La vida con el poporo: un viaje de mambe y coca en la Sierra Nevada. Nesta crônica, Santiago Wills conta a história de um jovem rapaz arhuaco chamado Arukin, de 13 anos de idade, que é submetido a um ritual de passagem através de uma cerimônia que marcaria a sua entrada na vida adulta. Sendo um homem adulto arhuaco, Arukin seria respeitado por todos da comunidade como tal, e finalmente teria a permissão para usar o seu próprio poporo. O poporo é um símbolo masculino marcante dos arhuacos. É uma cabaça seca em cujo interior se guarda o pó de conchas marinhas que se mistura com o ayu, palavra arhuaca para folha de coca.

Figura 3. Homens arhuacos seguranco os poporos

Integrar a equipe dos pesquisadores da Universidade Nacional da Colômbia para tecer em território arhuaco pesquisas científicas junto com membros da comunidade arhuaca foi uma experiência que me rendeu muitos diálogos internos. Estavam ali os pesquisadores da UNAL e os arhuacos buscando respostas sobre o uso dos recursos naturais locais para a produção de alimentos. Eu via ali indivíduos que haviam passado por rituais muito diferentes, porém, naquele espaço-tempo, procuravam dialogar e tinham perguntas em comum. A globalização da ciência e tecnologia é mesmo uma invenção de grande força nos nossos tempos e estava ali, acolhida pelos próprios arhuacos, entre as folhas de coca no coração de Serra Nevada de Santa Marta.

Experiências anteriores com outras comunidades tradicionais me conduziram ao exercício necessário de descobrir novas perspectivas para a construção do conhecimento científico. Também ali em Serra Nevada de Santa Marta a construção do conhecimento é lançada em um espaço vulnerável, onde o simbólico precisa ser reconhecido, e na medida do possível entendido, para a compreensão da dinâmica do uso dos recursos locais para a produção alimentar. No caso de Serra Nevada essa construção conjunta começou com a delimitação clara de um novo espaço para se fazer ciência: são os mamos[2] que permitem a presença dos cientistas e o fazer ciência naquele território, compreendido pelo conhecimento arhuaco e sua visão cósmica da natureza. A permissão foi transmitida e ritualizada entre os membros da comunidade e da Universidade Nacional da Colômbia. Muitos rituais, liderados pelos mamos, antecederam o início das pesquisas, envolvendo pesquisadores e arhuacos. Aqueles rituais formalizavam, de alguma forma, que ali a construção do conhecimento científico teria que seguir as regras daquele território.

Como sentinelas, sempre ritualizando as interações com membros externos à comunidade, os arhuacos protegem a Serra Nevada de Santa Marta da apropriação passiva de seus territórios e conhecimento tradicional. É também uma forma do povo arhuaco determinar qual tipo de conhecimento importa para eles, afinal, as pesquisas realizadas naquele território dependem da permissão da comunidade, através dos mamos. Nesse cenário, os rituais são ferramenta e desempenham um papel estratégico na arena dos conflitos pelo conhecimento e uso dos recursos naturais, onde frequentemente as comunidades tradicionais saem em desvantagem. Os arhuacos me ensinaram uma lição que eu não conhecia e que talvez muitas comunidades tradicionais não conheçam: o poder do ritual para a autonomia da construção do saber científico em um território comunitário.

A montanha é uma das mais antigas imagens de divindade. Deusa-mãe imensa, imóvel e eterna, que sustenta e protege os vivos e guarda seus mortos. Em Serra Nevada de Santa Marta as águas de degelo e a chuva irrigam o solo para todas as formas de vida que vivem ali. A montanha também sugere impulso e transformações intensas, causada por profundas forças tectônicas. A montanha que abriga os arhuacos é também a revelação de uma transição necessária para a sociedade global, onde alianças concretas e simbólicas podem indicar caminhos para o enfrentamento das mudanças climáticas, a insegurança alimentar e o uso dos recursos naturais. Rica em biodiversidade, a imponente Serra Nevada de Santa Marta tem abrigado comunidades indígenas que continuam sendo sustentadas por paradigmas de produção e consumo de alimentos alheios ao sistema agroalimentar global. Eu me despedi de Serra Nevada com a sensação de que existe ali muito a ser aprendido.

Agradeço ao convite da pesquisadora Adriana Patricia Munoz Ramirez da Universidade Nacional da Colômbia (UNAL) para conhecer a Serra Nevada de Santa Marta com sua equipe de pesquisa. Agradeço aos pesquisadores arhuacos e da UNAL por mais essa caminhada. Agradeço aos arhuacos por serem quem são, e por terem me ensinado tanto.


[1]Doutora em Planejamento e Desenvolvimento Rural Sustentável pela Universitat Hohenheim (Alemanha). Professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: jsglima@gmail.com

[2]Os mamos são aparentemente arhuacos comuns pois nada, nenhum ornamento ou vestes, os diferenciam dos demais. Entretanto, são elementos centrais da sociedade arhuaca e são muito respeitados. Personificam o conhecimento e a sabedoria, são os guias da sociedade e tomadores de decisão influentes. São a máxima expressão da sabedoria e cultura arhuaca e aprendem os segredos da natureza pelo contato e vivência direta com a ela.