A escala humana (um fragmento de O que vi – Diário de um espectador comum)


Eduardo Pellejero[1]

 

 

 

 

O QUE VI – DIÁRIO DE UM ESPECTADOR COMUM

(8 DE MAIO – 27 DE MAIO)

 

8 DE MAIO

É comovedora a beleza que pode ter, no meio do longo inverno madrileno, um dia de sol. Sentado num banco frente ao lago do Parque do Retiro, vendo a gente que passeia sem presa, me embarga um prazer sereno, mole, sem arestas, que enleva o meu desejo e aquieta a minha vontade, até deixar-me num estado de quase perfeita beatitude.

Levanto a vista e contemplo durante um momento as nuvens que se formam muito alto no céu. Observar as nuvens é uma forma inteligente económica de observar dentro da própria cabeça. O segredo é não pensar em nada. Pouco a pouco, da volúvel matéria das nuvens, vão surgindo as figuras nas que se reconhece a nossa mente quando carece de qualquer intenção. É um espetáculo digno de se ver. Agora é um dragão. Agora o rosto de uma criança chorando. Agora um campo de trigo do que levanta voo uma bandada de corvos.

 

9 DE MAIO

Outro dia dedicado a vagar pelos parques de Madrid. Na Quinta dos moinhos, caminho em círculos com os olhos entrefechados enquanto escuto um tema de George Harrison que se repete no meu walkman como um mantra. Por momentos o sol me dá em cheio nos olhos e ando literalmente às cegas. Seeing without looking.

Quando era um adolescente tinha o hábito de impor-me o passo que ditava o ritmo da música que escutava. Com os fones de ouvido e a minha fita cassete favorita a todo o volume, as coisas ao meu redor pareciam adotar também essa cadência, e inclusive responder poeticamente à letra das canções, para o qual eu colaborava com oportunos movimentos de cabeça, numa espécie de edição ao vivo de um filme que se projetava dentro da minha mente – ou a partir da minha mente, na rua – e que mimava os recursos dos primeiros vídeo-clips que começavam a ver-se na televisão. Não importava então o tamanho da minha angústia: o mundo voltava a ter sentido nesses momentos – mesmo que só fosse o sentido da minha angústia.

Em Madrid, depois de semanas visitando diariamente o museu, acabei desenvolvendo uma espécie de deformação perceptiva similar, que me surpreende nas situações mais diversas. Não há nada que possa fazer para precaver-me. Pode acontecer em qualquer parte, em qualquer momento. Na rua, por exemplo, enquanto espero que mude a luz do sinal para cruzar, tudo se detém num instante que se prolonga paradoxalmente no tempo, como se se tratasse de um quadro. Evidentemente, os carros não se detêm, as pessoas seguem o seu caminho, sou apenas eu quem fica congelado – e a realidade em mim (para mim). Ando preocupado com esse fenómeno. Os nossos olhos não estão feitos para a contemplação, estão feitos para a sobrevivência. Ao mesmo tempo, não deixo de experimentar uma íntima fascinação com o resultado. As instantâneas fugazes nas que me abstraio são capazes de suportar todas as funções de uma imagem artística: chamar a atenção sobre objetos cuja beleza nada deixava prever, tornar incontornável o absurdo ou a obscenidade de uma determinada situação, e assim por diante. É um mistério, inclusive para mim, o que acontece comigo nesses momentos.

* * *

“Se não tivéssemos lido romances de amor, jamais seríamos capazes de amar.”

 

11 DE MAIO

Continua o bom tempo. Passo a maior parte do dia vagando pelos parques da cidade. Ontem foi o Parque do Oeste. Hoje, o do Capricho. Nos seus melhores momentos, a arquitetura desses jardins se dissimula até desaparecer, dando a impressão de que nos adentramos na natureza. Trata-se de uma natureza à escala humana. Isto é mais importante que o primeiro. O problema das cidades modernas não é tanto a ruptura que impõem entre nós e a natureza selvagem como a escala inumana que adquirem como parte da máquina de acumulação capitalista. Inclusive quando não são completamente imunes a essa lógica, os parques são espaços de suspensão.

* * *

Nesse gosto pelos parques não estou sozinho. Tenho, de fato, alguns predecessores célebres. Francis Bacon escreveu um ensaio sobre os jardins, que considerava entre os mais puros prazeres dados ao homem; e Goethe, apesar de privilegiar, como a maior parte dos românticos, o chamado da natureza, não era indiferente aos grandes parques ingleses e italianos da sua época (chegou inclusive a cultivar um extraordinário jardim perto da sua casa de verão em Weimar). Mas é seguramente no gosto de Kant pelos parques em quem melhor me reconheço.

Kant era um entusiasta da jardinagem, que colocava inclusive acima da pintura. Apreciava, sobre qualquer outros, os jardins que evitavam na medida do possível qualquer forma de regularidade (estilo inglês), propiciando o livre devaneio da imaginação. Escreveu que é frequente que a fantasia veja em todas as partes, mesmo nas coisas inanimadas, uma alma que nos fala através das suas formas. O arranjo dos elementos que compõem um jardim – a grama, as flores, os arbustos e as árvores, e também as águas, as colina e os vales – satisfaz esse impulso com generosidade. Entre eles não nos sentimos nunca sozinhos, como se o universo fosse o nosso lar. Ao mesmo tempo, e de modo paradoxal, respondendo a essa experiência irracional (não temos nenhuma razão para pensar que o universo se encontra feito à nossa medida), põe em jogo a totalidade das faculdades humanas.

Sob uma falsa aparência de utilidade, em nome da saúde pública ou das apostas do mercado imobiliário, os parques continuam oferecendo-se à nossa contemplação como uma estranha pintura sem objeto, convidando-nos a abandonar-nos aos transportes da experiência estética.

* * *

Decidi regressar ao museu, com a condição de permanecer no jardim.

 

12 DE MAIO

Há, rodeada de árvores de folha perene e de arbustos em flor, plantada firmemente sobre a terra, uma pesada estrutura negra de mais de sete metros de altura, composta de quatro triângulos levemente côncavos soldados entre si sobre o seu lado mais longo, formando uma figura que lembra essas árvores de natal esquemáticas que costumam ver-se agora nas lojas de decoração. Sobre o vértice equilibra-se, frágil, leve, vermelha, uma barra transversal em arco, de cujas pontas pendem em cachos instáveis as pás improváveis de um moinho sem uso. A barra vermelha gira sobre si, as pás (vermelhas ou amarelas de um lado, brancas do outro) oscilam num complexo sistema de suportes articulados.

Se se inclina demasiado para um dos lados, a grande barra horizontal parece o fiel de uma balança inútil. Quando se detém por completo tem ares de árvore pré-histórica. Sob a ação da brisa, o conjunto evoluciona em lentos movimentos elásticos, ora refletindo o sol, ora ocultando-se nas sombras, como um veleiro entrando no porto. Captura o teu olhar de imediato. Põe a voar a tua imaginação. Que forma adotará a seguir? O que foi dessa que o vento desfez antes que conseguisses decifrá-la? Agora, por exemplo, gira em grandes circunferências regulares. Sem medi-lo, faz passar o tempo. Como se não lhe bastasse ser moinho e barco, árvore e fiel, quer também ser relógio.

Apesar das suas dimensões, é quiçá o objeto mais humano de todo o museu. Contemplando-o, sentimo-nos em casa, como se o mundo, cedendo à gravitação da beleza, se contivesse, dando-se segundo uma medida adequada à nossa sensibilidade. Como os brinquedos das crianças, torna o universo manejável, remetendo o seu mistério a um jogo sem riscos.

* * *

“A crueldade tem um coração humano e os ciúmes um rosto humano; o terror tem a divina forma humana e o mistério tem as vestes do homem.”

* * *

Mas – observas – o universo é inumano. Não o esqueças.

 

13 DE MAIO

Mesmo encontrando-se instalada ao ar livre, a obra de Calder não está à intempérie. Dentro do edifício se abre ao exterior, instala uma paisagem. Pode até tratar-se de uma paisagem lunar, mas não deixa de ser uma paisagem humana. Como os colonos das crónicas de Bradbury, vendo-nos refletidos na sua superfície opaca acabamos por compreender que nós somos os marcianos. A beleza é de outro mundo. Nós a trouxemos aqui. Há outras formas de lidar com o mistério do universo, evidentemente, mas a beleza é sem dúvidas a mais humana de todas.

* * *

Não se pode viver na beleza. Tampouco pode se viver sem ela. Não vale a pena.

 

14 DE MAIO

Ontem pela noite assisti a um concerto num dos auditórios do Edifício Nouvel. A Orquestra Nacional de Espanha, sob a direção de Tim Fain, ensaiava um novo arranjo de As quatro estações, que é uma peça acessível para leigos, como eu. O público era escasso e isso me permitiu desfrutar do espetáculo sem ter que por em causa o domínio da minha solidão.

Acontece-me algo particular cada vez que me disponho a escutar uma orquestra. Os movimentos compassados dos músicos, os gestos mais ou menos teatrais do regente, essa cena que se repete sem grandes variações apesar das mudanças do repertório me abstrai totalmente do que me rodeia, até que só resta a música, não fora, mas dentro da minha cabeça. Trata-se de uma espécie de efeito hipnótico, mas não me deixa letárgico, porque na respeitosa quietude que impõem em geral todas as salas de concerto a minha mente se abandona a uma atividade frenética – viajo!

* * *

Kant não gostava muito da música. De fato, o chateava. Em Crítica da faculdade de julgar – onde chega a considerar que, de um ponto de vista estético, o canto dos pássaros é muito superior ao dos homens – atribui à música o lugar mais baixo entre as belas artes. Estava convencido de que, como os jogos que levam ao riso (bufonaria), a música era incapaz de suscitar em nós qualquer tipo de pensamento.

Também acusava a música de incomodar os vizinhos.

 

15 DE MAIO

Lily Briscoe, a quase secreta pintora de Ao farol, o romance de Virginia Woolf, diz que são necessários cinquenta pares de olhos para ver, entre os quais pelo menos um devia ser completamente cego à beleza, para contemplar a realidade quando nada da ordem mundana a perturba, na sua solidão essencial, independentemente de qualquer determinação social, de qualquer presença humana.

Cinquenta pares de olhos e, pelo menos, um completamente cego à beleza. Lily pensa em Mrs. Ramsay, por quem estivera apaixonada. Em vida, aspirava a vê-la por completo, não apenas como Mrs. Ramsay se mostrava para ela, mas tal e como se manifestava para cada uma das pessoas às quais se entregava sem reservas (Mr. Ramsay, Cam, Prue, James, Andrew etc.), e, mais importante ainda, tal como se dava quando se encontrava a sós, por exemplo, na clausura do seu quarto, recolhida sobre si, como numa noz. Morta, não podia deixar de fazer-se perguntas que já não encontrariam resposta: O que significava para Mrs. Ramsay que rompera uma onda? O que significava o jardim para ela?

Alguma vez chegara a fantasiar com a possessão de um sexto sentido, fino como o ar, com a capacidade de passar pelo olho das fechaduras, uma espécie de projeção fantasmática ou emanação capaz de infundir o corpo dos outros – o de Mrs. Ramsay, para começar. Já não um olhar, mas toda uma nova sensibilidade.

 

16 DE MAIO

Cinquenta pares de olhos e pelo menos um completamente cego à beleza. Quiçá toda a aprendizagem, e não apenas no visível, tenha por objeto esse olhar inumano: um olhar que não veria as coisas como são para nós, mas como são em si – as coisas mesmas.

* * *

Uma visão completa do mundo, mesmo que fosse intolerável.

 

17 DE MAIO

Tive este sonho:

Encontrava-me no meio da selva. Ao meu redor, a paisagem fechava-se em paredões de verdura compacta, mas não me sentia perdido. Com grande facilidade, como se fosse um nativo, conseguia orientar-me entre os hiatos que se abriam na vegetação. Onde quer que olhasse via sinais. Podia visualizar o manancial que se ocultava detrás de uma frondosa barreira de trepadeiras e adivinhar as aves que levantariam voo, de um momento para o outro, no claro que se insinuava à minha frente, da mesma forma em que, no trânsito, qualquer condutor é capaz de antecipar-se à manobra que fará o carro que tem por diante, inclusive quando não coloque o pisca-alerta. De tê-lo querido, poderia ter-lhes dado caça sem dificuldade.

Apesar de saber-me a jornadas inteiras de distância da população mais próxima, avançava sem presas, com a segurança do animal que se move no seu território. Podia sentir o áspero contato das ramas arranhando suavemente a pele dos meus braços e, de forma vívida, cedendo sob a planta dos meus pés, o mole colchão de folhas que cobria a terra. A luz apenas rasgava o teto das árvores, confundindo as diferentes tonalidades do verde numa negrura cada vez mais profunda. Para não impor-me ao rumor do circundante, quase não levantava o facão em que se prolongava a minha mão direita, deslizando-me sem fricção entre as gretas da espessura. À medida que me internava mais e mais na selva, essa atividade acabou por concentrar toda a minha atenção. Ignorava onde me dirigia, mas isso não me preocupava.

Acordei desorientado. Esquecera de fechar a janela do quarto e uma luz mortiça caía em diagonal sobre a minha mesa de trabalho, coberta de apontamentos e de garrafas vazias, sem ordem nem mistério. Mesmo quando os interroguei longamente com o meu olhar, não souberam revelar-me onde estava indo.

 

18 DE MAIO

O segundo capítulo do romance de Woolf, um dos capítulos mais extraordinários da história da literatura, aquele que vem a seguir à notícia intempestiva da inesperada morte de Mrs. Ramsay, tenta lançar esse olhar impessoal sobre o mundo, que segue o seu curso apesar da ausência de Mrs. Ramsay, já sem o amparo dos gestos delicados e subtis de Mrs. Ramsay, do seu incansável esforço por manter as coisas em harmonia.

São passagens de uma perturbadora intensidade, mas não há beleza nelas. O fundo informe da existência tomou a palavra e fala com a sua língua de fogo e pedra. Deixa escutar apenas um grunhido – o pulso arrítmico do universo.

A essa respiração entrecortada, que por momentos nos embala e por momentos nos sacode como uma gargalhada amarela, na que tudo o que é humano se abisma na sua própria contingência, os poetas dão um nome que só faz sentido quando é capaz de impor-se ao rangido dos deslocamentos tectónicos e ao estrondo das explosões solares. Faz silêncio.

 

19 DE MAIO

Volto a procurar refúgio no pátio do museu. Sopra uma brisa quase imperceptível, mas Carmen move-se, não deixa de mover-se, está sempre em movimento (é a sua natureza), mesmo que por vezes lhe tome o seu tempo manifestar a sua vida secreta. Por um momento deteve-se num ângulo agudíssimo perante mim, oferecendo-me o seu perfil mais fino, uma linha na que todas as figuras dissimulam a sua superfície.

Quando regressa o vento, retoma a sua dança com parcimônia. Avizinha-se uma tempestade. As árvores começaram a agitar-se. Fazem-no, primeiro, em breves tremores isolados e, a seguir, de forma contínua, enlouquecidamente, como se houvessem sido possuídos por um demônio. Se olhasses tempo suficiente, invadiría-te o terror.

Com a vista na obra de Calder, a tarde continua aprazível apesar de tudo. Os fenómenos meteorológicos se reduzem a meros estados de ânimo entre as suas pás, que agora giram a maior velocidade, mas sem perder o seu aprumo, a sua elegância. Com isso podes entender-te: está feito da mesma matéria que o teu espírito.

* * *

Em As duas fontes da moral e da religião, Henri Bergson postulava que não existe sociedade sem algum tipo de mistificação, de representações coletivas mais ou menos irracionais, mais ou menos absurdas, assentadas nas instituições, na linguagem e nos costumes. As sociedades humanas compreendem desde a sua origem certa compreensão inteligente das necessidades, assim como alguma espécie de organização racional das atividades, mas formam-se também e só subsistem por fatores irracionais.

Bergson compreendia que o excesso de lucidez pode ser uma tara. O reconhecimento intelectual da finitude, da margem de imprevisibilidade e da contingência da existência, pode acabar por tornar impossível a vida. É o que acontece com Tomatis em O inapagável, um dos primeiros romances de Juan José Saer. Incapaz de levantar a vista da água negra em que tudo acabará por afundar-se mais tarde ou mais cedo, se sente a um tempo preso no seu corpo e exposto ao despiedado fluir do exterior. Possui apenas um par de olhos, e é insensível à beleza.

O que paralisa a personagem de Saer é o mesmo que paralisava os homens pré-históricos sobre os quais escrevia Bergson: nasce da consciência de que vivemos num universo regido por forças formidáveis e cegas, que sem propósito nem intenção, com total indiferença, poderiam destruir-nos em qualquer momento. Para compensar os efeitos nefastos que podem resultar do monopólio da inteligência, a própria natureza haveria desenvolvido no homem uma espécie de instinto, que Bergson denomina função fabuladora, a qual, em situações limite, através da produção de ficções adequadas, envolve a inteligência numa espécie de sistema de signos alternativos – como numa atmosfera protetora.

A modo de exemplo, Bergson conta que, ante a constatação de que o chão que pisamos é instável e imprevisível como a superfície do oceano, certas culturas dotam a terra de uma personalidade, de atributos individuais, muitas vezes malignos, e inclusive temíveis, mas humanos, deste mundo – admitindo, portanto, algum tipo de relação com os homens, como o mito, o sacrifício, a festa. No fundo, não impunham nada à realidade, apenas a si (algumas obrigações, alguns sacrifícios), mas isso bastava para dissipar o terror perante o que não tem rosto nem consciência, e voltar a viver sem pressentimentos na ladeira de um vulcão, no fundo de um vale ou na costa de uma ilha.

* * *

Quanto, em realidade, nos afastámos do fogo que ardia, mortiço e vacilante, na penumbra das cavernas?

 

20 DE MAIO

No romance de Woolf, é Mrs. Ramsay quem assegura que o mundo não transgrida os limites do humano. Sempre atenta aos mais mínimos gestos, tirando importância a tudo o que possa ser motivo de inquietação, de alarme ou de apreensão, o seu zelo por manter a vida nos trilhos não admite comparação.

Notavelmente, aos olhos do resto das personagens, o seu esforço se manifesta sob a forma da beleza. Todas as personagens do romance admiram a sua beleza. Isso poderia estranhar o leitor, sendo que Mrs. Ramsay deu a luz nada menos que a oito filhos. No fundo, o que todos admiram em Mrs. Ramsay não é o seu aspecto, mas o aspecto que as coisas adquirem na sua presença, a prazenteira harmonia que impõe o seu constante cuidado, tornando a vida um jogo que parece poder ser jogado sem preocupação, sem intenção, sem finalidade.

Ao contrário do seu marido, que insiste em ensinar os seus filhos desde a infância que o universo é inumano, pelo que é melhor não tomar a vida com leviandade, e que ao olhar as coisas só é capaz de dizer “coitadinho do mundo” e suspirar a seguir, Mrs. Ramsay luta constantemente para evitar que essa faceta feroz da realidade se manifeste no seu reino e coloque em perigo o frágil equilíbrio dessa casa de praia onde, sem consciência da precariedade da existência, família e amigos experimentam ser felizes cada ano durante uma temporada.

* * *

Revisitando as ideias de Kant sobre a experiência estética, Terry Eagleton adverte que a deliciosa sensação de adaptação da nossa mente à realidade que experimentamos na beleza é como a felicidade da criança que brinca no colo da sua mãe, cativado por um objeto o bastante plástico como para não opor nenhum tipo de resistência às suas intenções. A comparação é interessante mas é falaz, porque a experiência estética não tem lugar apenas na mente, mas involucra todas as nossas faculdades, o que compreende, ao contrário do que pensava Kant, a substância que a nossa alma partilha com o mundo: o nosso corpo. Se se trata de uma alucinação, observemos que pertence à ordem das alucinações verdadeiras (Taine), não à das fantasias – mesmo os fantasmas, como bem sabia Marx, são fundamentais para a nossa emancipação.

O certo é que, enquanto na experiência cotidiana a realidade se nos apresenta como o conjunto de obstáculos que nos separam de nós mesmos (do que projetamos ser), na experiência estética o mundo se manifesta como jogo, como um desafio lançado à nossa liberdade.

Podemos senti-la, essa liberdade, trabalhando com a imaginação e o intelecto aquilo que se oferece através da nossa sensibilidade.

Podemos experimentar o prazer que se desprende disso – ainda quando quiçá prazer não seja a palavra mais adequada para caracterizar a disposição anímica que nos ganha quando fazemos uma experiência intensa da nossa liberdade (quiçá seja, antes, a alegria).

Vítima da natureza indomada, ou acorrentado às naturezas segundas às que os sistemas de opressão não deixam de dar lugar, a liberdade pode acabar por tornar-se uma palavra vazia e, em última instância, a forma mais perversa da ideologia, se o homem não encontra formas de continuar tendo dela uma autêntica experiência sensível.

Não acredites em nada do que não possas ter uma experiência.

Atreve-te a perder-te nos teus jardins!

 

21 DE MAIO

Nem sempre um parque funciona como um convite à experiência estética. Uma pessoa pode ir a um parque para correr, para tomar uma aula de ioga, para ter uma conversa difícil. A paisagem que oferece está aberta a uma multiplicidade de práticas, não necessariamente compatíveis com os devaneios da imaginação e o funcionamento desregrado das nossas faculdades.

Como os parques, as bibliotecas também estão abertas a uma pluralidade de usos diferentes. É possível estudar numa biblioteca, pesquisar, ilustrar-se, escrever uma dissertação, folhear os jornais. Claro que também é possível ler numa biblioteca, simplesmente ler, deixando que a própria leitura nos conduza de um livro para outro, sem objeto nem fim, só pelo prazer de ver esboçar-se figuras fugazes e variáveis sobre a mesma superfície em que se dispõem as palavras, e que pela sua vez novas palavras virão a transformar, a confundir e finalmente dissolver no ar, como o vento faz com as nuvens no céu. Então a biblioteca é um jardim e é uma aventura errar sem rumo pelos seus corredores.

* * *

Hoje não vim à biblioteca para ler. Vim procurar o homem que concebeu Carmen. A sua vida foi longa e aprazível; viveu quase oitenta anos e jamais sofreu de privações, dividindo os seus dias com facilidade entre os Estados Unidos e a França. Provinha de uma estirpe de artistas. O seu pai, e antes o seu avô, foram escultores de sucesso, e gozaram de um considerável renome na América. A sua mãe exerceu o retrato de forma profissional. Desde a infância, nos ingentes atelieres familiares primeiro, e numa pequena oficina que lhe ofereceram os seus pais mais tarde, o mundo deve ter-lhe parecido um pátio de jogos. A argila e o papel, o metal e a madeira prestavam-se, oferecendo o mínimo de resistência que definem essas matérias, aos caprichos da sua vontade.

Apesar de ter obtido um diploma de engenheiro mecânico em 1919 e estudar belas artes entre 1923 e 1926, sempre se considerou um artesão. As obras de Mondrian, Gabo, Arp, Miró e Leger o marcaram profundamente, mas jamais se sobrepuseram à sua visão primeira do mundo, uma tarde de domingo no planetário de Nova York, junto aos seus pais, quando o universo se lhe revelara sob as formas familiares com as que estava acostumado a trabalhar no seu banco de marceneiro.

Soube usar a pinça e a buril, a lixa e o torno, para capturar as forças cósmicas em ação – a brisa, a luz, a gravidade. Nas suas obras o universo devém mundo, mas não mundano. A sua ostensiva inutilidade impede que, apesar da domesticação do cosmos a que dão lugar, atraiçoem o seu mais profundo ascendente – que é, como ensinava Bataille, o dispêndio, o gasto, a festa.

* * *

Não saciando de imediato a sede, entregando-se às deliciosas dilações que compõem a cerimónia do chá, os japoneses abrem espaço para a beleza no mundo, que é como dizer que dão mundo ao mundo. Não se trata de algo acessório. Nas formas está em jogo a humanidade do homem.

 

22 DE MAIO

Neste momento só há exposto no museu outro móbil de Calder. Ocupa um pequeno lugar numa sala claustrofóbica do quarto andar, onde a brisa não correu jamais. Trata-se de uma pequena constelação de 1944, feita de arame e madeira, que mantém um precário equilíbrio no alto de uma das paredes.

Entrei especialmente para observá-la. Vê-se triste, presa nesse lugar. Em vão tentei encontrar algum prazer na sua contemplação. A Calder acontecera-lhe algo similar numa exposição organizada na galeria de Pierre Matisse, que partilhara com Yves Tanguy. Quiçá julgando que não chamariam a atenção, as suas obras foram colocadas na última das salas, um pequeno quarto sem ventilação alguma. Jamais concebera que pudessem existir sem movimento.

Enquanto pensava nessas coisas, a guarda de sala aproximou-se de mim sem que o notasse e começou a agitar um desses grandes folhetos plastificados que se encontram à disposição dos visitantes em todas as salas. Os planetas oscilaram por um instante nas suas órbitas e em seguida começaram a girar. Como me ri!

 

 

23 DE MAIO

Em Museum Hours, um belíssimo filme realizado por Jen Cohen, Johann, um dos guardas de sala do Kunsthistorisches Art Museum, em Viena, fala do seu silencioso ofício. Nem sempre foi guarda de sala. Na sua juventude, acompanhara algumas bandas de rock na estrada. Desses tempos guarda um secreto gosto pelo heavy metal.

O ritmo do seu novo emprego lhe deparou algo de tranquilidade. Nas pinturas encontra cada dia algo novo para ver. É um lugar comum, mas não se trata de uma impostura. Agora repara em coisas nas que antes quiçá não teria detido a vista nem por um segundo: o reflexo de uma obra em construção no cristal de uma vitrine, a decisão de uma idosa que se dispõe a subir uma ladeira antes que comece a cair a neve, uma pequena loja de antiguidades que só abre duas horas por semana – às sextas, de 14 a 16. Também observa com interesse as impressões das pessoas. É possível apreender muito dessa forma. O seu posto dota-o de uma espécie de invisibilidade. Pode fazê-lo durante horas sem que ninguém o note.

Certo dia, uma mulher se aproxima para fazer-lhe uma pergunta. Não é pelo banheiro (a pergunta mais comum que se dirige aos guardas de sala), tampouco sobre nenhuma obra em especial (ao que Johann responderia com prodigalidade). Procura, apenas, um endereço. O seu nome é Anne, e se encontra na cidade para acompanhar uma prima que está em coma. Necessita ir até o hospital. Johann lhe dá as indicações necessárias e se oferece para ajudá-la no caso de que necessite falar com os médicos (ela não fala alemão).

Voltam a ver-se. Começam a fazê-lo quase diariamente. Juntos, contemplam as pinturas expostas no museu e conversam longamente sobre elas, sobre a obscura atração de um lírio numa pintura de Ambrosius Bosschaert ou sobre a inocente nudez de Adão e Eva na obra de Hans Memling.

Uma vez visitam juntos o hospital. Anne lhe pede que descreva algumas dessas pinturas para a prima, que continua em coma; acredita que quiçá seja capaz de escutar e que isso possa vir a ajudá-la na sua recuperação. Johann o faz com simplicidade e sobriedade. Chamam a sua atenção a honestidade de Rembrandt para retratar a sua pobreza, o infantil engenho de Arcimboldo, a assustadora severidade com que Bruegel pintara o inverno.

Johann também conta histórias, como a do jovem punk que frequentara o museu durante uma temporada, fascinado pelas imagens e ao mesmo tempo sublevado pelo que representavam (esse jovem era quiçá John Berger), ou como a do bêbado que fora confundido com uma vítima da peste e acordara numa fossa comum, onde essa noite escutou-se o som da sua gaita.

Curiosas personagens, os guardas de sala. Recolhidos nos cantos, atentos às evoluções dos visitantes ou abstraídos na contemplação do vazio, são os olhos do museu. Quiçá nem todos partilhem o entusiasmo de Johann, mas todos guardam pelo menos uma história.

* * *

Alicia tinha a sua. Alicia era a guarda de sala que pôs o móbil de Calder a dançar para mim. Prometera-me que um dia iria contá-la para mim e combinamos que passaria a visitá-la quando encontrasse tempo[2].

 

24 DE MAIO

Em 1930, Calder conhece Mondrian, a quem visita no seu estúdio da Rue de Départ. O que observa o impressionará de forma decisiva. Tinha 32 anos. Até então nunca considerara seriamente a abstração. Mais tarde diria que tudo, na verdade, começara aí. De todos os modos, espirituoso, como era costume nele, não se deixou intimidar e comentou a Mondrian que seria divertido pôr a balançar todos aqueles retângulos coloridos, ao que Mondrian, sem perder a compostura, respondeu:

– Não é necessário. A minha pintura já é suficientemente rápida.

* * *

Fernand Léger perguntava-se que espetáculos poderia oferecer a arte às pessoas para permitir que se emancipassem desse outro espetáculo cotidiano em que pareciam aprisionadas – apertadas nos meios de transporte para ir ao trabalho, acorrentadas às máquinas como animais de tiro, desmaiadas pela noite em quartos sem ventilação. Estava convencido de que existe no homem uma profunda necessidade de beleza. Obcecava-o o fato de que muito poucos tivessem a possibilidade de apreciar, ver e compreender o admirável mundo em que vivemos – admirável ou grotesco. Durante boa parte da sua vida aspirou a pintar murais, mas as paredes foram-lhe vedadas. Em 1924 produziu um filme sem argumento – O ballet mecânico – no qual as imagens sucedem-se sem outro fim que suscitar nos espetadores o livre devaneio da imaginação, propiciando um olhar poético sobre o prosaico.

O público já tinha visto antes essas coisas – se tratava de imagens das máquinas às que sacrificavam diariamente todas as suas energias – mas nunca as tinham visto dessa forma (como alguém baloiçando-se num parque ou embriagado pelo perfume de uma rosa).

Esse mesmo ano, Buster Keaton e Douglas Fairbanks arrasavam nas bilheteiras.

* * *

Quando a arte faz política, atua intuitivamente, sem agenda. Por vezes pensa: “esta gente deve ser vista”. Por vezes pensa: “esta gente deve ver”. A experiência que nos propõe está sempre por recomeçar.

Quiçá as instituições da política sejam o verdadeiro fracasso da sua instituição. Sobre esse assunto não tenho muito mais que agregar – ao menos sem recair na impostura.

* * *

Como Arp, como Duchamp, como Miró, Léger foi amigo de Calder. Enquanto que os primeiros costumavam sugerir-lhe títulos para as suas criações (Mobiles, Stabiles, Constelations), Léger gostava de atribuir-lhe raros títulos de nobreza: rei do arame, pai do movimento – chamava-o.

* * *

 – E tu? Sabes tu o que és?

Pai dos piolhos, avô do nada.

 

25 DE MAIO

Há outras paisagens no museu. De todas, a que mais me comove é uma singular instalação composta por uma placa de acrílico de quatro por quatro metros, preso ao teto, da qual pendem 1600 fios de lã de 40 cores diferentes, na ponta de cada um dos quais pendem, por sua vez, a diferentes distâncias do chão, 1600 guizos de metal cromado.

Os fios se encontram distribuídos de acordo a uma quadrícula rigorosa, que produz curiosos efeitos óticos à medida que a pessoa se desloca ao seu redor, dando lugar a corredores transversais e surpreendentes passagens em diagonal. A curta distância, com a vista levemente desfocada, oferecem o aspecto de uma superfície contínua, uma espécie de cortina de cores vivas, ao mesmo tempo etérea e infranqueável. Um pouco mais abaixo oscilam, apenas movidos pelo ar que corre entre as duas aberturas da sala, seguindo ritmos e amplitudes diferentes, os guizos. Não produzem nenhum som apreciável, mas de alguma forma, por isso mesmo, tornam sensível o silêncio que os envolve (e que em qualquer momento poderiam interromper).

Se te acocoras e os observas com atenção, suscitam uma sensação de infinitude em ato que, contudo, não exige da tua mente esforço nenhum de abstração. Mais abaixo, aos teus pés, um formigueiro de sombras esboça figuras efêmeras sobre o chão de cimento alisado. Frágil, fugaz, imperturbável, persevera no seu ser. O secreto trabalho dos restauradores promete-lhe uma vida duradoura.

Juan Hidalgo projetara essa instalação para uma festa de fim de curso do Instituto Alemão de Madrid que teve lugar no dia 30 de Maio de 1972. Então, claro, deve ter feito muito barulho. A ideia original era que a gente a atravessara, fazendo soar os guizos, enredando-se nos fios, no espírito dos happenings que grupos como Fluxus começavam a organizar na época.

Agora se oferece de modo mais circunspecto à nossa contemplação, como as constelações durante uma noite sem lua ou um campo de trigo mexido por uma brisa suave. Basta dar-lhe um pouco de tempo para que exerça sobre nós a sua virtude sedante e nos abandonemos, sem objeto nem fim, à reflexão.

Mudou com o tempo. Acontece com todos nós: à medida que envelhecemos, a memória é o lugar no qual têm lugar as coisas mais importantes. Da interação plástica e sonora que a instação propunha nos anos setenta à experiência estática à que nos convida agora, há um longo percurso, mas a sua essência continua a estar associada ao que é e significa um acontecimento. A quase impalpável rede que tecem os seus fios captura sem encerrar o que não pode senão existir no aberto. Um instante puro. Um grilo na palma da mão.

 

26 DE MAIO

Os amigos chamavam-lhe Sandy. Vestia-se de forma excêntrica para a época e era dado a oferecer presentes tão difíceis de aceitar como de recusar. Apesar de que quase todos se lembram dele como um cara legal, era parco nas entrevistas e arrevesado para as respostas – dizia fazer as coisas o melhor que podia e que preferia não pensar muito nisso.

Tampouco era fácil com os seus clientes. Contam que, numa ocasião, uma pequena cidade do Texas lhe encomendara um estabile monumental para embelezar um dos seus jardins. De preferência – insistiram – que sugerisse um cavalo. Calder trabalhou durante alguns meses na encomenda e se encarregou de entregar o pedido pessoalmente. Quando viram a obra terminada, os texanos disseram-lhe que não parecia um cavalo; ao que Calder respondeu:

– Bem, provavelmente não seja um cavalo.

Era democrático na sua indiferença. Noutra ocasião, depois de ter escutado que trabalhava num grande móbil negro para o Guggenheim, Frank Lloyd Wright, que projetara o edifício, lhe escreveu uma carta pedindo-lhe que o fizera de ouro. Calder respondeu-lhe que não havia nenhum problema, que o faria de ouro, mas o pintaria de negro.

Primeiro em 1948 e mais tarde em 1960 esteve no Brasil. Alegrou-me saber que se demorou durante algumas horas em Belém, onde estive tantas vezes, e que aproveitou esse tempo morto para percorrer os postos do mercado de Ver-o-peso. No Rio de Janeiro ganhou o gosto pela cachaça e pelo samba, que bailava de forma desengonçada e excessiva. Na sua segunda viagem esteve em Brasília, onde conheceu Niemeyer, quem lhe encarregou um monumental móbil para a praça dos três poderes, que finalmente não viria a concretizar-se (mas existe um modelo de aço, de quase quatro metros de envergadura, que hoje ocupa um lugar nos jardins do Rijksmuseum, na Suíça).

 

27 DE MAIO

O jardim que acolhe Carmen está rodeado de freixos e oliveiras, de magnólias e falsos pimenteiros, de frondosas adelfas brancas e rosadas. À esquerda e à direita, duas fontes simétricas deixam ouvir o barulho da água confundindo-se com a água. Apenas outra escultura, uma obra de Miró, disputa a sua atenção – Pássaro lunar (1966).

Sentado num dos quatro bancos que estão dispostos em torno dela, acompanhando as suas evoluções no ar, o universo revela-me um rosto humano. Só turba o meu ânimo o estrondo que produz um grupo de adolescentes que se agitam sem descanso em torno de uma das fontes. Trata-se, muito provavelmente, de parte de uma excursão escolar. Estiveram visitando o museu em silêncio e agora se desafogam como podem. Estão contentes, mas por alguma razão a sua alegria ofusca a minha alegria. É um dos paradoxos da solidão, que nos abre ao que de mais humano há em nós ao preço de tomar uma distância dos outros.

Para não perder a minha incipiente fé no mundo, decido voltar noutro momento.

* * *

Olhando-o como por última vez, Lily Bricoe sente que o jardim dos Ramsays é o mundo. Não é assim, por certo, mas não porque a vida comece além dos muros de pedra que o rodeiam.

As mesmas nuvens que nos devolvem o olhar darão lugar à tempestade que pode colocar em perigo a nossa vida. A música das esferas range sob o peso do informe. Isso flui, não para.

Quanto mais um homem se sente à vontade no seu ambiente, menos percebe as coisas que ao seu redor manifestam essa inquietante estranheza, mas pobre daquele cuja curiosidade o leve a olhar fora e, além das paisagens que tranquilizam a sua consciência, entreveja que a realidade descansa, como dizia Nietzsche, pendente dos seus sonhos sobre o dorso de um tigre.

 

 

Recebido em: 11/10/2016

Aceito em: 13/12/2016


 

[1] Filósofo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista Capes Pós-doc 2015/6.

[2] Anotação do dia 23 de Agosto: Não voltei ver Alicia pelo museu. Acho que me contara que tinha apenas um contrato temporário. Suponho que, como a muitos, não terão renovado o seu contrato para evitar estabelecer uma relação laboral que implicasse algum direito para ela. Entristece-me pensar que nunca conhecerei a sua história. O que será das obras que ela animava? O que será dela sem o ânimo que lhe infundia a contemplação dessas mesmas obras? O museu é mais pobre sem a sua presença.

 

A escala humana  (Um fragmento de O que vi – Diário de um espectador comum)

 

RESUMO: Entre fevereiro de 2015 e janeiro de 2016 dediquei o meu tempo e a minha atenção ao estudo de umas quantas obras da coleção permanente do museu e centro de arte Reina Sofia, em Madrid. O resultado foi uma série de observações – quiçá nem sempre verdadeiras, mas sempre, sim, honestas – nas quais se confundem, sem ordem nem precedência, questões que guardam relação com o poder das imagens e o exercício do olhar, a intrínseca singularidade do visível e o comum da sua intelecção, o tempo da arte e o espaço do museu – e, em última instância, com a minha vivência de tudo isso como espectador. O fragmento que publico a seguir acata, na medida do possível, a forma e as alternativas do diário que mantive durante os meses nos quais me consagrei a essa empresa (sem projeto), eliminando apenas ênfases desnecessárias, repetições e redundâncias. Trata-se, para mim, de uma decisão que excede as questões do estilo e aponta a uma forma de escrita crítica capaz de exceder a mera apresentação de hipóteses, inscrevendo no próprio corpo do texto as alternativas da experiência que lhe deu lugar, os seus impasses e as suas revelações, as suas inconsistências e as suas aberturas.

PALAVRAS-CHAVE: Olhar. Imagens. Reflexão.


La escala humana  (Un fragmento de Lo que vi – Diario de un espectador común)

 

RESUMEN: Entre febrero de 2015 y enero de 2016 dediqué mi tiempo y mi atención al estudio de unas cuantas obras de la colección permanente del museo y centro de arte Reina Sofía, en Madrid. El resultado fue una serie de observaciones – quizá no siempre verdaderas, pero siempre, sí, honestas – en las cuales se confunden, sin orden ni precedencia, cuestiones que guardan relación con el poder de las imágenes y el ejercicio de la mirada, la intrínseca singularidad de lo visible y lo común de su intelección, el tiempo del arte y el espacio del museo – y, en última instancia, con mi vivencia de todo eso como espectador. El fragmento que publico a seguir acata, en la medida de lo posible, la forma y las alternativas del diario que mantuve durante los meses en los cuales me consagré a esa empresa (sin proyecto), eliminando apenas énfasis desnecesarios, repeticiones y redundancias. Se trata, para mí, de una decisión que excede las cuestiones de estilo y apunta a una forma de escritura crítica capaz de exceder la mera presentación de hipótesis, inscribiendo en el propio cuerpo del texto las alternativas de la experiencia que le dio lugar, sus impases y sus revelaciones, sus inconsistencias y sus aberturas.

PALABRAS-CLAVE: Mirada. Imágenes. Reflexión.