Como uma atmosfera: filosofia como um clima de conhecimento*


Emanuele Coccia [1]

Tradução de Sebastian Wiedemann [2]

 

 

 

O surgimento da filosofia não tem sido um acontecimento histórico único e definitivo. Ao invés de uma disciplina notável por seus propósitos ou métodos, ou por questões e objetivos universais que atravessam o tempo e o espaço, a filosofia é uma espécie de condição atmosférica, que surge subitamente – o tempo todo e em todos os lugares. Ela pode dominar o conhecimento humano por um certo período, mas também pode desaparecer abruptamente, muitas vezes por razões desconhecidas, assim como o suave clima da primavera ou uma tempestade podem se dissipar a qualquer momento.

Nesse sentido, a noção de uma história progressiva ou até mesmo não-linear do pensamento é, como a existência ilusória de um arquivo, um cânone ou um patrimônio de obras ou textos filosóficos. Existe apenas uma meteorologia do pensamento no sentido aristotélico original de uma ciência preocupada com a longa lista de fenômenos “naturais”, mas cuja “ordem é menos perfeita do que a dos primeiros elementos dos corpos”, com “ventos e terremotos”, “com a queda dos raios e com os redemoinhos e os ventos de fogo”.

As ideias e os conceitos “filosóficos” não são pedaços específicos do conhecimento a serem compostos com outras formas de conhecimento ou ideias, mas sim uma espécie de movimento que põe em jogo o próprio elemento da razão e do conhecimento, um certo clima, uma instável, mas poderosa configuração do conhecimento atual – assim como o vento, as nuvens e a chuva não são elementos adicionados àqueles existentes no mundo, mas apenas sua modificação contingente, ou a manifestação de seu poder e influência sobre nós. Assim como uma certa temperatura, uma certa luz ou qualquer nova disposição dos elementos naturais pode mudar a aparência de um lugar e determinar sua habitabilidade, qualquer acontecimento filosófico modificará a disposição do conhecimento e da aprendizagem de um contexto histórico e assim mudará radicalmente o seu modo de existência.

Começamos, então, com um ponto epistemológico óbvio: a filosofia é atmosférica porque a verdade sempre existe na forma de uma atmosfera. Somente ao misturar com todos os outros elementos, qualquer coisa encontra sua identidade: a atmosfera é mais verdadeira do que a essência. Inversamente, se a filosofia prefere a atmosfera à essência, é porque a atmosfera é a totalidade dos elementos em sua forma extrema. Nesse sentido, a natureza atmosférica do conhecimento filosófico manifesta-se especialmente em sua forma e na impossibilidade de reduzi-la a um corpo de conhecimento definido por um objetivo, método ou estilo específicos, que exclua os outros.

Se, então, é impossível reduzir a filosofia a um objetivo específico, a um campo de indagação “homogêneo” e unívoco, a razão é que a filosofia está em toda parte. Longe de se opor a outras formas de conhecimento – física, literatura, ciência da computação, arte – ela coincide com os limites do cognoscível e do nomeável. Nada é eminentemente filosófico, e qualquer objeto – mesmo aquele que não existe e nunca poderia existir – pode e deve ser matéria e assunto de filosofia.

Do mesmo modo, é estritamente impossível discernir a mais mínima continuidade estilística de um livro filosófico para outro. Ao longo de sua história, a filosofia recorreu a todos os gêneros literários disponíveis – do romance ao poema, do tratado ao aforismo, do conto à fórmula matemática. Por costume, então, qualquer forma simbólica é ipso facto filosófica, e nenhuma forma como tal pode reivindicar uma maior capacidade de alcançar a verdade; nenhum estilo de escrita é mais apto para a filosofia do que qualquer outro. O fetiche acadêmico contemporâneo pelo incerto Volapük[3] de ensaios preenchidos com notas de rodapé tem, deste ponto de vista, nenhum fundamento para ser. Um filme, uma escultura ou uma canção pop pode ser tão intensamente filosófico quanto um tratado geológico – a Crítica da Razão Pura, ou um adágio proferido com a falsa indiferença de um dândi.

É impossível, finalmente, destilar um único método. O único método é um amor extremamente intenso por aprender, uma paixão selvagem, crua, indisciplinada pelo conhecimento em todas as suas formas e para todos os seus propósitos. Filosofia é conhecimento sob o signo de Eros, o mais grosseiro e indisciplinado de todos os deuses. Nunca pode ser uma disciplina. É, pelo contrário, a afirmação de que o conhecimento humano não pode tolerar nem disciplina, nem moral, nem epistemologia. É por isso que nenhuma ideia poderia ser encontrada em um arquivo: a filosofia encarna a fenda em toda tradição; o clinâmen dentro de cada disciplina que permite um corpo específico de conhecimento tornar-se um paradigma, para servir como um exemplo. É o contra-ideal da atopia socrática: o pensamento filosófico não está em lugar nenhum, mas em todo lugar. Como uma atmosfera.

 

Recebido em: 06/10/2016

Aceito em: 21/11/2016

 


Versão original: COCCIA, E. Like an Atmosphere: Philosophy as a Climate of Knowledge. The Brooklyn Rail. Set. 1, 2016. Disponível online: http://www.brooklynrail.org/2016/09/criticspage/like-an-atmosphere-philosophy-as-a-climate-of-knowledge Nossos mais sinceros agradecimentos a Emanuele Coccia pela gentileza e generosidade que fizeram possível esta tradução e publicação.

[1] Emanuele Coccia começou como estudioso da filosofia do século XIII. Filósofo, escritor e professor associado na Ècole des Hautes Ètudes en Sciences Sociales em Paris, ele dedica agora uma grande parte de seu trabalho à vida na cultura contemporânea. Ele é notadamente o autor, em português, de “A vida sensível” (Cultura e Barbárie, 2010).

[2] Sebastian Wiedemann é cineasta-pesquisador, trabalha na intersecção entre arte e filosofia acolhendo o problemático que emerge da atual crise ambiental como potência de pensamento que se desdobra em processos de criação que leva adiante com o grupo MultiTÃO (Unicamp)  e o Orssarara Ateliê.

[3] N. do. T. Volapük ou volapuque é uma língua artificial criada em 1880 por Johann Martin Schleyer. A palavra Volapük significa “língua mundial” (vol ‘mundo’, -a ‘de’, pük ‘língua’).

Como uma atmosfera: Filosofia como um clima de conhecimento

RESUMO: A filosofia é uma espécie de condição atmosférica, que surge subitamente – o tempo todo e em todos os lugares. Ela pode dominar o conhecimento humano por um certo período, mas também pode desaparecer abruptamente, muitas vezes por razões desconhecidas, assim como o suave clima da primavera ou uma tempestade podem se dissipar a qualquer momento.

PALAVRAS-CHAVE: Atmosfera. Clima. Filosofia.


Like an Atmosphere: Philosophy as a Climate of Knowledge

 

ABSTRACT: Philosophy is a sort of atmospheric condition, arising suddenly – everywhere and at all times. It can hold sway over human knowledge for a certain period, but also abruptly vanish, often for reasons unknown, just as mild spring weather or a storm can dissipate at a moment’s notice.

KEYWORDS: Atmosphere. Climate. Philosophy.